quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VII - CAPÍTULO 3


Num determinado momento ele estacou defronte a um dos monumentos mais significativos da cidade, o Portal do Milênio...

Olhou atentamente alguns dos prédios a sua volta, como também o tráfego que deslizava relativamente tranqüilo pela avenida principal...

       Os carros eram os mesmos que ele estava acostumado a identificar nas ruas de São Paulo, isto é, as mesmas marcas e cores, só se diferenciavam pelas placas. Qualquer uma que ele olhasse, só enxergava um município: Boa Vista. Até que numa determinada hora ele avistou uma placa de Belém, aí realizou quão grandiosa era esta região Amazônica, que compreendia não sei quantos países sulamericanos vizinhos, e quão infinitamente pequenos em relação ao resto do universo nós éramos; então ele pensou numa diminuta formiga e suas congêneres, relegadas a um ínfimo formigueiro no jardim, o que representava muito mais do que a milésima parte do todo que ele tentava mensurar com sua mente insipiente...

       Ó Senhor dos meus descalabros...

       Fora a expressão que cunhou o próprio Mouzon...

Mouzon Pai, é bom que se diga.

Giuliano Marcondez Mouzon, filho de italiano legítimo, não da Mooca como qualquer um poderia pensar, mas da Itália do Norte, acostumado a muito frio, ruínas romanas, e muitos outros monumentos de um passado no mínimo edificante, porquanto ele, o pai, não soubesse avaliar a verdadeira herança de Roma, como muita gente da mesma forma, mas foi em Interlagos, bairro de Sampa, onde Mouzon filho cresceu saudavelmente, com os pulmões ainda preservados numa infância feliz e aventureira. De lá, sairia um homem extremamente correto e perspicaz, amigo dos seus amigos, fiel a suas crenças, por mais ou menos enraizadas que fossem, embora descrente de tudo aquilo que não o convencesse...

       Assim Giuliano Mouzon, o Filho.

       Ó Senhor dos meus descalabros...

       Repetia Mouzon, uma expressão que muitas vezes ouviu seu pai proferir, como tantas outras que agora não lhe ocorria, mas o sentido do paradoxo, do mistério, e da miséria humana não lhe saía da sombra...

       Onde quer que Mouzon se encontrasse.

Ele olhou mais uma vez ao seu redor...

Mais uma vez voltou a contemplar o Portal do Milênio. Por onde começar uma investigação que só tinha, para início de conversa, algumas toscas informações apanhadas a maneira de conchinhas na praia, recolhendo uma ali, outra acolá, mas sabendo que o areal é um não acabar mais na imensidão marinha? Assim se sentia Mouzon, um catador de conchas perdido na praia infinita...

O monumento suscitava tal afronta técnica, que ele se viu, por questão de segundos, descadeirado.

Mouzon voltou a delinear a imagem simpática de Felipe Corrientes na sua mente mais ou menos matemática...

Ele havia gostado daquele jovem logo de cara, como acontece às vezes, quando nos deparamos com uma pessoa que nunca vimos antes, mas que ao travar conhecimento uma vez, é como se conhecêssemos há muitas décadas. Quantas vezes isto aconteceu em nossas vidas?

Mouzon não atentara para esta quantificação no seu caso em particular, embora ele reconhecesse piamente a verdade do fato. 

É verdade que Felipe falara muito pouco, por uma questão ética, profissional, segurança nacional, essas coisas aí, que ele, aliás, entendia como ninguém, mas aquele pouco poderia transformar-se num redemoinho incessante se ele fosse colher pistas como achava que iria...

Além do que, talvez pelo fato de Mouzon nunca ter tido filhos, já fora casado uma vez, mas a esposa provou que não o amava tanto quanto ele amava o seu trabalho, e o deixou muito antes que o casal pudesse pensar em fabricar um pequerrucho...

A verdade é que certo sentimento paternal poderia explicar tanta identificação entre um homem de 51 anos e outro de 26, ainda que Giuliano Mouzon não tivesse tantos cabelos brancos quanto o do irmão, com 54, embora fosse um tantinho calvo nas entradas temporais acima da testa...

Mouzon, além disso, tinha uma vitalidade balzaquiana, ombros largos, pele branca azeitonada, bem apessoado, altura razoável, e não aparentava, absolutamente, a idade que possuía, passando tranquilamente por um homem de “quarenta anos virginais”, embora seus amigos mais chegados, que não passavam de meia dúzia, todos criados ali na zona sul de São Paulo com ele, se rissem desta designação presunçosa...

Sua peregrinação por Boa Vista começara muito cedo naquele dia, embora ele tivesse chegado à cidade na noite anterior, se hospedado num hotel simplesinho, não queria chamar a atenção de ninguém para sua pessoa, e fosse logo para seu quarto a fim de dormir cedo...

Não conseguiu.

A história dos dois assassinatos dos oficiais em São Paulo, e o suposto acidente mais do que estranho com o sargento do mesmo batalhão em Mato Grosso, não lhe saía da cabeça...

Ele via fantasminhas rondando sua cama, coisa um tanto quanto incômoda...

Mouzon odiava cama de molas! Ele dormira naquela cama porque não havia tempo hábil para trocar de hotel...

Onde estava a resposta àquele caso?...

Estariam os dois oficiais do exército brasileiro envolvidos com tráfico de drogas mesmo, ou o quê...?

E o tal do Sargento Gusmão, aliás um seu camarada deles, seria cúmplice dos dois paulistanos...?

Mas então era verdade que os dois, Siboldi e Mascarenhas, estavam metidos em alguma atividade ilegal, não confirmada por seu comandante, que, aparentemente, desconhecia toda e qualquer atividade dos seus homens fora do tal 7º PEF de Roraima...

E o Felipe Corrientes...?

Estaria dizendo a pura verdade como lhe dizia sua intuição...?

E ainda havia a amiga do Felipe, a tal tenente Celha Regina do Nascimento... Será que eles eram apenas bons amigos?... Isto não interessava a Mouzon, e sim se algum deles tinha a chave para esclarecer o mistério...

Eram muitas incógnitas...

Bendito é o Senhor de nossos descaminhos...

Esta frase também seu pai costumava resmungar às vezes, quando alguma coisa não ia muito bem...

Ah, a igreja católica!...

Quantas e quantas vezes Mouzon a frequentou com sua mãe, quando era pequeno...

Seu irmão mais velho, não...

Andrea...

Que aqui no Brasil não pôde ser registrado assim...

Isto geraria certos problemas burocráticos a princípio, depois na própria natureza psíquica do menino...

O cartório disse a seu pai que o garoto tinha de ser registrado como era usual aqui no Brasil...

Então ficou Andre mesmo...

E sem acento agudo no “e”.

Bom, sua mãe não obrigava seu irmão mais velho, o “Andre”, a ir às missas no Domingo, até mesmo porque o “Andre” escapulia com a desculpa que ia para a pizzaria com seu pai e avô, ajudar no preparo da massa...

Que mentira aquele safado não inventava!

O Andre, hoje, está morando na Itália... Alto funcionário do governo, ou coisa que o valha...

Há dois anos Giuliano não o via...

Mas, enfim, o trabalho tinha de prosseguir, e Mouzon não tinha muita certeza aonde começaria...

O “tour” de Mouzon pelo centro de Boa Vista terminou na sede da Polícia Federal local; um prédio singelo, como singela era também esta viagem de trabalho...

Porém, qual não foi a surpresa de Mouzon em encontrar neste órgão um funcionário da ABIN – Agência Brasileira de Informação, que também trabalhava no caso, porquanto em Brasília, este acontecimento era tratado com o status de “PRIORIDADE”.

Leonardo Paranhos, o delegado da PF responsável pelo escritório de Boa Vista, um jovem de mais ou menos trinta anos, meio banal, baixo, deselegante, cabelos louros opacos, igualmente oriundo de São Paulo, com uma fala que denotava algum marasmo social, foi quem fez as apresentações.

O funcionário da ABIN se chamava Ubiratan Moffato, mistura esta muito curiosa, o de índios com italianos...

No entanto era mais um paulista na tropa...

Enfim...

Depois das introduções de praxe, e do abre-alas tradicional, Mouzon, Moffato e Paranhos saíram para jantar numa cantina italiana da capital...

Lógico!

Lá pelas tantas, massa no bucho, alguns chopes na mente, Moffato, que era um tipo não muito comum, quase ruivo, pele esbranquiçada, sardenta, porém bastante alto, mais lembrando um irlandês do que um descendente itálico com sangue indígena, o que contrastava com a silhueta quase comum de Mouzon, e a apagadíssima presença de Paranhos, colocou para os companheiros, funcionários públicos federais, o “Who’s Who” da sociedade Amazônica...  

 Mouzon pareceu algo admirado do dossiê, tanto que disse:

– Esses homens e mulheres que você listou... Todos eles são suspeitos de atividades ilegais aqui na Amazônia?

– Não diretamente – retrucou o tipo irlandês evasivamente. – Se nós considerarmos que todo ser humano, pelo menos alguma vez na vida, andou meio às avessas...

– Mas o que isto quer dizer em termos práticos?

– Desses nomes que você pode ver aí, dificilmente não verá algum que esteja livre de pelo menos um lobbyzinho em relação a algum benefício arrancado desta floresta que Deus nos deu...

O funcionário da ABIN, Mouzon o percebeu logo de cara, pecava por falta de clareza. Mas o que será que o pessoal de Brasília tencionava com isso? Confundir mais ainda o já tão confuso painel amazônico?

Mouzon voltou à carga:

– Estou vendo aqui que na sua lista aparecem até nomes de estrangeiros...

– De fato... Esses homens e mulheres são cientistas, funcionários de embaixadas, diplomatas, ou homens de negócios que estão sempre às voltas com as coisas da região... Ah, claro! E políticos! O que significa que são pessoas muito bem informadas de tudo o que rola por aqui...

– Mas existem autênticos suspeitos neste grupo?

– É difícil dizer com certeza... Quantos, dentre nós, somos suspeitos de cometer algum delito contra a humanidade?

“Ai, caralhos!”

Berrou Mouzon com seus bagos cheios para si mesmo.

“Esse babaca tá a fim de me sacanear? Qual é a dele?” 

– Esse casal, por exemplo, Mouzon... – e o dedo impreciso de Ubiratan Moffato apontou para os Taylors. – São pesquisadores europeus... britânicos. Ele é um dos maiores especialistas em aves do mundo, e ela é uma bióloga de prestígio internacional...

– Sim e daí?

Foi a vez de Paranhos dar o ar de sua graça:

– Eles trabalham diretamente na floresta, e estiveram na região dos conflitos um dia depois dos últimos incidentes na Raposa Serra do Sol. Foram reconhecidos por homens nossos... Esses são dois que devem saber muito bem o que está se passando por lá...

– Porquê? – perguntou Mouzon.

– Duvido que não estejam! – respondeu algo veemente Moffato. Paranhos olhou-o de modo enigmático, pressentindo que o “irlandês” talvez quisesse ser o centro das atenções em Roraima. – É um sentimento generalizado em Brasília. O mundo todo está com os olhos bem abertos para a Amazônia...

– Todo mundo sabe disso – concordou Mouzon como se falasse o óbvio, o que deixou Paranhos satisfeito, sorrindo discretamente. – Dificilmente conseguiremos mantê-la intacta em sua cobertura original...

– Até mesmo porque esta originalidade se perdeu há muito tempo! – voltava a manifestar-se Moffato, com todo o seu exibicionismo forçado. – Veja a própria cidade de Boa Vista! É uma maçã mordida no meio da selva...

Mouzon e Paranhos não puderam deixar de se rir da comparação de Moffato.

– Este japonês que está incluído na lista, por exemplo... – continuou Moffato.

– Qual é a dele? – perguntou Mouzon.

– Tanaka Osumi – interveio Paranhos. – Empresário japonês. É o principal responsável pela exportação do arroz produzido em Roraima, quer dizer, nas terras que os colonos dizem pertencer a eles há gerações, e que os índios contestam...

– Mais uma vez Raposa Serra do Sol? – constatou Mouzon. – Quem está com a razão, afinal de contas?

– Ambos – respondeu Paranhos indecifrável.

– Como assim? – insistiu Mouzon.

– As terras são, por direito, dos índios – disse Paranhos. – Tanto é assim que a Justiça deu ganho de causa a eles, mas acontece que também é verdade que existem colonos instalados nesta região desde o início do século passado...

– A família Seixas é uma delas – tornou Moffato com ar superior, deixando entrever que ele sabia muito mais do que admitia.

– Família Seixas? – voltava a perguntar Mouzon, sempre curioso.

Moffato passou-lhe uma foto...

– Uuuuuuuuh! – suspirou o paulista. – Linda, não?

– Marina Seixas. Alta sociedade de Boa Vista.

Moffato lhe deu uma segunda foto.

– E este... quem é? – perguntou de novo Mouzon.

– Ildebrando Seixas – volveu Paranhos, seco, taxativo. – Último patriarca de uma dessas famílias que alegam ter chegado à região desde a década de vinte.

– E é verdade? – voltava a indagar Mouzon.

Paranhos sorriu antes de retrucar:

– E faz diferença? O que importa é que a Justiça, volto a dizer, deu ganho de causa aos índios, e todos os colonos devem desaparecer daquela área sem tardar...

– Porém isso é mais fácil de falar do que fazer – acrescentou Mouzon com malícia.

– Por isso estamos aqui... – declarou Moffato, seguro de si.

– Até o exército está pisando em ovos para lidar com a situação – advertiu Paranhos.

– O “Exército”, amigo, também tem sua parcela de culpa nesses episódios que descambaram pra violência...

– Porque você não nos esclarece logo de uma vez sobre as minúcias deste caso, Moffato? – solicitou em tom imperioso Mouzon.

– Em Brasília – continuou o “irlandês” reticente – existe muita desconfiança em relação ao trabalho que é feito por aqui...

Mouzon abriu os braços quase em desespero.

– A separação do joio do trigo... – acrescentou Moffato, sempre de maneira propositalmente incompleta.

Paranhos veio em socorro de seu colega policial.

– Pra começar, o exército não poderia ter se instalado em Uiramutã...

– Então porque eles estão lá? – tornou Mouzon.

– O município também faz parte da reserva – continuou Paranhos – e é uma das áreas onde as nossas “etnias”, digamos assim, brigam. Os militares são acusados por algumas ONGs de abusar da violência com os índios, com o pressuposto de garantir a segurança das fronteiras, pois ali também é uma região de tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa, além do mais, existe uma pecha pesando sobre o 7º PEF...

– Porque existe a penetração dos traficantes de drogas internacionais? – completou Mouzon.

– Pior do que isso – retrucou Paranhos. – Os intermediários entre estes traficantes produtores e os narcoatacadistas do Brasil, seriam alguns desses militares que atuam na Amazônia...

– Que obra maquiavélica, amigos – opinou, meio que debochadamente, Moffato.

Com a lista do “Who’s who” da sociedade amazônica nas mãos, Mouzon voltou à carga, apontando o nome dos Taylors. 

– O que tem os Taylors? – redargüiu Moffato mecanicamente.

– Qual a ligação deles com esta história toda, além do fato de trabalharem na área e muito provavelmente estarem a par do que ocorre ali?

– São muito amigos do japonês – respondeu o delegado da PF de Boa Vista.

– Boiei...

– Não te parece um tanto suspeito... – imiscuiu-se Moffato – que um exportador estrangeiro, que vive da comercialização de um produto que é uma das causas de invasão numa região protegida, seja tão amigo de cientistas que conhecem a região muito bem?

– Provavelmente uma circunstância fortuita, embora eu deva admitir que esta ligação também pode não ser casual...

– Você acredita mesmo nisto, Mouzon?! – volveu o irlandês indignado.

– Ué! A menos que você me dê mais subsídios do que eu vou suspeitar?

– Que tal isso... – volveu Paranhos. – Pescadores que lutam por seu sustento no Rio Branco, abastecido pelos montes Roraima e Caburaí, dizem que a água está poluída pelos agrotóxicos a partir de 500 km rio baixo das cabeceiras, agrotóxico este utilizados nos arrozais da Raposa, impedindo a Piracema...

– Putz! – lamentou-se Mouzon.

– Tudo se encaixa – acrescentou Moffato.

– Você está sugerindo que o japonês pode ser uma espécie de lobista internacional arregimentando técnicos que trabalhem em função de seus próprios objetivos escusos? – tornou Mouzon.

– As ligações não param aqui, Mouzon... – respondeu Paranhos.

– Uma boa e frondosa árvore, com todos os ramos que se possa imaginar – voltava a comentar Mouzon de maneira jocosa.

– E inimagináveis também – obtemperou Moffato.

– Os ramos desta árvore, Mouzon – continuou Paranhos – podem estar ligados a Mato Grosso ou São Paulo... Ou até mesmo com o Rio de Janeiro.

Mouzon engasgou-se...

Entalado com uma azeitona preta...

Produzida em terras legais da própria Amazônia...

Moffato e Paranhos não conseguiram livrar o colega do incômodo...

Dois garçons, vestidos a italiana, vieram acudir os investigadores...

Foi um sufoco danado o desvencilharem-se da azeitona preta...

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