terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A ERA DE OURO DOS FARSANTES - IV

   Uma das minhas maiores dúvidas enquanto autor consiste em descobrir se existe uma fórmula mágica, a pedra filosofal para se fazer sucesso literário...
   Se existe, me parece que as editoras também não a conhecem...
   É inegável que o livro no Brasil se tornou um grande negócio, mas e a literatura, com letra maiúscula, é um bom investimento ou não é? Acredito que muitos editores responderão de boca cheia a esta provocação: "se o autor for bom nós publicamos".
   Evidentemente que isto é uma grande falácia. Primeiro: o que os editores entendem como um bom autor?
   Por exemplo, H. P. Lovecraft pode ser considerado um bom autor? Hoje em dia, sim; os seus contos publicados no Brasil estão esgotados, e as livrarias sebo disputam no tapa um exemplar qualquer para exibí-lo em suas prateleiras repletas de teias de aranhas, porém, na época em que ele vivia, ninguém o publicou.
   E James Joyce, é um bom escritor ou não é? A crítica o chama de gênio; os mestres literários seguem seus passos, e, no entanto, no seu tempo de vida Joyce teve de bancar a publicação de várias de suas histórias.
   É assim que a banda toca...
   Diriam alguns...
   Notas dissonantes, harmonia pífia, diria eu...
   Os exemplos abundam.
   Os argumentos dos editores esbarram em questões estéticas? Não, muito pior do que isso! Apóiam-se nos indices da economia, e todos sabemos que Economia é a grande arte da prestidigitação.
   Na verdade, quaisquer conceitos, ou preconceitos, que se possam coligir em torno da difícil arte de escrever, eles sempre serão subjetivos. Digam o que quiser, mostrem os alfarrábios que desejarem. Àquela balela de que "estamos de olho no mercado editorial", e outras asneiras parecidas não se sustentam com o passar do tempo; não cabem mais.
   Só existe duas maneiras para se julgar um bom autor. A primeira, obviamente, é o termômetro chamado leitor, apesar de que, ultimamente, com a dissimulação velhaca do marcheting, isto também não quer dizer muita coisa.
   Então só nos resta uma prova: a do tempo. Somente o bom autor sobreviverá aos pósteros, ratificando e consolidando definitivamente seu nome na galeria dos eleitos do Parnaso. Infelizmente, nem sempre o escritor sobreviverá para assistir a sua apoteose, que muitas vezes só ocorrerá décadas depois de sua morte.
   Não quero julgar o que está certo ou errado, mas é inegável que nós temos uma tradição terceiromundista em termos editoriais. O que significa isto? Publica-se à socapa o que há de pior e o que há de melhor na língua inglesa...
   No segundo caso tudo bem! Mas enquanto isso, nós aqui do tupi or not tupi, ficamos de fora da "política" das editoras nacionais, principalmente nas grandes casas...
   Isto é outra coisa fora de dúvida! Os autores nacionais não têm vez nas editoras brasileiras, principalmente os novatos... E por que as coisas são assim?
   Perguntem aos editores!
   A grandeza do Brasil desponta em todos os quadrantes deste ínfimo planetinha periférico, menos nas editoras brasileiras...
   Caberá às nossas honradas casas editoriais erguerem seus olhos para esta grandeza desconhecida que fala português. Só assim o leitor brasileiro criará uma consciência crítica do que há de melhor e de pior na nossa literatura...
   Espero que nas décadas que estão por vir esta dúvida intelectual seja pulverizada por uma grande certeza...
   A boa literatura há de sobreviver... Sempre. Enquanto isto, continuem a publicar os seus pasquins.
   O belo, só pode ser visto como tal, porque há o feio...

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VI - CAPÍTULO 2


        No dia seguinte lá estavam eles...

       Cara a cara pela primeira vez em suas vidas...

       Certo constrangimento marcaria o primeiro momento daquele encontro desigual...

       Desigual pelas normas burocráticas envolvidas, pelas idiossincrasias de cada um enquanto cidadãos, pelos temperamentos marcadamente divergentes, não tanto pelas idéias em si, o que mais tarde ficaria flagrante, e sim pelo próprio histórico psíquico de cada um dos homens...

       Uma coisa natural.

       Como cabia a Mouzon a prioridade profissional do momento, ele saiu na frente.

        – O senhor era companheiro de regimento das vítimas, não era? – começou Mouzon pisando em ovos, porque sabia que aquele terreno era movediço...

       Mais do que isso, lamacento.

       Felipe começou abanando a cabeça, concordando, ainda com o receio dos seus fantasmas particulares.

       – Éramos – retrucou Felipe lacônico ao extremo.

       Mouzon riu-se da lógica da situação.

       – Posso lhe perguntar qual é o seu posto no exército, Senhor Corrientes?

       – O senhor ainda não entrevistou ninguém?

       Mouzon deu um sorrisinho de escárnio. Este oficial até que era bem espertinho, o tal do Corrientes. Talvez fosse mais fácil tirar leite de pedra do que fazê-lo abrir a boca espontaneamente.

       – Eu tentei – comentou Mouzon lacônico.

       Felipe começou a estudar o homem que tinha a sua frente, analisar suas cartas, sua carantonha, seus tiques, uma vez que ele mesmo, a seu modo, possuía a mesma têmpera do policial.

       – O senhor deve ter tido um bocado de dificuldades lá no 7º PEF...

       – De fato... Há algo lá que não está bem esclarecido... – disse Mouzon indecifrável.

Felipe esquivou-se como pôde, então, como qualquer palavra mal colocada poderia ser uma porta aberta para informações não autorizadas, limitou-se a sorrir.

       Mouzon, entretanto, insistiu:

       – Acertei ou não?

       Mouzon mostrava-se muito tranqüilo, e seguro de si, enquanto Felipe continuava lacônico.

       – Infelizmente não me deixaram chegar muito fundo, Oficial Corrientes...

       – Bem, delegado, se eles bloquearam o seu acesso às informações, talvez eu não possa fazer muito pelo senhor...

       – Perfeitamente, Corrientes; eu entendo; não quero ferir nenhum regulamento militar, mas existem informações que eu pude pegar com as respectivas famílias, de modo que...

       – Como o senhor chegou a mim?

Mouzon voltou a sorrir com um ar de bufão. A partir deste instante ele aceitaria o papel hierarquicamente inferior que lhe cabia nesta investigação, até porque os peixes que nadavam neste lago obscuro, ele sabia disto muito bem, possuíam barbatanas bem maiores que as suas.

– Os familiares de uma das vítimas me disseram que os oficiais assassinados não pertenciam aos quadros normais do exército. Agora, que tipo de trabalho exerciam, isto não me contaram.

Felipe não engoliu a isca. Geralmente, as famílias dos militares não sabiam a diferença entre um oficial regular do exército e outro do setor de inteligência. Por isso, limitou-se a declarar:

       – Segundo eu vi na reportagem, a morte do sargento Gusmão foi uma tragédia, delegado.

       Desta feita Mouzon não sorriu aquele seu risinho de pseudobobo, mas sim o de um jogador bem compenetrado.

       – O Senhor está certo. Por um acaso o senhor sabe que tipo de vida esses homens levavam quando fora de suas fardas, Senhor Corrientes?    

       – Pode me chamar de Felipe, delegado. Não estou no quartel. Agora sou um cidadão como outro qualquer.

       – Bem... Felipe. Você não os conhecia pessoalmente? Ou conhecia?

       – Absolutamente. Minha relação com esses homens era puramente profissional; não tinha qualquer relação de amizade com nenhum deles fora do quartel...

       – O Senhor... Você tinha alguma amizade com algum outro membro deste batalhão?

       Felipe hesitou um pouco. Na verdade, ele tencionava aproveitar-se desta ocasião para descobrir coisas sobre Siboldi e os outros que até agora não fora capaz de conseguir. Não tinha certeza se era a hora certa de implicar Celha numa coisa nebulosa, até mesmo porque sobre a própria vida da amiga ainda pairava muita névoa neste oceano de implicações variadas, onde cada passo poderia significar encrenca.

       Ainda hesitando, o que Mouzon percebeu logo de imediato, Felipe falou:

       – Nada muito profundo, eu acho...

       – Mas tinha?

       – É...

       – Você pode me revelar o nome desta pessoa?

       Felipe fez cara de assustado.

       – Só o nome... Quer dizer... Isso se não for infringir algum dos regulamentos...

       Felipe continuava hesitando para ganhar mais tempo.

       – Qual era mesmo a missão principal do batalhão ao qual você estava lotado?

       Felipe fitou o delegado nos olhos, penetrantemente. Era óbvio que o policial estava tentando confundi-lo, talvez para confrontá-lo, pegá-lo em contradição.

       – Desculpa, Felipe. Qual o nome do seu amigo?...

       E Felipe divagava.

       – Pode dizer? Não pode?

       – Celha...

       As sobrancelhas de Mouzon ergueram-se, quase surpreso. “Era uma mulher!”

       – Celha Regina... – voltava a balbuciar Felipe.

       Mouzon inchava de satisfação.

       – Do Nascimento – completou Felipe.

       Mouzon passou a anotar tudo, até suspiros e interjeições, com a nova ortografia e tudo.

       – Mas, por favor, delegado, veja lá o que senhor vai fazer com esta informação... Eu colaboro com o senhor... – Mouzon concordava com os dentes brilhando. – E o senhor colabora comigo.

       – Não se preocupe, tenente. Sou um túmulo! Você sabe onde mora essa...

       – Mas eu não lhe disse qual era o meu posto no exército, delegado – volveu Felipe entre surpreso e irritado.

       Mouzon sorriu, corou, se emendou, tudo numa seqüência mais ou menos lógica do ponto de vista da psicanálise.

       – O senhor não me disse como chegou até a minha pessoa nesta investigação, delegado...

       Mouzon parou de escrever.

       – Estamos colaborando ou não estamos? – insistiu Felipe.

       – Sabe o que é, Felipe? Acho que vocês... das forças especiais... não gostariam muito de saber que estão sendo investigados pela Polícia Federal...

       – O senhor foi mais longe do que eu imaginava, delegado...

       – Todo policial que se presa, Felipe, tem suas fontes... É como um jornalista...

       – Aí você descobriu...

       – Que os três mortos pertenciam aos quadros daquilo que vocês chamam S-2.

       – E o que mais o senhor descobriu?

       – Felipe... Vamos e venhamos, meu jovem... Claro está que alguma coisa fugiu ao controle de vocês lá na Amazônia...

       – Eu continuo sem uma resposta à minha solicitação.

       – Não tenho nenhum indício ainda pra seguir, rapaz... Mas a maneira como o capitão Ernesto Siboldi e o tenente Jorge Mascarenhas foram brutalmente assassinados, indica, no mínimo, que eles tinham ligações com o crime organizado. É tudo o que eu posso supor de momento. Você sabe mais alguma coisa...?

       Felipe remoia mil coisas por dentro.

       – Isto talvez faça parte das suas atribuições constitucionais, tenente – volveu Mouzon.

       – A minha posição não é nada confortável...

       – Tudo bem, Felipe. Você já me ajudou bastante...

       – Mas agora eu é que estou curioso, delegado...

       – Porquê?

       – Porque eles não permitiram o seu acesso ao quartel de Roraima?

       – Segurança nacional. Pelo menos foi o que o seu comandante alegou. Ainda que os assassinatos do capitão Siboldi e do tenente Mascarenhas estejam plenamente configurados, o seu comandante...

       – Coronel Paglia – disse Felipe espontaneamente.

       – Ele mesmo – retrucou Mouzon com tranquilidade.

       – Não anote isto, delegado...

       – Porque não, Felipe? Não há nada de comprometedor num nome. Qualquer jornalecuzinho pode obter um nome...

       – Mouzon, o senhor sabe com o que estamos lidando aqui?

       – É Palha, com LH? – perguntou Mouzon, tergiversando.

       – Não. É nome de origem italiana. P-A-G-L-I-A.

       – PAGLIA?! Esquisito!

       – É assim mesmo.

       – Bom... Esse tal de “Paglia” alegou que os assassinatos dos oficiais seriam investigados pela sua própria gente...

       – O quê?!

       – Foi o que ele me disse.

       – Isto é muito estranho...

– O quê?

       – Não me consta que o exército investigue crimes comuns...

       – E quem lhe disse que se trata de crimes comuns, tenente?

       – Você. Você acabou de dizer que o caso tem a marca do crime organizado.

       – Há uma grande diferença entre parecer e ser, “Tenente Corrientes”. Eu também disse não possuir muitas pistas...

       – A não ser ter descoberto o meu nome não sei aonde... Por acaso não foi no bolso do Siboldi ou do Mascarenhas, foi delegado?

– Porquê? Haveria algum motivo para o seu nome estar lá?

– Isto não seria uma coisa totalmente impossível, delegado...

– Eu estou achando que o senhor tem uma ligação, digamos, mais estreita com esses homens que morreram do que está querendo me dizer...

– Talvez...

– Você é um bom jogador, Felipe...

– Sou nada! Eu perco sempre!

– Um dia a gente acaba ganhando...

– Diga-me como chegou até meu nome e eu lhe direi coisas que talvez lhe ajudem bastante nesse caso...

– Tá vendo? Acabas de ganhar um tento...

– Num enrola!

– O seu nome me foi sugerido pelo próprio Paglia...

– O coronel Paglia?!

– Exato.

– Mas porquê? Não estou entendendo.

– Indiretamente, claro.

– Continuo sem entender, Mouzon.

– Inicialmente, os assassinatos dos oficiais do seu batalhão estavam a cargo da polícia de São Paulo, quando veio a lume o caso de Mato Grosso, os falecimentos de Gusmão e sua esposa num incêndio aparentemente acidental, no mesmo dia dos outros. Quando as identidades dos homens foram confirmadas, tanto a polícia de São Paulo quanto a de Mato Grosso acharam melhor deixar o caso por nossa conta...

– Mas onde o Paglia e eu entramos nesta história?

– Naquele momento, como agora, eu continuava sem pistas. Entrei em contato com o Comando do Leste em São Paulo, e eles me garantiram que eu poderia entrar em contato com o Comandante Paglia em Roraima a fim de cumprir meu dever...

– E aí?

– Liguei para o 7º PEF, para não viajar à toa para a Amazônia. Quem sabe eu não conseguia alguma coisa por telefone mesmo, alguma luz que iluminasse o caminho das minhas investigações? O Paglia me atendeu muito bem, mas quando eu comecei o cerco sobre as ligações dos seus homens com o crime organizado, ele disse, simplesmente, desconhecer qualquer coisa a respeito desse assunto e que não poderia me ajudar em nada, então, talvez para confirmar sua total ignorância acerca das atividades dos seus homens fora do batalhão, ele mencionou o seu nome, dizendo que o único desvio de conduta que ele tinha conhecimento acerca dos seus oficias fora uma briguinha bairrista tola entre os falecidos e você...

Felipe parou para pensar.

O que poderia levar Paglia a mencionar esta “briguinha bairrista tola” a um delegado da PF, se o caso não representava nada de fato? Talvez ele não quisesse admitir que os homens em quem ele mais confiasse não fossem tão confiáveis quanto imaginava, então usou do poder que lhe era conferido para abafar o caso, para não atrapalhar a própria investigação que seus homens realizavam lá na Raposa Serra do Sol...

Se isto fosse verdade, o caso parecia-lhe razoável e plenamente justificável...

Se.

Mas a tal da intuição não parava de tagarelar-lhe ao ouvido...

Felipe foi em frente:

– Qual a sua opinião, de fato, delegado Mouzon, em relação a este caso?

– Nenhuma, Felipe. Ainda.

Os dois voltaram a se encarar expectantes, mas desta feita não como adversários num duelo, e sim como companheiros de um mesmo time, que desejam o mesmo resultado: a verdade.

– O que foi delegado?

– Você não está esquecendo nada?

– Esquecendo...?

– Eu cumpri a minha parte e lhe disse como cheguei ao seu nome, Felipe...

– Certo. Agora me compete cumprir a minha parte no acordo...

– Não veja a coisa por este lado, Felipe. Veja em mim uma pessoa como você mesmo, que está apenas cumprindo a sua missão constitucional...

– Acontece que eu e o Siboldi éramos desafetos, Mouzon – disse Felipe sem mais rodeios. – Isto chegou quase às vias de fato, e o comandante Paglia teve de intervir para botar ordem na casa...

– E?...

– Era isso que eu tinha pra te contar.

– E o Mascarenhas e o Gusmão?

– Eles eram peixinhos do Siboldi...

– E vocês quatro quase saíram na porrada em pleno quartel... – Mouzon voltava a fazer as suas anotações. – Correto... E que mais?

– Mas isso tudo tinha um motivo muito mais grave; não era uma simples briguinha bairrista como quer o Paglia...

– Eu imaginava isto... Você pode me dizer o motivo, Felipe?

– Não posso... Quer dizer... Não havia nenhum... No começo... Mas antes que você comece a fazer conjecturas, eu sei que este é o seu serviço e tudo, mas eu não tenho quaisquer provas contra aqueles homens...

– Relaxa, Felipe! Eu não sou nenhum louco pra incriminar alguém sem todas as provas checadas. Vá em frente...

– Certa noite, enquanto eu voltava para meu dormitório, ouvi uma conversa solta entre o Siboldi e o Gusmão...

– O que eles conversavam?

– Não me lembro exatamente das palavras que o Gusmão dizia para o capitão Siboldi, mas tinha qualquer coisa a ver com informações sigilosas de dentro do batalhão que eles estariam repassando pra fora do quartel. Isso, claro, pode ter mil e uma implicações, além do que o pouco que eu ouvi não dá pra completar nenhum quadro verossímil...

Mouzon parou de anotar e levou a mão ao queixo pensativo.

– A quem exatamente eles repassariam essas informações secretas?

– Eu só posso dizer que era um código, mas aqui eu não posso ir além, senão estarei cometendo um delito grave contra o regulamento...

– Não! Por favor! Eu entendo. Você já me ajudou bastante, mas ainda poderia me ajudar um pouquinho mais...

– Por favor, Mouzon. Assim você me compromete...

– Que isso, Felipe! Só mais uma perguntinha...

– Sobre quem?

– Essa tal de Celha Regina, sua amiga, estava contigo nessa hora?

– Não. Mas ela sabe de tudo. Foi uma das que ajudou a separar eu e o Siboldi.

Mouzon anotava tudo, como um romancista, que vai tecendo sua teia infernal de relações perigosas.

– É claro que agora eu sou um dos suspeitos da morte do Siboldi e do Mascarenhas...

– Você se esqueceu do Gusmão, Felipe... – Mouzon olhou-o enigmaticamente. Felipe parecia surpreso. – Não está claro que a morte dele foi um acidente, se recorda?

– Ah, é!

– E a sua amiga Celha também.

– Ela também, claro... Como você escreveu o nome dela?

– Como eu escrevi... – Mouzon foi olhar no seu caderninho de anotações. – Mas o que isso tem a ver...

Felipe esticou o pescoção e olhou no caderninho do delegado da Polícia Federal.

– O nome dela é com LH. É estranho mesmo.

– Que esquisito!

– Realmente... É tudo muito esquisito.

– Muito. Por falar nisso... O seu comandante também...

– O Paglia?

– Tecnicamente ele também é um suspeito.

– É?

– Claro!

– Mas a figura chave é a desse desconhecido pra quem Siboldi e os seus capangas estavam contrabandeando informações sigilosas?

– Ainda é cedo pra fazer qualquer avaliação. Tudo pode ser apenas a pontinha do iceberg.

       – Qualquer coisa a mais que eu possa fazer por você, Mouzon...

       – Obrigado, Felipe. Eu percebi que você está muito interessado em colaborar.

       Felipe percebeu a malícia por trás das palavras do delegado. Contudo não se importou caso estivesse atraindo uma suspeita mais forte para o seu lado. O que ele queria muito mais do que esclarecer este caso, era descobrir o que rolava nos bastidores deste acontecimento, ou seja, quem era o responsável maior pela instabilidade na região Amazônica. Este era o fator que ele ocultara propositadamente a Mouzon.

       Ainda assim ele jogou mais uma vez:

       – Será que nós estamos prestes a descobrir uma das rotas do tráfico de drogas no Brasil, delegado?

       Entretanto, ainda que desconhecesse a chave para o maior dos mistérios, Mouzon era esperto demais para se deixar fisgar.

       – Digo o que já disse antes – retrucou. – Há muitas estrelas envolvidas neste jogo que ainda não apareceram. Isso acontece o tempo todo neste país. Existem dois Brasis, Felipe. O permitido e o inacessível. Este último não é para profissionais como eu; talvez pras gerações posteriores...

       – É este Brasil, o inacessível, que dá nojo em muita gente...

       – Muita gente, né?

       – Pode me incluir nesta lista.

       – Eu também me incluo nela...

       Mouzon levantou-se. Estavam sentados num restaurante chique quase deserto. Mouzon fez menção de retirar a sua carteira para pagar a conta...

       – Deixe isto por minha conta, delegado – disse Felipe sorrindo. – O exército me paga muito bem.

       – A Polícia Federal também. 

       – Sabe de uma coisa, delegado? Gostei dos seus métodos.

       – Isto me envaidece, Felipe. Talvez eu precise do senhor no futuro...

       – Colaborarei no que puder... E, delegado... Senhor é o cacete!

       Mouzon saiu sorrindo.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VI - CAPÍTULO 1


       Ele não podia afirmar que sua vida conjugal fosse ruim...

       Analisando friamente o fato, agora que estava absolutamente só...

       Não era.

       Absolutamente.

       Sentado com seus botões abertos, à maneira de bicheiro, a conclusão era uma só: não podia reclamar de nada!

       E de fato não estava reclamando...

       Apenas refletindo acerca dos fantasmas que insistiam em assaltá-lo todas as vezes que estava absolutamente só...

       Era sempre assim...

       A solidão fazia-o pensar, e em cada coisa absurda que ele muitas vezes corava!

       Se tomássemos como exemplos miríades de casais espalhados pelo mundo que verdadeiramente possuíam problemas...

       Um caminhão deles...

       Muitos deles praticamente insolúveis, o que os levava invariavelmente ao único caminho possível...

       A separação.

       Ou ao suicídio.

       Nenhum dos dois era o caso dele.

       Assim as coisas seriam muito mais fáceis. Casar – separar – morrer – alienar-se. Não havia nada mais matemático, mais lógico, mais natural do que isto.

       Possuía um emprego sólido, estável, e sexualmente era muito feliz, entretanto tudo parava por aí...

       Algo não ia bem, todavia...

       Ele não sabia expressar a noção exata de sua angústia, embora o abismo existente entre ele e a esposa fosse visível a um observador mais atento...

       E era isso que deixava Felipe Corrientes num beco sem saída conceitual...

       Bolas!

       Porque se sentia assim?

       A Flávia era uma daquelas mulheres que qualquer homem gostaria de ter na sua cama...

       Será que de fato isto já não aconteceu?...

       Quer dizer... Entre ela e os outros?...

       Este era o menor dos males segundo a opinião de Felipe.

       O pior de tudo é que não havia a menor comunicação nas outras coisas...

       Nas mínimas!

       Quer dizer...

       Talvez isto não fosse tão verdadeiro assim...

       Não sabia...

       Felipe era um homem extremamente inteligente, e como tal entendia que um casamento não se resume somente a sexo...

       Não...

       Havia muitas outras coisas a assombrarem a vida aparentemente prosaica de Felipe Corrientes...

Como havia uma plêiade de outras coisas boas em sua vida conjugal, não podia negar...

       Mas a existência de Celha Regina era uma das assombrações que lhe tirava o sono...

       Aquela morena o perturbava de tal jeito que muitas vezes, durante as suas folgas, Felipe perdia a noção do tempo e do espaço.

       Mas o que havia entre eles além de uma profunda amizade calcada numa camaradagem natural tendo como pano de fundo um serviço patriótico de conservação de fronteiras?

       Este era outro dos aspectos que o tiravam do sério...

       Felipe, no fundo, apesar de ser um bom oficial e gostar do seu trabalho, não via lógica na condição de um militar, simplesmente porque isto cheirava à profissionalização da violência, pura e simples...

       De repente, como num redemoinho de emoções, tudo lhe veio à mente...

       Siboldi...

Mascarenhas...

Gusmão.

Aquela animosidade gratuita era de estarrecer...

Porquê?

Porquê?!

Se ele descobrira algo que não deveria a culpa não era sua...

Não lhe interessavam as irregularidadezinhas de um punhado de soldados corruptos...

E as ironias de Armando Paglia, então?...

Será que ele tinha alguma coisa a ver com as rapinagens de seus subordinados?

E se tivesse? O que ele, Felipe, tinha com isso? Que o deixassem em paz. Ele trataria de fazer a mesma coisa...

Arre!

 E, de repente, certo aspecto misterioso da vida de Celha Regina chamou-lhe mais uma vez a atenção...

       A forma como eles haviam escapado ao fogo cruzado na Raposa Serra do Sol possuía qualquer coisa de sobrenatural.

       Até agora, passados alguns dias desde o episódio, Felipe ainda não atinara como eles haviam sobrevivido a um massacre quase certo.

       Quem era Celha Regina então?

       Uma mulher oriunda das camadas mais pobres da sociedade pernambucana, uma sobrevivente, que ascendera na escala social graças a uma determinação famélica. Havia mais alguém por trás da fachada da humilde vencedora de obstáculos sociais?

       Felipe percebeu que este questionamento não o levaria a lugar algum...

       Por que isso tudo?

       Só havia uma certeza nos pensamentos de Felipe Corrientes: o Brasil cheirava mal; e o mundo com ele; uma cloaca só, de material fétido repelente, mas ainda assim ele reconhecia que havia lugar para coisas belas...

       Flávia, sua esposa...

       Apesar da frivolidade imbecil que a acompanhava...

       E havia Celha Regina...

       E um túnel escuro logo a seguir...

       E ele não enxergava luz no fim...

       Ainda assim tinha de atravessá-lo.

       Quem olhasse Felipe de perto, um sujeito pacato, ético acima de tudo, equilibrado de uma maneira geral, bem colocado na vida, não imaginava o furacão a corroer-lhe o bestunto...

       É muito mais fácil enxergar os outros do que a si mesmo...

       Neste momento os olhos de Felipe se fixaram no noticiário que ele olhava apenas como um monte de imagens desconexas, um borrão de colorido inútil, sequenciando-se interminavelmente...

       Acabava de falar sobre os assassinatos de dois sujeitos pertencentes aos quadros do exército lotados no Norte, na periferia de São Paulo...

       Meus Deus! Mas é...

Siboldi!...

E Mascarenhas!

Logo depois fazia a ponte com a misteriosa morte de outro militar e sua esposa no interior do Mato Grosso...

       E o nome dele estava lá...

Gusmão!

Será que ele estava perdendo a razão?...

Toda aquela angústia inexplicável, incongruente, talvez o estivesse afetando de uma maneira silenciosa, só agora acusando os primeiros sinais...  

       O jornalista continuava a notícia dizendo que os assassinatos dos dois primeiros oficiais, acontecidos na capital, tinham a característica de acerto de contas, com aspectos ligados ao crime organizado, tráfico de drogas, etc., enquanto que o segundo não passava de um acidente banal...

       Aparentemente.

A única ligação entre as três mortes consistia no fato dos oficiais pertencerem ao mesmo grupamento, o 7º PEF de Roraima, mais nada...

Haveria uma ligação entre os três falecimentos, ou podemos afixá-los ordinariamente a outros capítulos no livro da violência que impera por toda parte?

O que estava acontecendo que Felipe não enxergava?

       Qual a diferença entre a razão e a intuição, se é que esta era confiável mesmo?

       Quando Felipe, mais uma vez, elevava seus pensamentos a amiga Celha Regina – será que ela estaria acompanhando o noticiário àquela hora? – Flávia acabava de adentrar no apartamento...

Linda como sempre, descabelada um pouco, suada e muito, em trajes de academia...

A saudação foi genérica, pois o calor do reencontro já tinha se dado um dia antes, quando Felipe retornara mais uma vez ao Rio para outra folga costumeira, mas a surpresa dela não foi pequena ao ver o marido hipnotizado defronte a TV...

Quando Flávia percebeu do que se tratava, ela acrescentou mais lenha à fogueira:

       – Teve um homem que te ligou esta manhã, meu amor...

E toca de subtrair as roupas sem nenhum pudor...

– Você tinha saído pra comprar pão... – continuou ela, despudorada, linda – Eu acordei meio que sonâmbula pra atender ao telefone, depois voltei pra cama, aí depois, quando acordei de vez, esqueci-me de te falar, mas, pelo jeito, ele queria falar sobre este caso que tá dando na televisão...

       – Quem era o “cara”? – perguntou Felipe ainda meio robótico, de olho na televisão faladeira, mas com as orelhas em pé.

       – Não sei não, Felipe... – e Flávia dirigiu-se diretamente ao banheiro, nua em pelos, afinal estava em casa, e sempre era bela, acontecesse o que acontecesse, a vida é que era linda, puxa vida! – Acho que tá anotado no papel ali na mesinha do telefone, mas eu acho que ele era delegado...

       Felipe saltou do sofá com uma agilidade felina...

       “Que porra é essa?!”

       Exclamou pra dentro do seu ser estupefato.

Lá estava, de fato, o telefone do sujeito, e um único nome, aliás um sobrenome...  

Mouzon.

       Aquela vida sensata mais ou menos, o que restava dela, deixou de existir de uma hora para outra...