Essa merda foi um tédio a manhã toda...
Puta
que o pariu!
Só
no banheiro, pra retocar a maquiagem, eu fui umas três vezes! Fora as outras vezes...
Que
saco!
Eu não tenho nada
pra fazer...
Pouca
gente veio trabalhar hoje...
As
salas estão praticamente vazias...
Há
um grupo que ainda está na Amazônia, colhendo informações depois da tempestade
que assolou a reserva Raposa Serra do Sol, mas do pessoal do suporte, eu só vi
aqui hoje o Pereira...
Acho
que ele saiu com a Dona Wirna...
Eu
a vi chegar, mas numa dessas minhas idas ao banheiro – estou um pouquinho
nervosa hoje, não sei, acho que alguma coisa vai acontecer, ai! – mas depois
ela saiu outra vez...
O
Celso ainda não deu as caras hoje...
Eles
saíram muito tarde daqui ontem...
Ele
e a dona Wirna...
Oito
e meia da noite ela me mandou embora...
Quer
dizer, que horas eles devem ter saído?...
Sei
lá!
O
meu expediente termina as seis, como todo mundo normal, mas a dona Wirna mandou
que eu ficasse plantada ao lado do telefone porque aguardava notícias
importantes da Raposa...
Acabou
que as tais notícias não vieram...
Na
verdade eu não vi nada do que se passou naquela sala, depois que eles se
trancaram lá por volta das cinco e trinta e cinco...
Cala-te
boca!
Não
tenho nada com a vida deles...
Todos
dois são jovens...
Bonitos
e solteiros!
Aliás,
acontecem umas coisas aqui na Sweetwaters muito esquisitas...
Coisas
pra 007 ver...
Cala-te
boca!...
Por
falar em bonito...
Eu
tenho sentido falta do Alberto...
Ele
é um dos que ficaram lá na Amazônia...
“Ah,
Sylvinha, como eu gosto desses teus cabelos dourados, lisinhos”...
Adoro
quando ele fala neste tom comigo...
Se
eu não fosse casada!
Mas
ele é também!...
Nossa!
Homem não vale porra nenhuma mesmo!...
Não
coloco a mão no fogo nem pelo meu...
Aliás
por homem nenhum!...
O
Alberto é outro galinha daqui da Sweetwaters...
Ele
já pegou a Thereza e a Paula...
Todo
mundo sabe disso...
E
é casado, hem!...
Realmente...
Homem
não vale nada!...
“Esse
seu rostinho cheio de sardinhas, Sylvinha”, diz ele pra mim. “Você tem um
corpinho de colegial, sabia?”
Eu
sempre tive esse corpitcho... desde nova... Quer dizer, quem me vê falar assim
vai pensar que eu sou muito velha, né?...
Que
nada! Só tenho 31 anos de idade...
Ainda
dou pro gasto!...
Se
eu não fosse casada...
O
telefone toca na mesa de dona Sylvia Salgado...
–
Sweetwaters, boa tarde!... Não, ela ainda não voltou... Mas não deve demorar
muito não... O Seu Celso? Ainda não apareceu por aqui hoje... Não, não sei...
Ela deve estar no almoço... Dona Wirna almoça cedo... Eu direi a ela... Seu
Sérgio Tavares... (Sylvia anota num bloquinho que fica na sua mesa) Folha da
Tarde?... Pode deixar... Eu passo seu recado pra ela... Muito obrigada. Pro
Senhor também.
Esse
cara ligou ontem pra dona Wirna, mas ela estava trancada lá no escritório com o
Celso Pontes e não quis atender...
Eu
dei o recado quando ela me dispensou, mas, pelo jeito, ela não retornou a
ligação pro tal jornalista...
Que
se foda! Eu fiz a minha parte...
Sempre
faço...
Não
deixo o meu na reta não...
Wirna
Schwarschlegell entra neste instante, para surpresa de Sylvia, que ainda estava
divagando...
–
Ah! Dona Wirna! O tal do Sérgio Tavares acabou de ligar pra senhora. O Seu
Celso ainda não chegou. Por acaso o Pereira estava com a senhora? É que a
esposa dele ligou.
–
Sylvia, por favor. Assim que o Celso chegar não o deixe ficar voando por aí.
Mande-o direto para minha sala, está bem?
–
Pode deixar, dona Wirna...
Até
que essa austríaca não tem quase sotaque...
Ela
não dá sopa pro Celso...
Marca
ele ali, ó...
–
Ah, seu Celso... (ele vai entrando e só cumprimenta Sylvia ligeiramente com um
aceno de cabeça. Não sorri nem nada) Dona Wirna quer falar com o senhor... (ele
abre a porta do escritório particular dos dois e fecha a porta com
estardalhaço) Acho que é urgente...
Estão
cara a cara outra vez.
Entreolharam-se
discretamente, olhar indecifrável, mas algo não caminha bem como deveria...
–
O tal do Sérgio Tavares voltou a me ligar agora pela manhã – diz Wirna um pouco
preocupada, deixando o alemão natalício imiscuir-se no português bem articulado.
–
Que que tem? – retruca Celso. Parece irritado. – Deixa ele vir. Qual o
problema?
–
Ele vai nos bombardear de perguntas novamente.
–
Não é o que a gente quer?
–
A coisa tá muito confusa na Raposa Serra do Sol, Celso. A nossa equipe
continua...
–
A opinião pública tem que saber, Wirna! De uma maneira ou de outra...
–
Não é melhor nós trabalharmos o terreno mais um pouco?
–
De jeito nenhum! Chama o Sérgio Tavares...
Wirna
vai até a porta do escritório e a entreabre.
–
Sylvia, liga pro Sérgio Tavares. Diz que ele pode vir conversar conosco.
–
Sim senhora, dona Wirna...
Não
demorou muito, e Sérgio Tavares adentrou a Sweetwaters com um ar de triunfo
estampado no rosto.
Não
sei porque, mas eu não gosto muito desse cara...
O
comentário partiu da cabecinha de Sylvia Salgado, a secretária de Wirna
Schwarschlegell.
Não
sei, mas ele tem qualquer coisa de mentiroso...
Que nem certos
advogados...
Concluiu
Sylvia, não muito diplomática.
Sérgio
Tavares entrou no escritório de Wirna e Celso...
Celso
Pontes fechou a porta...
Mas
Sylvia não desligou as orelhas...
–
Por favor, senhor Sérgio Tavares. Sente-se...
–
Pode me chamar somente pelo nome... Você é Wirna Schwarschlegell? – ela
confirmou com um gesto simples de cabeça. – Você então só pode ser o Celso?...
Celso
se aproximou do jornalista e lhe apertou a mão, cordialmente. Sentou ao lado
dele. Os dois estavam de frente para Wirna, colocada atrás da enorme mesa de
reuniões.
–
Você é que foi testemunha dos acontecimentos na reserva Raposa Serra do Sol? –
Voltou à carga Sérgio Tavares.
–
Eu mesmo – confirmou Celso.
–
O que, exatamente, está acontecendo por lá?
–
Você ainda não sabe? – devolveu a pergunta Celso.
–
O mundo todo tem conhecimento, mas eu gostaria de esmiuçar mais detalhes. O meu
jornal publicou uma matéria de página inteira sobre os acontecimentos da Raposa
Serra do Sol, não sei se vocês leram?... – ambos tinham lido. – Então. Estou
viajando pra Boa Vista amanhã. A Folha da Tarde vai fazer uma matéria especial
na semana que vem...
–
Isto é excelente, Sérgio! – disse Wirna verdadeiramente entusiasmada. – Os
índios, os bichos, o meio ambiente, todos vão adorar!
–
Existem fortes indícios de que aquela área de proteção está praticamente
loteada, e a maioria dos proprietários seria estrangeira que em breve farão
valer os seus direitos legais junto ao governo brasileiro, ou seja,
transformariam tudo numa região para turismo internacional e para exploração de
suas riquezas. Vocês confirmam estas notícias?
–
Se é uma área de preservação, Sérgio... – replicou Wirna com alguma ironia –
como podem lotear?
–
Os próprios índios teriam loteado a reserva.
–
Toda a área que compreende a reserva Raposa Serra do Sol – continuou Wirna – é
de uso dos índios, Sérgio, mas é a República Federativa do Brasil quem tem o
controle sobre toda a região...
Sérgio
Tavares virou-se para Celso e perguntou:
–
O que você me diz sobre isso?
–
Olha, Sérgio, é como ela falou...
–
Não, eu quero saber o que está acontecendo lá de fato. Você esteve lá e viu. Eu
vou lá investigar, e semana que vem vou publicar uma matéria que pode desmentir
tudo ou confirmar as barbaridades que andam falando a respeito.
–
A situação é caótica, Sérgio – disse Celso, com um ar de quem anuncia uma missa
de sétimo dia. – Tudo isso que a Wirna falou é verdade... No papel. Os colonos já
estão lá há muito tempo, desde antes da década de vinte do século passado. Os
rizicultores, hoje, reivindicam o sul da reserva, mas é possível que aquela
região esteja toda comprometida...
Sérgio
Tavares olhava ora para Wirna, ora para Celso, tentando encontrar algum furo na
história, pois não acreditara na mesma.
–
Comprometida por quem? – perguntou o jornalista.
–
Você irá comprovar com seus próprios olhos, Sérgio – completou Celso, como que
adivinhando seus pensamentos. – Pode ser que alguns chefes tribais já estejam
comprados. Mas não são eles os principais interessados em que aquela área passe
a ser uma região internacional. Os índios imaginam – pelo menos os mais
ingênuos – que sob uma administração internacional sua cultura tenha maiores
chances de ser preservada, entretanto, pra piorar a situação, alguns dos
caciques não estão nem aí pra Amazônia ou seus povos, querem mesmo é ficar
ricos com as promessas dos capitalistas...
–
Mas como ela seria administrada... Como a Antártida?
–
Isso tudo não passa de terror virtual, mas é claro que a presença estrangeira
na região é muito grande...
–
Isto é um absurdo! – espocou Sérgio Tavares. – O mundo não aceitaria que
algumas nações comandassem a Amazônia!
–
Essas “nações” não comandam o petróleo, a economia? É o mesmo quadro em todo
lugar – continuou Celso com resignação. – Não sei se a Folha da Tarde vai ter
colhão pra publicar a verdade.
–
E o povo brasileiro, o que acha disso?
–
Qual povo brasileiro? – inquiriu Wirna. Não obtendo resposta, ela mesma
respondeu: – O povo brasileiro está sempre à margem de todas as decisões. Mas
não foi sempre assim ao longo de sua história?
–
Algum dia isto pode acabar...
–
Algum dia, Sérgio – volveu Wirna, debochada, taxativa. – Mas não neste século.
–
Bem... Muito obrigado – continuou Sérgio Tavares, visivelmente consternado. – Essas
informações que vocês me deram... Posso citar a Sweetwaters na reportagem?
Wirna
e Celso se entreolharam demoradamente.
–
É melhor não – disse Wirna à vontade. – A verdade virá à tona mais cedo ou mais
tarde. O tipo de informação que nós temos divulgado nunca passou da superfície;
aquela que todo mundo sabe: grileiros, madeireiros, interesses espúrios
capitalistas, essas coisas. Não sei se o Brasil está preparado pra admitir a
verdade verdadeira...
–
Você está me sugerindo então...
–
Faça a sua matéria, Sérgio Tavares. Nós não sabemos que tipo de autocensura o
seu jornal vai impor...
–
O meu jornal não impõe nenhum tipo de autocensura, senhorita Schwarschlegell.
–
Nós sabemos que isto não é verdade, não é Sérgio? Deixe a Sweetwaters fora desta
sua reportagem. A maior parte da verba que nos sustenta vem dos Estados Unidos
e da Inglaterra... Dá pra entender?
–
Estamos entendidos – concluiu o jornalista em tom enfático.
Sérgio
Tavares saiu da sala acompanhado por Celso Pontes...
Sylvia
estava de plantão...
Queria
ter ouvidos de cachorro pra entender tudo o que esses três estavam conversando,
pensou ela...
Ainda
bem que ela nem desconfiava...
Mas
o destino ainda guardaria uma surpresa para a senhora Sylvia Salgado...
–
Sylvia – disse Wirna, ar grave, saindo também. – Não deixe ninguém entrar nesta
sala. Vou ao banheiro...
–
Pois não, dona Wirna...
Quando
Wirna Schwarschlegell deu aquela ordem, Sylvia não entendeu que ela estava
incluída no número de pessoas desautorizadas a entrar no escritório naquele
momento, e ela, Sylvia, fez apenas o que deveria fazer para confirmar se tudo
estava direitinho no seu lugar; Sylvia não tinha nenhuma intenção de xeretar
nas coisas dos seus chefes, porém, como havíamos adiantado algumas linhas
antes, o destino reservara uma surpresa inusitada a Sylvia Salgado, embora ela
não tivesse ferramentas para avaliar se boa ou não; o fato é que quando ela
entrou na sala para dar aquela espiadela básica, reparou que o laptop de Celso
estava aberto e funcionando...
Sylvia
contornou a mesa e deu uma espiada, a fim de verificar se tudo estava realmente
bem com a máquina...
De
fato...
Nada havia de
errado com o “notebook” de Celso Pontes...
Mas ela foi além do
permitido, e debruçou-se rapidamente sobre a tela aberta de um arquivo...
Foi o suficiente
para ler algumas linhas muito obscuras que absolutamente não lhe diziam nada, e
nem lhe interessava aquele conteúdo...
Entretanto, Sylvia guardou
bem as seguintes palavras: “Confirmando todas as informações enviadas a Smith
II. Nenhuma mudança. O plano segue como o estabelecido”...
Sylvia saiu da sala
e voltou para sua mesa, que ficava bem em frente à porta do escritório, sem
entender nada, porque nada a importou, a não ser o seu batom, que estava quase
acabando...
“Era tão caro!”...
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