quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VI - CAPÍTULO 3


        Essa merda foi um tédio a manhã toda...

       Puta que o pariu!

       Só no banheiro, pra retocar a maquiagem, eu fui umas três vezes! Fora as outras vezes...

       Que saco!

Eu não tenho nada pra fazer...

       Pouca gente veio trabalhar hoje...

       As salas estão praticamente vazias...

       Há um grupo que ainda está na Amazônia, colhendo informações depois da tempestade que assolou a reserva Raposa Serra do Sol, mas do pessoal do suporte, eu só vi aqui hoje o Pereira...

       Acho que ele saiu com a Dona Wirna...

       Eu a vi chegar, mas numa dessas minhas idas ao banheiro – estou um pouquinho nervosa hoje, não sei, acho que alguma coisa vai acontecer, ai! – mas depois ela saiu outra vez...

       O Celso ainda não deu as caras hoje...

       Eles saíram muito tarde daqui ontem...

       Ele e a dona Wirna...

       Oito e meia da noite ela me mandou embora...

       Quer dizer, que horas eles devem ter saído?...

       Sei lá!

       O meu expediente termina as seis, como todo mundo normal, mas a dona Wirna mandou que eu ficasse plantada ao lado do telefone porque aguardava notícias importantes da Raposa...

       Acabou que as tais notícias não vieram...

       Na verdade eu não vi nada do que se passou naquela sala, depois que eles se trancaram lá por volta das cinco e trinta e cinco...

       Cala-te boca!

       Não tenho nada com a vida deles...

       Todos dois são jovens...

       Bonitos e solteiros!

       Aliás, acontecem umas coisas aqui na Sweetwaters muito esquisitas...

       Coisas pra 007 ver...

       Cala-te boca!...

       Por falar em bonito...

       Eu tenho sentido falta do Alberto...

       Ele é um dos que ficaram lá na Amazônia...

       “Ah, Sylvinha, como eu gosto desses teus cabelos dourados, lisinhos”...

       Adoro quando ele fala neste tom comigo...

       Se eu não fosse casada!

       Mas ele é também!...

       Nossa! Homem não vale porra nenhuma mesmo!...

       Não coloco a mão no fogo nem pelo meu...

       Aliás por homem nenhum!...

       O Alberto é outro galinha daqui da Sweetwaters...

       Ele já pegou a Thereza e a Paula...

       Todo mundo sabe disso...

       E é casado, hem!...

       Realmente...

       Homem não vale nada!...

       “Esse seu rostinho cheio de sardinhas, Sylvinha”, diz ele pra mim. “Você tem um corpinho de colegial, sabia?”  

       Eu sempre tive esse corpitcho... desde nova... Quer dizer, quem me vê falar assim vai pensar que eu sou muito velha, né?...

       Que nada! Só tenho 31 anos de idade...

       Ainda dou pro gasto!...

       Se eu não fosse casada...

       O telefone toca na mesa de dona Sylvia Salgado...

       – Sweetwaters, boa tarde!... Não, ela ainda não voltou... Mas não deve demorar muito não... O Seu Celso? Ainda não apareceu por aqui hoje... Não, não sei... Ela deve estar no almoço... Dona Wirna almoça cedo... Eu direi a ela... Seu Sérgio Tavares... (Sylvia anota num bloquinho que fica na sua mesa) Folha da Tarde?... Pode deixar... Eu passo seu recado pra ela... Muito obrigada. Pro Senhor também.

       Esse cara ligou ontem pra dona Wirna, mas ela estava trancada lá no escritório com o Celso Pontes e não quis atender...

       Eu dei o recado quando ela me dispensou, mas, pelo jeito, ela não retornou a ligação pro tal jornalista...

       Que se foda! Eu fiz a minha parte...

       Sempre faço...

       Não deixo o meu na reta não...

       Wirna Schwarschlegell entra neste instante, para surpresa de Sylvia, que ainda estava divagando...

       – Ah! Dona Wirna! O tal do Sérgio Tavares acabou de ligar pra senhora. O Seu Celso ainda não chegou. Por acaso o Pereira estava com a senhora? É que a esposa dele ligou.

       – Sylvia, por favor. Assim que o Celso chegar não o deixe ficar voando por aí. Mande-o direto para minha sala, está bem?

       – Pode deixar, dona Wirna...

       Até que essa austríaca não tem quase sotaque...

       Ela não dá sopa pro Celso...

       Marca ele ali, ó...

       – Ah, seu Celso... (ele vai entrando e só cumprimenta Sylvia ligeiramente com um aceno de cabeça. Não sorri nem nada) Dona Wirna quer falar com o senhor... (ele abre a porta do escritório particular dos dois e fecha a porta com estardalhaço) Acho que é urgente...

       Estão cara a cara outra vez.

       Entreolharam-se discretamente, olhar indecifrável, mas algo não caminha bem como deveria...

       – O tal do Sérgio Tavares voltou a me ligar agora pela manhã – diz Wirna um pouco preocupada, deixando o alemão natalício imiscuir-se no português bem articulado.

       – Que que tem? – retruca Celso. Parece irritado. – Deixa ele vir. Qual o problema?

       – Ele vai nos bombardear de perguntas novamente.

       – Não é o que a gente quer?

       – A coisa tá muito confusa na Raposa Serra do Sol, Celso. A nossa equipe continua...

       – A opinião pública tem que saber, Wirna! De uma maneira ou de outra...

       – Não é melhor nós trabalharmos o terreno mais um pouco?

       – De jeito nenhum! Chama o Sérgio Tavares...

       Wirna vai até a porta do escritório e a entreabre.

       – Sylvia, liga pro Sérgio Tavares. Diz que ele pode vir conversar conosco.

       – Sim senhora, dona Wirna...

       Não demorou muito, e Sérgio Tavares adentrou a Sweetwaters com um ar de triunfo estampado no rosto.

       Não sei porque, mas eu não gosto muito desse cara...

       O comentário partiu da cabecinha de Sylvia Salgado, a secretária de Wirna Schwarschlegell.

       Não sei, mas ele tem qualquer coisa de mentiroso...

Que nem certos advogados...

       Concluiu Sylvia, não muito diplomática.

       Sérgio Tavares entrou no escritório de Wirna e Celso...

       Celso Pontes fechou a porta...

       Mas Sylvia não desligou as orelhas...

       – Por favor, senhor Sérgio Tavares. Sente-se...

       – Pode me chamar somente pelo nome... Você é Wirna Schwarschlegell? – ela confirmou com um gesto simples de cabeça. – Você então só pode ser o Celso?...

       Celso se aproximou do jornalista e lhe apertou a mão, cordialmente. Sentou ao lado dele. Os dois estavam de frente para Wirna, colocada atrás da enorme mesa de reuniões.

       – Você é que foi testemunha dos acontecimentos na reserva Raposa Serra do Sol? – Voltou à carga Sérgio Tavares.

       – Eu mesmo – confirmou Celso.

       – O que, exatamente, está acontecendo por lá?

       – Você ainda não sabe? – devolveu a pergunta Celso.

       – O mundo todo tem conhecimento, mas eu gostaria de esmiuçar mais detalhes. O meu jornal publicou uma matéria de página inteira sobre os acontecimentos da Raposa Serra do Sol, não sei se vocês leram?... – ambos tinham lido. – Então. Estou viajando pra Boa Vista amanhã. A Folha da Tarde vai fazer uma matéria especial na semana que vem...

       – Isto é excelente, Sérgio! – disse Wirna verdadeiramente entusiasmada. – Os índios, os bichos, o meio ambiente, todos vão adorar!

       – Existem fortes indícios de que aquela área de proteção está praticamente loteada, e a maioria dos proprietários seria estrangeira que em breve farão valer os seus direitos legais junto ao governo brasileiro, ou seja, transformariam tudo numa região para turismo internacional e para exploração de suas riquezas. Vocês confirmam estas notícias?

       – Se é uma área de preservação, Sérgio... – replicou Wirna com alguma ironia – como podem lotear?

       – Os próprios índios teriam loteado a reserva.

       – Toda a área que compreende a reserva Raposa Serra do Sol – continuou Wirna – é de uso dos índios, Sérgio, mas é a República Federativa do Brasil quem tem o controle sobre toda a região...

       Sérgio Tavares virou-se para Celso e perguntou:

       – O que você me diz sobre isso?

       – Olha, Sérgio, é como ela falou...

       – Não, eu quero saber o que está acontecendo lá de fato. Você esteve lá e viu. Eu vou lá investigar, e semana que vem vou publicar uma matéria que pode desmentir tudo ou confirmar as barbaridades que andam falando a respeito.

       – A situação é caótica, Sérgio – disse Celso, com um ar de quem anuncia uma missa de sétimo dia. – Tudo isso que a Wirna falou é verdade... No papel. Os colonos já estão lá há muito tempo, desde antes da década de vinte do século passado. Os rizicultores, hoje, reivindicam o sul da reserva, mas é possível que aquela região esteja toda comprometida...

       Sérgio Tavares olhava ora para Wirna, ora para Celso, tentando encontrar algum furo na história, pois não acreditara na mesma.

       – Comprometida por quem? – perguntou o jornalista.

       – Você irá comprovar com seus próprios olhos, Sérgio – completou Celso, como que adivinhando seus pensamentos. – Pode ser que alguns chefes tribais já estejam comprados. Mas não são eles os principais interessados em que aquela área passe a ser uma região internacional. Os índios imaginam – pelo menos os mais ingênuos – que sob uma administração internacional sua cultura tenha maiores chances de ser preservada, entretanto, pra piorar a situação, alguns dos caciques não estão nem aí pra Amazônia ou seus povos, querem mesmo é ficar ricos com as promessas dos capitalistas...

       – Mas como ela seria administrada... Como a Antártida?

       – Isso tudo não passa de terror virtual, mas é claro que a presença estrangeira na região é muito grande...

       – Isto é um absurdo! – espocou Sérgio Tavares. – O mundo não aceitaria que algumas nações comandassem a Amazônia!

       – Essas “nações” não comandam o petróleo, a economia? É o mesmo quadro em todo lugar – continuou Celso com resignação. – Não sei se a Folha da Tarde vai ter colhão pra publicar a verdade.

       – E o povo brasileiro, o que acha disso?

       – Qual povo brasileiro? – inquiriu Wirna. Não obtendo resposta, ela mesma respondeu: – O povo brasileiro está sempre à margem de todas as decisões. Mas não foi sempre assim ao longo de sua história?

       – Algum dia isto pode acabar...

       – Algum dia, Sérgio – volveu Wirna, debochada, taxativa. – Mas não neste século.

       – Bem... Muito obrigado – continuou Sérgio Tavares, visivelmente consternado. – Essas informações que vocês me deram... Posso citar a Sweetwaters na reportagem?

       Wirna e Celso se entreolharam demoradamente.

       – É melhor não – disse Wirna à vontade. – A verdade virá à tona mais cedo ou mais tarde. O tipo de informação que nós temos divulgado nunca passou da superfície; aquela que todo mundo sabe: grileiros, madeireiros, interesses espúrios capitalistas, essas coisas. Não sei se o Brasil está preparado pra admitir a verdade verdadeira...

       – Você está me sugerindo então...

       – Faça a sua matéria, Sérgio Tavares. Nós não sabemos que tipo de autocensura o seu jornal vai impor...

       – O meu jornal não impõe nenhum tipo de autocensura, senhorita Schwarschlegell.

       – Nós sabemos que isto não é verdade, não é Sérgio? Deixe a Sweetwaters fora desta sua reportagem. A maior parte da verba que nos sustenta vem dos Estados Unidos e da Inglaterra... Dá pra entender?

       – Estamos entendidos – concluiu o jornalista em tom enfático.

       Sérgio Tavares saiu da sala acompanhado por Celso Pontes...

       Sylvia estava de plantão...

       Queria ter ouvidos de cachorro pra entender tudo o que esses três estavam conversando, pensou ela...

       Ainda bem que ela nem desconfiava...

       Mas o destino ainda guardaria uma surpresa para a senhora Sylvia Salgado...

       – Sylvia – disse Wirna, ar grave, saindo também. – Não deixe ninguém entrar nesta sala. Vou ao banheiro...

       – Pois não, dona Wirna...

       Quando Wirna Schwarschlegell deu aquela ordem, Sylvia não entendeu que ela estava incluída no número de pessoas desautorizadas a entrar no escritório naquele momento, e ela, Sylvia, fez apenas o que deveria fazer para confirmar se tudo estava direitinho no seu lugar; Sylvia não tinha nenhuma intenção de xeretar nas coisas dos seus chefes, porém, como havíamos adiantado algumas linhas antes, o destino reservara uma surpresa inusitada a Sylvia Salgado, embora ela não tivesse ferramentas para avaliar se boa ou não; o fato é que quando ela entrou na sala para dar aquela espiadela básica, reparou que o laptop de Celso estava aberto e funcionando...

       Sylvia contornou a mesa e deu uma espiada, a fim de verificar se tudo estava realmente bem com a máquina...

       De fato...

Nada havia de errado com o “notebook” de Celso Pontes...

Mas ela foi além do permitido, e debruçou-se rapidamente sobre a tela aberta de um arquivo...

Foi o suficiente para ler algumas linhas muito obscuras que absolutamente não lhe diziam nada, e nem lhe interessava aquele conteúdo...

Entretanto, Sylvia guardou bem as seguintes palavras: “Confirmando todas as informações enviadas a Smith II. Nenhuma mudança. O plano segue como o estabelecido”...

Sylvia saiu da sala e voltou para sua mesa, que ficava bem em frente à porta do escritório, sem entender nada, porque nada a importou, a não ser o seu batom, que estava quase acabando...

“Era tão caro!”...

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