quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VII - CAPÍTULO 3 (CONTINUAÇÃO)


Depois de serenados os ânimos...

Coincidência das coincidências...

Nada é coincidência...

Sérgio Tavares entrou na cantina italiana...

Ele não demorou muito a reconhecer os delegados Mouzon e Paranhos, até porque o restaurante não estava muito cheio àquela hora, e eles já haviam aparecido em alguns noticiários jornalísticos...

Mas Mouzon, desconfiado, não o conhecia...

Moffato também reparou que o jornalista olhava para eles com alguma insistência, ainda que tentasse disfarçar, e mal, o fato...

Moffato também não o conhecia...

Tampouco Paranhos...

Os três se entenderam apenas com olhares...

Paranhos fez uma ligação rápida de seu celular...

Dois investigadores da Polícia Federal de Roraima apareceram de supetão no restaurante, exigindo discretamente que Sérgio Tavares apresentasse seus documentos...

Depois de tudo esclarecido, o jornalista foi “convidado” a sentar-se à mesa com os investigadores...

– Quer dizer então, senhor Sérgio Tavares, que o senhor está cobrindo a notícia do arranca-rabo na Raposa Serra do Sol pela Folha da Tarde? – perguntou Moffato, muito sarcástico e desconfiado, com seu ar de pavão emplumado que já era sobejamente conhecido dos dois delegados presentes.

– Exatamente... – retrucou o jornalista, relativamente tranqüilo depois da “dura” que levara dos policiais. – Talvez os senhores possam me ajudar...

– É... – volveu Moffato evasivo. – Talvez.

– O senhor está querendo informações?... – perguntou Mouzon, perscrutador. Sérgio anuiu. – Engraçado... Nós também.

Paranhos manteve-se calado. O fato é que o delegado de Boa Vista tinha um temperamento exatamente oposto ao do funcionário da ABIN.

– No que o senhor pode nos ajudar? – insistiu Moffato.

– Quem sabe não podemos trocar figurinhas? – brincou Tavares, porém muito mais sério do que se poderia imaginar.

– Algumas são inegociáveis... – volveu Mouzon.

– Difíceis de conseguir... – acrescentou Moffato.  

– A reportagem que nós estamos preparando talvez desafie o permissível, senhores...

– O que você está querendo dizer, Tavares? – voltava a perguntar Moffato.

– Eu entendo que algumas das informações que a PF dispõe – continuou Tavares – não podem ser divulgadas ao público, sob pena de atrapalhar as investigações, no entanto é importante que a opinião pública seja esclarecida de tudo...

– O senhor está certo, Tavares... – disse Mouzon. – Mas nós estamos no início das investigações; o senhor talvez saiba muito mais do que nós sabemos...

– Se nós cruzarmos algumas informações... – voltava a “sugerir” Moffato.

– Estou sabendo de fonte segura – e aqui Sérgio Tavares falou bem baixinho – que essas terras que compreendem a reserva Raposa Serra do Sol – e muito mais até! – estão praticamente nas mãos de particulares...

– Não sabemos nada a respeito disso – admitiu Moffato, porém escamoteando. – Nós temos aqui uma lista das “celebridades” nacionais e internacionais que podem estar por trás dos desajustes fundiários na Raposa Serra do Sol...

– Como o senhor chegou a esta informação, Tavares? – perguntou desta feita Paranhos, muito seriamente.

– Existem inúmeras fontes de informação disponíveis, delegado...

– E dentre estas as ONGS seriam as melhores equipadas? – replicou Mouzon.

– Elas estão espalhadas por toda a Amazônia, divulgando informações para todo tipo de mídia que existe...

– Incluindo espionagem – tornou Paranhos seco.

Moffato surpreendeu-se com Paranhos.

– É o que dizem – continuou Sérgio Tavares, reticente, acuado.

– Entretanto, senhor Tavares – volveu Paranhos, penetrantemente – o senhor nos ia dar uma lista das “empresas” envolvidas nessas negociatas com as terras na Raposa Serra do Sol...

– Não sei se empresas estão envolvidas ou não, delegado, mas pode riscar a porção nacional desta lista... – volveu o jornalista cheio de si.

– Porquê? – inquiriu Mouzon de pronto.

– Os brasileiros, ou brasileiras, não têm participação nos negócios... – continuou Sérgio Tavares, indiferente, sorvendo um gole de refrigerante.

– Como assim? – perguntou Moffato interessado, no entanto o ítalo-brasileiro, com cara de irlandês tradicional, não era bobo e já captara a resposta que viria a seguir.

– As terras na Amazônia, legal ou ilegal, tanto faz, estão sendo vendidas pra estrangeiros...

– Você tem como provar isto? – redargüiu Mouzon, visivelmente impressionado.

– Certamente que não – imiscuiu-se Moffato, o que despertou estranheza em Mouzon, que guardou, entretanto, esta sensação consigo.

– Você pretende publicar esta matéria, Tavares? – perguntou Paranhos quase em tom de ameaça.

– Estou investigando... Nós vamos fazer uma reportagem completa, esclarecendo todos os detalhes à população...

– Isso pode até causar um incidente diplomático, Tavares, sabia? A menos que o senhor possua as provas.

– O papel da imprensa é informar, agente Moffato – disse Tavares com certa rispidez, o que causou medo no agente da ABIN. – As reflexões cabem aos leitores. Os desdobramentos, as soluções, cabem à sociedade...

– É muito bonito este seu discurso – disse Mouzon com alguma ironia.

– Porquê, delegado? Não cabe a mim resolver as questões problemáticas deste país...

– Como não?! Ou os jornalistas também não são corresponsáveis pela história?! Nós sabemos, Sérgio Tavares, que ao longo dela, o papel da imprensa tem sido amordaçado muitas vezes por regimes de exceção...

– Seja mais específico, delegado. Aonde o senhor quer chegar?

– Tavares. Você sabe muito bem que nem sempre o papel da imprensa tem sido louvável...

– Eu respondo por mim, delegado...

– Eu acredito no senhor. Mas em muitas ocasiões a imprensa não tem contribuído tanto para esclarecer à opinião pública, e sim para confundi-la ainda mais...

– Existe o mau jornalista, delegado, como também existem os maus policiais... Aliás, eu vivo e trabalho no Rio de Janeiro, e todos nós sabemos que lá o prestígio dos policiais não é dos melhores...

– O senhor tem razão na sua queixa...

– Não, delegado. Isto não é uma queixa minha, é um clamor de toda uma sociedade...

– Mas, voltando aquele ponto onde tudo começou... Se no passado nós tínhamos um regime de força que impedia a verdade, hoje nós temos outro que impede as pessoas de sobreviverem...

– Que porra é essa que vocês tão falando, Mouzon? – replicou Moffato irritado.

– Calma, rapaz – volveu Mouzon, tranqüilizador, para Moffato. Depois, dirigindo-se a Tavares: – Você há de convir que hoje nós temos o primado das grandes corporações financeiras e industriais, ditando as normas não só do mercado, mas também nos governos...

– Eu concordo delegado – tornou Tavares neutro. – Mas felizmente eu não vivi aquele tempo da ditadura que o senhor mencionou, quer dizer, eu era muito garoto, de modo que só posso repetir o que acabei de dizer...

– É perfeitamente natural que as grandes empresas estejam inseridas neste contexto que nós estamos investigando – ponderou Paranhos conciliador.

– O meu jornal tem um compromisso com seus leitores, senhores – volveu Sérgio Tavares. – Não concordo com esse chavão que muitos proclamam que todo jornal quer é vender exemplares, sem se importar com as conseqüências daquilo que publica... Pelo menos nem todos trabalham de olho nas vendagens. Eu não trabalho assim, e o meu jornal não me paga pra fazer isso. Não vou responder por toda a imprensa, porque eu não tenho procuração pra defender ninguém em particular...

– Isto é tudo que o senhor tem pra nós, Tavares? – voltava a perguntar Moffato com certo sarcasmo.

– Continuamos com um panorama confuso visto da ponte – observou Paranhos.

– Quanto maior o caos, mais fácil pra manipular – sentenciou Mouzon.

Sérgio Tavares concordou com o delegado da PF, e acrescentou:

– Essas pessoas, ou empresas, que querem adquirir a Amazônia... Pra elas será mais fácil atingir este objetivo se as coisas não forem tão claras, nem no governo, nem no próprio seio dessas sociedades que vivem nesta região...

– Eu tenho aqui uma lista de possíveis responsáveis e irresponsáveis administradores deste caos que estamos falando – voltava a retrucar Moffato, pavoneando-se. – A pergunta é: qual deles é o principal gerenciador desta situação?

– O senhor me permitiria dar uma olhada na sua lista? – pediu o jornalista.

Moffato hesitou.

– Não se preocupe agente Moffato. Sou fiel às minhas fontes...

Moffato passou-lhe a lista.

Sérgio Tavares passou os olhos por ela sem nenhum entusiasmo, detendo-se uma vez ou outra em algum nome específico, mas não comentou nenhum deles.

– O que o senhor achou? – indagou o pavão, digo, Moffato.

– É como o senhor disse... Qualquer uma delas pode ser o principal agente do caos...

– O senhor pode nos ajudar? – solicitou Mouzon.

– Não conheço ninguém – disse Tavares abanando a cabeça, desanimado. – São pessoas ligadas à sociedade da região norte, não são?

Paranhos confirmou.

– Infelizmente, senhores, minhas fontes estão ligadas à região Sul e Sudeste...

– Mas nós temos uma conexão destes incidentes da reserva com a região Sudeste...

– Que conexão?

Agora o jornalista mostrou-se humildemente interessado, ao invés da distância e superioridade do início, quando se julgava mais esperto do que aqueles homens que o interrogavam.

– Dois assassinatos em São Paulo – continuou Mouzon. – Ambos militares ligados às investigações de irregularidades na reserva, ou talvez ao tráfico de drogas, ou até mesmo com a ação de estrangeiros nos conflitos de terras entre índios, grileiros, madeireiros, e rizicultores...

– Eu li isto nos jornais do Rio e de São Paulo, mas não me lembro de ter visto qualquer menção a este caso da Raposa Serra do Sol, e sim com o crime organizado.

– Porque não existem indícios muito claros de ligação, Tavares... – pontuou Paranhos.

– Até agora, né? – tornou Moffato, sempre perturbador.

– Talvez você possa nos ajudar... – pediu Mouzon.

– Em qual dos assuntos, o tráfico de drogas, ou os conflitos na reserva? – volveu Tavares irônico.

– Os dois fatos podem estar intimamente ligados – voltou a pontuar o delegado de Boa Vista.

– Que podem também não ter ligação alguma – advertiu Tavares...

– Realmente... – acedeu Moffato cínico. – Por isso estamos aqui, seu Tavares.

– Eu acrescentaria a este imbróglio dois nomes que não estão na lista elaborada pela ABIN, Moffato – disse Mouzon, deixando a todos atônitos, e Moffato despeitado.

– Esses homens da polícia federal! – comentou o “irlandês” em tom anedótico, mas com profundo desdém.

– Um do Rio, mas lotado no 7º PEF, que possuía certa animosidade com os falecidos – continuou Mouzon. – Seu nome é Felipe Corrientes... Vocês já ouviram este nome alguma vez?

– Porquê...? – retorquiu Sérgio admirado. – Deveríamos?

– Realmente... – retrucou Moffato, de certa forma procurando disfarçar sua contrariedade. – Não existe nada em meus registros sobre este Homem. Quem é o cara?

Divertindo-se para valer com o efeito perturbador que causara nos circunstantes Mouzon atacou de novo:

– O segundo nome é pernambucano... Ela... – fez uma pausa sorridente. O espanto foi maior ainda. – Também pertence ao 7º PEF, e é muito amiga de Corrientes...

Paranhos interrompeu a exposição e lembrou:

– Não sabemos se o Gusmão foi assassinado ou não, Mouzon.

– Quem é este? – perguntou Tavares confuso, referindo-se ao nome citado por Paranhos.

– É o homem morto em Mato Grosso com a mulher, num incêndio – respondeu Paranhos.

– Bem... – interveio Moffato hilário. – Você não nos contou nada sobre estes dois suspeitos, Mouzon...

– Não disse que eles eram suspeitos – tergiversou o delegado da PF de São Paulo.

– Você os interrogou? – insistiu Moffato.

– Apenas o Primeiro-Tenente Corrientes...

– Eh, Mouzon! – chiou Moffato. – E qual a ligação desses dois com os falecidos?

– Havia uma espécie de rixa entre o Capitão Siboldi e o Tenente Corrientes. Os outros dois mortos formavam linha com o capitão, ao passo que a pernambucana aliava-se ao tenente.

– O senhor sabe a causa dessa rixa, delegado? – tornou Tavares.

– Aparentemente uma briga bairrista...

– Aparentemente? – desconfiou Moffato.

– Eu conversei com o tenente Corrientes no Rio de Janeiro. Ele me deu todos os detalhes a respeito de suas desavenças com o capitão. Volto a dizer, não há nenhum indício que nos aponte estas duas personagens num envolvimento no assassinato dos dois homens em São Paulo...

– Você tem certeza, Mouzon? – Moffato parecia não acreditar no seu colega.

– Posso mostrar minhas anotações a você, aí tire suas próprias conclusões.

Moffato não insistiu mais.

– Onde foi que paramos mesmo? – perguntou Tavares, bocejando.

– O meu chope... – retrucou Moffato. – Está quente!... Garçom!

– Bem, senhores... – volveu Sérgio Tavares. – Se vocês me dão licença... O dia foi muito cansativo e eu preciso dormir... Este é o meu cartão. Se precisarem de mim, não me negarei a colaborar com a polícia. Boa noite...

– Boa noite, Tavares – disseram, quase em uníssono, os homens do governo, menos Paranhos, que mais uma vez manteve-se à distância. Ele já percebera a polarização nascente entre Mouzon e o homem da ABIN.

Os três não se demoraram muito mais do que o jornalista na cantina...

Alguns chopes ainda rolaram durante uma meia hora, senão mais; um pouco mais, um pouco menos, quem se importa?

Mouzon seguiu logo depois para o seu discreto hotel, ali mesmo, no centro de Boa Vista. Não sabia onde estava hospedado o colega da ABIN, mas também não perguntou, nem se interessava, assim como Leonardo Paranhos, que tinha boca e não falava, ou mesmo Ubiratan Moffato, que, talvez devido aos inúmeros chopes tomados a mais, não procurou demonstrar mais a sua bela calda emplumada àquela noite...

Era o fim de um dia intenso, porém o início de uma triangulação que ainda geraria muita confusão a quem tivesse fôlego para acompanhar até o fim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário