Uma das minhas maiores dúvidas enquanto autor consiste em descobrir se existe uma fórmula mágica, a pedra filosofal para se fazer sucesso literário...
Se existe, me parece que as editoras também não a conhecem...
É inegável que o livro no Brasil se tornou um grande negócio, mas e a literatura, com letra maiúscula, é um bom investimento ou não é? Acredito que muitos editores responderão de boca cheia a esta provocação: "se o autor for bom nós publicamos".
Evidentemente que isto é uma grande falácia. Primeiro: o que os editores entendem como um bom autor?
Por exemplo, H. P. Lovecraft pode ser considerado um bom autor? Hoje em dia, sim; os seus contos publicados no Brasil estão esgotados, e as livrarias sebo disputam no tapa um exemplar qualquer para exibí-lo em suas prateleiras repletas de teias de aranhas, porém, na época em que ele vivia, ninguém o publicou.
E James Joyce, é um bom escritor ou não é? A crítica o chama de gênio; os mestres literários seguem seus passos, e, no entanto, no seu tempo de vida Joyce teve de bancar a publicação de várias de suas histórias.
É assim que a banda toca...
Diriam alguns...
Notas dissonantes, harmonia pífia, diria eu...
Os exemplos abundam.
Os argumentos dos editores esbarram em questões estéticas? Não, muito pior do que isso! Apóiam-se nos indices da economia, e todos sabemos que Economia é a grande arte da prestidigitação.
Na verdade, quaisquer conceitos, ou preconceitos, que se possam coligir em torno da difícil arte de escrever, eles sempre serão subjetivos. Digam o que quiser, mostrem os alfarrábios que desejarem. Àquela balela de que "estamos de olho no mercado editorial", e outras asneiras parecidas não se sustentam com o passar do tempo; não cabem mais.
Só existe duas maneiras para se julgar um bom autor. A primeira, obviamente, é o termômetro chamado leitor, apesar de que, ultimamente, com a dissimulação velhaca do marcheting, isto também não quer dizer muita coisa.
Então só nos resta uma prova: a do tempo. Somente o bom autor sobreviverá aos pósteros, ratificando e consolidando definitivamente seu nome na galeria dos eleitos do Parnaso. Infelizmente, nem sempre o escritor sobreviverá para assistir a sua apoteose, que muitas vezes só ocorrerá décadas depois de sua morte.
Não quero julgar o que está certo ou errado, mas é inegável que nós temos uma tradição terceiromundista em termos editoriais. O que significa isto? Publica-se à socapa o que há de pior e o que há de melhor na língua inglesa...
No segundo caso tudo bem! Mas enquanto isso, nós aqui do tupi or not tupi, ficamos de fora da "política" das editoras nacionais, principalmente nas grandes casas...
Isto é outra coisa fora de dúvida! Os autores nacionais não têm vez nas editoras brasileiras, principalmente os novatos... E por que as coisas são assim?
Perguntem aos editores!
A grandeza do Brasil desponta em todos os quadrantes deste ínfimo planetinha periférico, menos nas editoras brasileiras...
Caberá às nossas honradas casas editoriais erguerem seus olhos para esta grandeza desconhecida que fala português. Só assim o leitor brasileiro criará uma consciência crítica do que há de melhor e de pior na nossa literatura...
Espero que nas décadas que estão por vir esta dúvida intelectual seja pulverizada por uma grande certeza...
A boa literatura há de sobreviver... Sempre. Enquanto isto, continuem a publicar os seus pasquins.
O belo, só pode ser visto como tal, porque há o feio...
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VI - CAPÍTULO 2
No dia seguinte lá estavam eles...
Cara
a cara pela primeira vez em suas vidas...
Certo
constrangimento marcaria o primeiro momento daquele encontro desigual...
Desigual
pelas normas burocráticas envolvidas, pelas idiossincrasias de cada um enquanto
cidadãos, pelos temperamentos marcadamente divergentes, não tanto pelas idéias
em si, o que mais tarde ficaria flagrante, e sim pelo próprio histórico
psíquico de cada um dos homens...
Uma
coisa natural.
Como
cabia a Mouzon a prioridade profissional do momento, ele saiu na frente.
– O senhor era companheiro de regimento das
vítimas, não era? – começou Mouzon pisando em ovos, porque sabia que aquele
terreno era movediço...
Mais
do que isso, lamacento.
Felipe
começou abanando a cabeça, concordando, ainda com o receio dos seus fantasmas
particulares.
–
Éramos – retrucou Felipe lacônico ao extremo.
Mouzon
riu-se da lógica da situação.
–
Posso lhe perguntar qual é o seu posto no exército, Senhor Corrientes?
–
O senhor ainda não entrevistou ninguém?
Mouzon
deu um sorrisinho de escárnio. Este oficial até que era bem espertinho, o tal
do Corrientes. Talvez fosse mais fácil tirar leite de pedra do que fazê-lo
abrir a boca espontaneamente.
–
Eu tentei – comentou Mouzon lacônico.
Felipe
começou a estudar o homem que tinha a sua frente, analisar suas cartas, sua
carantonha, seus tiques, uma vez que ele mesmo, a seu modo, possuía a mesma
têmpera do policial.
–
O senhor deve ter tido um bocado de dificuldades lá no 7º PEF...
–
De fato... Há algo lá que não está bem esclarecido... – disse Mouzon
indecifrável.
Felipe esquivou-se
como pôde, então, como qualquer palavra mal colocada poderia ser uma porta
aberta para informações não autorizadas, limitou-se a sorrir.
Mouzon,
entretanto, insistiu:
–
Acertei ou não?
Mouzon
mostrava-se muito tranqüilo, e seguro de si, enquanto Felipe continuava
lacônico.
–
Infelizmente não me deixaram chegar muito fundo, Oficial Corrientes...
–
Bem, delegado, se eles bloquearam o seu acesso às informações, talvez eu não
possa fazer muito pelo senhor...
–
Perfeitamente, Corrientes; eu entendo; não quero ferir nenhum regulamento
militar, mas existem informações que eu pude pegar com as respectivas famílias,
de modo que...
–
Como o senhor chegou a mim?
Mouzon voltou a
sorrir com um ar de bufão. A partir deste instante ele aceitaria o papel
hierarquicamente inferior que lhe cabia nesta investigação, até porque os
peixes que nadavam neste lago obscuro, ele sabia disto muito bem, possuíam
barbatanas bem maiores que as suas.
– Os familiares de
uma das vítimas me disseram que os oficiais assassinados não pertenciam aos
quadros normais do exército. Agora, que tipo de trabalho exerciam, isto não me
contaram.
Felipe não engoliu
a isca. Geralmente, as famílias dos militares não sabiam a diferença entre um
oficial regular do exército e outro do setor de inteligência. Por isso,
limitou-se a declarar:
–
Segundo eu vi na reportagem, a morte do sargento Gusmão foi uma tragédia,
delegado.
Desta
feita Mouzon não sorriu aquele seu risinho de pseudobobo, mas sim o de um
jogador bem compenetrado.
–
O Senhor está certo. Por um acaso o senhor sabe que tipo de vida esses homens levavam
quando fora de suas fardas, Senhor Corrientes?
–
Pode me chamar de Felipe, delegado. Não estou no quartel. Agora sou um cidadão
como outro qualquer.
–
Bem... Felipe. Você não os conhecia pessoalmente? Ou conhecia?
–
Absolutamente. Minha relação com esses homens era puramente profissional; não
tinha qualquer relação de amizade com nenhum deles fora do quartel...
–
O Senhor... Você tinha alguma amizade com algum outro membro deste batalhão?
Felipe
hesitou um pouco. Na verdade, ele tencionava aproveitar-se desta ocasião para
descobrir coisas sobre Siboldi e os outros que até agora não fora capaz de
conseguir. Não tinha certeza se era a hora certa de implicar Celha numa coisa
nebulosa, até mesmo porque sobre a própria vida da amiga ainda pairava muita
névoa neste oceano de implicações variadas, onde cada passo poderia significar
encrenca.
Ainda
hesitando, o que Mouzon percebeu logo de imediato, Felipe falou:
–
Nada muito profundo, eu acho...
–
Mas tinha?
–
É...
–
Você pode me revelar o nome desta pessoa?
Felipe
fez cara de assustado.
–
Só o nome... Quer dizer... Isso se não for infringir algum dos regulamentos...
Felipe
continuava hesitando para ganhar mais tempo.
–
Qual era mesmo a missão principal do batalhão ao qual você estava lotado?
Felipe
fitou o delegado nos olhos, penetrantemente. Era óbvio que o policial estava
tentando confundi-lo, talvez para confrontá-lo, pegá-lo em contradição.
–
Desculpa, Felipe. Qual o nome do seu amigo?...
E
Felipe divagava.
–
Pode dizer? Não pode?
–
Celha...
As
sobrancelhas de Mouzon ergueram-se, quase surpreso. “Era uma mulher!”
–
Celha Regina... – voltava a balbuciar Felipe.
Mouzon
inchava de satisfação.
–
Do Nascimento – completou Felipe.
Mouzon
passou a anotar tudo, até suspiros e interjeições, com a nova ortografia e
tudo.
–
Mas, por favor, delegado, veja lá o que senhor vai fazer com esta informação...
Eu colaboro com o senhor... – Mouzon concordava com os dentes brilhando. – E o
senhor colabora comigo.
–
Não se preocupe, tenente. Sou um túmulo! Você sabe onde mora essa...
–
Mas eu não lhe disse qual era o meu posto no exército, delegado – volveu Felipe
entre surpreso e irritado.
Mouzon
sorriu, corou, se emendou, tudo numa seqüência mais ou menos lógica do ponto de
vista da psicanálise.
–
O senhor não me disse como chegou até a minha pessoa nesta investigação,
delegado...
Mouzon
parou de escrever.
–
Estamos colaborando ou não estamos? – insistiu Felipe.
–
Sabe o que é, Felipe? Acho que vocês... das forças especiais... não gostariam muito
de saber que estão sendo investigados pela Polícia Federal...
–
O senhor foi mais longe do que eu imaginava, delegado...
–
Todo policial que se presa, Felipe, tem suas fontes... É como um jornalista...
–
Aí você descobriu...
–
Que os três mortos pertenciam aos quadros daquilo que vocês chamam S-2.
–
E o que mais o senhor descobriu?
–
Felipe... Vamos e venhamos, meu jovem... Claro está que alguma coisa fugiu ao
controle de vocês lá na Amazônia...
–
Eu continuo sem uma resposta à minha solicitação.
–
Não tenho nenhum indício ainda pra seguir, rapaz... Mas a maneira como o
capitão Ernesto Siboldi e o tenente Jorge Mascarenhas foram brutalmente
assassinados, indica, no mínimo, que eles tinham ligações com o crime
organizado. É tudo o que eu posso supor de momento. Você sabe mais alguma
coisa...?
Felipe
remoia mil coisas por dentro.
–
Isto talvez faça parte das suas atribuições constitucionais, tenente – volveu Mouzon.
–
A minha posição não é nada confortável...
–
Tudo bem, Felipe. Você já me ajudou bastante...
–
Mas agora eu é que estou curioso, delegado...
–
Porquê?
–
Porque eles não permitiram o seu acesso ao quartel de Roraima?
–
Segurança nacional. Pelo menos foi o que o seu comandante alegou. Ainda que os
assassinatos do capitão Siboldi e do tenente Mascarenhas estejam plenamente
configurados, o seu comandante...
–
Coronel Paglia – disse Felipe espontaneamente.
–
Ele mesmo – retrucou Mouzon com tranquilidade.
–
Não anote isto, delegado...
–
Porque não, Felipe? Não há nada de comprometedor num nome. Qualquer
jornalecuzinho pode obter um nome...
–
Mouzon, o senhor sabe com o que estamos lidando aqui?
–
É Palha, com LH? – perguntou Mouzon, tergiversando.
–
Não. É nome de origem italiana. P-A-G-L-I-A.
–
PAGLIA?! Esquisito!
–
É assim mesmo.
–
Bom... Esse tal de “Paglia” alegou que os assassinatos dos oficiais seriam
investigados pela sua própria gente...
–
O quê?!
–
Foi o que ele me disse.
–
Isto é muito estranho...
– O quê?
–
Não me consta que o exército investigue crimes comuns...
–
E quem lhe disse que se trata de crimes comuns, tenente?
–
Você. Você acabou de dizer que o caso tem a marca do crime organizado.
–
Há uma grande diferença entre parecer e ser, “Tenente Corrientes”. Eu também
disse não possuir muitas pistas...
–
A não ser ter descoberto o meu nome não sei aonde... Por acaso não foi no bolso
do Siboldi ou do Mascarenhas, foi delegado?
– Porquê? Haveria
algum motivo para o seu nome estar lá?
– Isto não seria
uma coisa totalmente impossível, delegado...
– Eu estou achando
que o senhor tem uma ligação, digamos, mais estreita com esses homens que
morreram do que está querendo me dizer...
– Talvez...
– Você é um bom jogador,
Felipe...
– Sou nada! Eu
perco sempre!
– Um dia a gente
acaba ganhando...
– Diga-me como
chegou até meu nome e eu lhe direi coisas que talvez lhe ajudem bastante nesse
caso...
– Tá vendo? Acabas
de ganhar um tento...
– Num enrola!
– O seu nome me foi
sugerido pelo próprio Paglia...
– O coronel
Paglia?!
– Exato.
– Mas porquê? Não
estou entendendo.
– Indiretamente,
claro.
– Continuo sem
entender, Mouzon.
– Inicialmente, os
assassinatos dos oficiais do seu batalhão estavam a cargo da polícia de São
Paulo, quando veio a lume o caso de Mato Grosso, os falecimentos de Gusmão e
sua esposa num incêndio aparentemente acidental, no mesmo dia dos outros. Quando
as identidades dos homens foram confirmadas, tanto a polícia de São Paulo
quanto a de Mato Grosso acharam melhor deixar o caso por nossa conta...
– Mas onde o Paglia
e eu entramos nesta história?
– Naquele momento,
como agora, eu continuava sem pistas. Entrei em contato com o Comando do Leste
em São Paulo, e eles me garantiram que eu poderia entrar em contato com o
Comandante Paglia em Roraima a fim de cumprir meu dever...
– E aí?
– Liguei para o 7º
PEF, para não viajar à toa para a Amazônia. Quem sabe eu não conseguia alguma
coisa por telefone mesmo, alguma luz que iluminasse o caminho das minhas
investigações? O Paglia me atendeu muito bem, mas quando eu comecei o cerco
sobre as ligações dos seus homens com o crime organizado, ele disse,
simplesmente, desconhecer qualquer coisa a respeito desse assunto e que não
poderia me ajudar em nada, então, talvez para confirmar sua total ignorância
acerca das atividades dos seus homens fora do batalhão, ele mencionou o seu
nome, dizendo que o único desvio de conduta que ele tinha conhecimento acerca
dos seus oficias fora uma briguinha bairrista tola entre os falecidos e você...
Felipe parou para
pensar.
O que poderia levar
Paglia a mencionar esta “briguinha bairrista tola” a um delegado da PF, se o
caso não representava nada de fato? Talvez ele não quisesse admitir que os homens
em quem ele mais confiasse não fossem tão confiáveis quanto imaginava, então
usou do poder que lhe era conferido para abafar o caso, para não atrapalhar a
própria investigação que seus homens realizavam lá na Raposa Serra do Sol...
Se isto fosse verdade,
o caso parecia-lhe razoável e plenamente justificável...
Se.
Mas a tal da
intuição não parava de tagarelar-lhe ao ouvido...
Felipe foi em frente:
– Qual a sua
opinião, de fato, delegado Mouzon, em relação a este caso?
– Nenhuma, Felipe.
Ainda.
Os dois voltaram a
se encarar expectantes, mas desta feita não como adversários num duelo, e sim
como companheiros de um mesmo time, que desejam o mesmo resultado: a verdade.
– O que foi
delegado?
– Você não está
esquecendo nada?
– Esquecendo...?
– Eu cumpri a minha
parte e lhe disse como cheguei ao seu nome, Felipe...
– Certo. Agora me compete
cumprir a minha parte no acordo...
– Não veja a coisa
por este lado, Felipe. Veja em mim uma pessoa como você mesmo, que está apenas
cumprindo a sua missão constitucional...
– Acontece que eu e
o Siboldi éramos desafetos, Mouzon – disse Felipe sem mais rodeios. – Isto
chegou quase às vias de fato, e o comandante Paglia teve de intervir para botar
ordem na casa...
– E?...
– Era isso que eu
tinha pra te contar.
– E o Mascarenhas e
o Gusmão?
– Eles eram
peixinhos do Siboldi...
– E vocês quatro
quase saíram na porrada em pleno quartel... – Mouzon voltava a fazer as suas
anotações. – Correto... E que mais?
– Mas isso tudo
tinha um motivo muito mais grave; não era uma simples briguinha bairrista como
quer o Paglia...
– Eu imaginava
isto... Você pode me dizer o motivo, Felipe?
– Não posso... Quer
dizer... Não havia nenhum... No começo... Mas antes que você comece a fazer
conjecturas, eu sei que este é o seu serviço e tudo, mas eu não tenho quaisquer
provas contra aqueles homens...
– Relaxa, Felipe!
Eu não sou nenhum louco pra incriminar alguém sem todas as provas checadas. Vá
em frente...
– Certa noite,
enquanto eu voltava para meu dormitório, ouvi uma conversa solta entre o
Siboldi e o Gusmão...
– O que eles
conversavam?
– Não me lembro
exatamente das palavras que o Gusmão dizia para o capitão Siboldi, mas tinha
qualquer coisa a ver com informações sigilosas de dentro do batalhão que eles
estariam repassando pra fora do quartel. Isso, claro, pode ter mil e uma
implicações, além do que o pouco que eu ouvi não dá pra completar nenhum quadro
verossímil...
Mouzon parou de
anotar e levou a mão ao queixo pensativo.
– A quem exatamente
eles repassariam essas informações secretas?
– Eu só posso dizer
que era um código, mas aqui eu não posso ir além, senão estarei cometendo um
delito grave contra o regulamento...
– Não! Por favor!
Eu entendo. Você já me ajudou bastante, mas ainda poderia me ajudar um
pouquinho mais...
– Por favor,
Mouzon. Assim você me compromete...
– Que isso, Felipe!
Só mais uma perguntinha...
– Sobre quem?
– Essa tal de Celha
Regina, sua amiga, estava contigo nessa hora?
– Não. Mas ela sabe
de tudo. Foi uma das que ajudou a separar eu e o Siboldi.
Mouzon anotava
tudo, como um romancista, que vai tecendo sua teia infernal de relações
perigosas.
– É claro que agora
eu sou um dos suspeitos da morte do Siboldi e do Mascarenhas...
– Você se esqueceu
do Gusmão, Felipe... – Mouzon olhou-o enigmaticamente. Felipe parecia surpreso.
– Não está claro que a morte dele foi um acidente, se recorda?
– Ah, é!
– E a sua amiga
Celha também.
– Ela também,
claro... Como você escreveu o nome dela?
– Como eu
escrevi... – Mouzon foi olhar no seu caderninho de anotações. – Mas o que isso
tem a ver...
Felipe esticou o
pescoção e olhou no caderninho do delegado da Polícia Federal.
– O nome dela é com
LH. É estranho mesmo.
– Que esquisito!
– Realmente... É
tudo muito esquisito.
– Muito. Por falar
nisso... O seu comandante também...
– O Paglia?
– Tecnicamente ele
também é um suspeito.
– É?
– Claro!
– Mas a figura
chave é a desse desconhecido pra quem Siboldi e os seus capangas estavam
contrabandeando informações sigilosas?
– Ainda é cedo pra
fazer qualquer avaliação. Tudo pode ser apenas a pontinha do iceberg.
–
Qualquer coisa a mais que eu possa fazer por você, Mouzon...
–
Obrigado, Felipe. Eu percebi que você está muito interessado em colaborar.
Felipe
percebeu a malícia por trás das palavras do delegado. Contudo não se importou
caso estivesse atraindo uma suspeita mais forte para o seu lado. O que ele queria
muito mais do que esclarecer este caso, era descobrir o que rolava nos
bastidores deste acontecimento, ou seja, quem era o responsável maior pela
instabilidade na região Amazônica. Este era o fator que ele ocultara
propositadamente a Mouzon.
Ainda
assim ele jogou mais uma vez:
–
Será que nós estamos prestes a descobrir uma das rotas do tráfico de drogas no
Brasil, delegado?
Entretanto,
ainda que desconhecesse a chave para o maior dos mistérios, Mouzon era esperto
demais para se deixar fisgar.
–
Digo o que já disse antes – retrucou. – Há muitas estrelas envolvidas neste
jogo que ainda não apareceram. Isso acontece o tempo todo neste país. Existem
dois Brasis, Felipe. O permitido e o inacessível. Este último não é para
profissionais como eu; talvez pras gerações posteriores...
–
É este Brasil, o inacessível, que dá nojo em muita gente...
–
Muita gente, né?
–
Pode me incluir nesta lista.
–
Eu também me incluo nela...
Mouzon
levantou-se. Estavam sentados num restaurante chique quase deserto. Mouzon fez
menção de retirar a sua carteira para pagar a conta...
–
Deixe isto por minha conta, delegado – disse Felipe sorrindo. – O exército me
paga muito bem.
–
A Polícia Federal também.
–
Sabe de uma coisa, delegado? Gostei dos seus métodos.
–
Isto me envaidece, Felipe. Talvez eu precise do senhor no futuro...
–
Colaborarei no que puder... E, delegado... Senhor é o cacete!
Mouzon
saiu sorrindo.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VI - CAPÍTULO 1
Ele
não podia afirmar que sua vida conjugal fosse ruim...
Analisando
friamente o fato, agora que estava absolutamente só...
Não
era.
Absolutamente.
Sentado
com seus botões abertos, à maneira de bicheiro, a conclusão era uma só: não
podia reclamar de nada!
E
de fato não estava reclamando...
Apenas
refletindo acerca dos fantasmas que insistiam em assaltá-lo todas as vezes que
estava absolutamente só...
Era
sempre assim...
A
solidão fazia-o pensar, e em cada coisa absurda que ele muitas vezes corava!
Se
tomássemos como exemplos miríades de casais espalhados pelo mundo que
verdadeiramente possuíam problemas...
Um
caminhão deles...
Muitos
deles praticamente insolúveis, o que os levava invariavelmente ao único caminho
possível...
A
separação.
Ou
ao suicídio.
Nenhum
dos dois era o caso dele.
Assim
as coisas seriam muito mais fáceis. Casar – separar – morrer – alienar-se. Não
havia nada mais matemático, mais lógico, mais natural do que isto.
Possuía
um emprego sólido, estável, e sexualmente era muito feliz, entretanto tudo parava
por aí...
Algo
não ia bem, todavia...
Ele
não sabia expressar a noção exata de sua angústia, embora o abismo existente
entre ele e a esposa fosse visível a um observador mais atento...
E
era isso que deixava Felipe Corrientes num beco sem saída conceitual...
Bolas!
Porque
se sentia assim?
A
Flávia era uma daquelas mulheres que qualquer homem gostaria de ter na sua
cama...
Será
que de fato isto já não aconteceu?...
Quer
dizer... Entre ela e os outros?...
Este
era o menor dos males segundo a opinião de Felipe.
O
pior de tudo é que não havia a menor comunicação nas outras coisas...
Nas
mínimas!
Quer
dizer...
Talvez
isto não fosse tão verdadeiro assim...
Não
sabia...
Felipe
era um homem extremamente inteligente, e como tal entendia que um casamento não
se resume somente a sexo...
Não...
Havia
muitas outras coisas a assombrarem a vida aparentemente prosaica de Felipe
Corrientes...
Como havia uma
plêiade de outras coisas boas em sua vida conjugal, não podia negar...
Mas
a existência de Celha Regina era uma das assombrações que lhe tirava o sono...
Aquela
morena o perturbava de tal jeito que muitas vezes, durante as suas folgas,
Felipe perdia a noção do tempo e do espaço.
Mas
o que havia entre eles além de uma profunda amizade calcada numa camaradagem
natural tendo como pano de fundo um serviço patriótico de conservação de
fronteiras?
Este
era outro dos aspectos que o tiravam do sério...
Felipe,
no fundo, apesar de ser um bom oficial e gostar do seu trabalho, não via lógica
na condição de um militar, simplesmente porque isto cheirava à profissionalização
da violência, pura e simples...
De
repente, como num redemoinho de emoções, tudo lhe veio à mente...
Siboldi...
Mascarenhas...
Gusmão.
Aquela animosidade
gratuita era de estarrecer...
Porquê?
Porquê?!
Se ele descobrira
algo que não deveria a culpa não era sua...
Não lhe
interessavam as irregularidadezinhas de um punhado de soldados corruptos...
E as ironias de Armando
Paglia, então?...
Será que ele tinha
alguma coisa a ver com as rapinagens de seus subordinados?
E se tivesse? O que
ele, Felipe, tinha com isso? Que o deixassem em paz. Ele trataria de fazer a
mesma coisa...
Arre!
E, de repente, certo aspecto misterioso da
vida de Celha Regina chamou-lhe mais uma vez a atenção...
A
forma como eles haviam escapado ao fogo cruzado na Raposa Serra do Sol possuía
qualquer coisa de sobrenatural.
Até
agora, passados alguns dias desde o episódio, Felipe ainda não atinara como
eles haviam sobrevivido a um massacre quase certo.
Quem
era Celha Regina então?
Uma
mulher oriunda das camadas mais pobres da sociedade pernambucana, uma
sobrevivente, que ascendera na escala social graças a uma determinação
famélica. Havia mais alguém por trás da fachada da humilde vencedora de
obstáculos sociais?
Felipe
percebeu que este questionamento não o levaria a lugar algum...
Por
que isso tudo?
Só
havia uma certeza nos pensamentos de Felipe Corrientes: o Brasil cheirava mal;
e o mundo com ele; uma cloaca só, de material fétido repelente, mas ainda assim
ele reconhecia que havia lugar para coisas belas...
Flávia,
sua esposa...
Apesar
da frivolidade imbecil que a acompanhava...
E
havia Celha Regina...
E
um túnel escuro logo a seguir...
E
ele não enxergava luz no fim...
Ainda
assim tinha de atravessá-lo.
Quem
olhasse Felipe de perto, um sujeito pacato, ético acima de tudo, equilibrado de
uma maneira geral, bem colocado na vida, não imaginava o furacão a corroer-lhe
o bestunto...
É
muito mais fácil enxergar os outros do que a si mesmo...
Neste
momento os olhos de Felipe se fixaram no noticiário que ele olhava apenas como
um monte de imagens desconexas, um borrão de colorido inútil, sequenciando-se
interminavelmente...
Acabava
de falar sobre os assassinatos de dois sujeitos pertencentes aos quadros do
exército lotados no Norte, na periferia de São Paulo...
Meus
Deus! Mas é...
Siboldi!...
E Mascarenhas!
Logo depois fazia a
ponte com a misteriosa morte de outro militar e sua esposa no interior do Mato
Grosso...
E
o nome dele estava lá...
Gusmão!
Será que ele estava
perdendo a razão?...
Toda aquela
angústia inexplicável, incongruente, talvez o estivesse afetando de uma maneira
silenciosa, só agora acusando os primeiros sinais...
O
jornalista continuava a notícia dizendo que os assassinatos dos dois primeiros
oficiais, acontecidos na capital, tinham a característica de acerto de contas, com
aspectos ligados ao crime organizado, tráfico de drogas, etc., enquanto que o
segundo não passava de um acidente banal...
Aparentemente.
A única ligação
entre as três mortes consistia no fato dos oficiais pertencerem ao mesmo
grupamento, o 7º PEF de Roraima, mais nada...
Haveria uma ligação
entre os três falecimentos, ou podemos afixá-los ordinariamente a outros
capítulos no livro da violência que impera por toda parte?
O que estava
acontecendo que Felipe não enxergava?
Qual
a diferença entre a razão e a intuição, se é que esta era confiável mesmo?
Quando
Felipe, mais uma vez, elevava seus pensamentos a amiga Celha Regina – será que
ela estaria acompanhando o noticiário àquela hora? – Flávia acabava de adentrar
no apartamento...
Linda como sempre,
descabelada um pouco, suada e muito, em trajes de academia...
A saudação foi
genérica, pois o calor do reencontro já tinha se dado um dia antes, quando Felipe
retornara mais uma vez ao Rio para outra folga costumeira, mas a surpresa dela
não foi pequena ao ver o marido hipnotizado defronte a TV...
Quando Flávia
percebeu do que se tratava, ela acrescentou mais lenha à fogueira:
– Teve um homem que te ligou esta manhã,
meu amor...
E toca de subtrair
as roupas sem nenhum pudor...
– Você tinha saído
pra comprar pão... – continuou ela, despudorada, linda – Eu acordei meio que
sonâmbula pra atender ao telefone, depois voltei pra cama, aí depois, quando
acordei de vez, esqueci-me de te falar, mas, pelo jeito, ele queria falar sobre
este caso que tá dando na televisão...
–
Quem era o “cara”? – perguntou Felipe ainda meio robótico, de olho na televisão
faladeira, mas com as orelhas em pé.
–
Não sei não, Felipe... – e Flávia dirigiu-se diretamente ao banheiro, nua em
pelos, afinal estava em casa, e sempre era bela, acontecesse o que acontecesse,
a vida é que era linda, puxa vida! – Acho que tá anotado no papel ali na mesinha
do telefone, mas eu acho que ele era delegado...
Felipe
saltou do sofá com uma agilidade felina...
“Que
porra é essa?!”
Exclamou
pra dentro do seu ser estupefato.
Lá estava, de fato,
o telefone do sujeito, e um único nome, aliás um sobrenome...
Mouzon.
Aquela
vida sensata mais ou menos, o que restava dela, deixou de existir de uma hora
para outra...
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