Num determinado momento ele estacou
defronte a um dos monumentos mais significativos da cidade, o Portal do Milênio...
Olhou atentamente
alguns dos prédios a sua volta, como também o tráfego que deslizava
relativamente tranqüilo pela avenida principal...
Os
carros eram os mesmos que ele estava acostumado a identificar nas ruas de São
Paulo, isto é, as mesmas marcas e cores, só se diferenciavam pelas placas.
Qualquer uma que ele olhasse, só enxergava um município: Boa Vista. Até que
numa determinada hora ele avistou uma placa de Belém, aí realizou quão
grandiosa era esta região Amazônica, que compreendia não sei quantos países
sulamericanos vizinhos, e quão infinitamente pequenos em relação ao resto do
universo nós éramos; então ele pensou numa diminuta formiga e suas congêneres,
relegadas a um ínfimo formigueiro no jardim, o que representava muito mais do
que a milésima parte do todo que ele tentava mensurar com sua mente
insipiente...
Ó
Senhor dos meus descalabros...
Fora
a expressão que cunhou o próprio Mouzon...
Mouzon Pai, é bom
que se diga.
Giuliano Marcondez Mouzon,
filho de italiano legítimo, não da Mooca como qualquer um poderia pensar, mas
da Itália do Norte, acostumado a muito frio, ruínas romanas, e muitos outros
monumentos de um passado no mínimo edificante, porquanto ele, o pai, não
soubesse avaliar a verdadeira herança de Roma, como muita gente da mesma forma,
mas foi em Interlagos, bairro de Sampa, onde Mouzon filho cresceu saudavelmente,
com os pulmões ainda preservados numa infância feliz e aventureira. De lá,
sairia um homem extremamente correto e perspicaz, amigo dos seus amigos, fiel a
suas crenças, por mais ou menos enraizadas que fossem, embora descrente de tudo
aquilo que não o convencesse...
Assim
Giuliano Mouzon, o Filho.
Ó
Senhor dos meus descalabros...
Repetia
Mouzon, uma expressão que muitas vezes ouviu seu pai proferir, como tantas
outras que agora não lhe ocorria, mas o sentido do paradoxo, do mistério, e da
miséria humana não lhe saía da sombra...
Onde
quer que Mouzon se encontrasse.
Ele olhou mais uma
vez ao seu redor...
Mais uma vez voltou
a contemplar o Portal do Milênio. Por onde começar uma investigação que só
tinha, para início de conversa, algumas toscas informações apanhadas a maneira
de conchinhas na praia, recolhendo uma ali, outra acolá, mas sabendo que o
areal é um não acabar mais na imensidão marinha? Assim se sentia Mouzon, um
catador de conchas perdido na praia infinita...
O monumento
suscitava tal afronta técnica, que ele se viu, por questão de segundos,
descadeirado.
Mouzon voltou a
delinear a imagem simpática de Felipe Corrientes na sua mente mais ou menos
matemática...
Ele havia gostado
daquele jovem logo de cara, como acontece às vezes, quando nos deparamos com
uma pessoa que nunca vimos antes, mas que ao travar conhecimento uma vez, é
como se conhecêssemos há muitas décadas. Quantas vezes isto aconteceu em nossas
vidas?
Mouzon não atentara
para esta quantificação no seu caso em particular, embora ele reconhecesse
piamente a verdade do fato.
É verdade que
Felipe falara muito pouco, por uma questão ética, profissional, segurança
nacional, essas coisas aí, que ele, aliás, entendia como ninguém, mas aquele
pouco poderia transformar-se num redemoinho incessante se ele fosse colher
pistas como achava que iria...
Além do que, talvez
pelo fato de Mouzon nunca ter tido filhos, já fora casado uma vez, mas a esposa
provou que não o amava tanto quanto ele amava o seu trabalho, e o deixou muito
antes que o casal pudesse pensar em fabricar um pequerrucho...
A verdade é que
certo sentimento paternal poderia explicar tanta identificação entre um homem
de 51 anos e outro de 26, ainda que Giuliano Mouzon não tivesse tantos cabelos
brancos quanto o do irmão, com 54, embora fosse um tantinho calvo nas entradas
temporais acima da testa...
Mouzon, além disso,
tinha uma vitalidade balzaquiana, ombros largos, pele branca azeitonada, bem
apessoado, altura razoável, e não aparentava, absolutamente, a idade que
possuía, passando tranquilamente por um homem de “quarenta anos virginais”,
embora seus amigos mais chegados, que não passavam de meia dúzia, todos criados
ali na zona sul de São Paulo com ele, se rissem desta designação presunçosa...
Sua peregrinação
por Boa Vista começara muito cedo naquele dia, embora ele tivesse chegado à
cidade na noite anterior, se hospedado num hotel simplesinho, não queria chamar
a atenção de ninguém para sua pessoa, e fosse logo para seu quarto a fim de
dormir cedo...
Não conseguiu.
A história dos dois
assassinatos dos oficiais em São Paulo, e o suposto acidente mais do que
estranho com o sargento do mesmo batalhão em Mato Grosso, não lhe saía da cabeça...
Ele via
fantasminhas rondando sua cama, coisa um tanto quanto incômoda...
Mouzon odiava cama
de molas! Ele dormira naquela cama porque não havia tempo hábil para trocar de
hotel...
Onde estava a
resposta àquele caso?...
Estariam os dois
oficiais do exército brasileiro envolvidos com tráfico de drogas mesmo, ou o
quê...?
E o tal do Sargento
Gusmão, aliás um seu camarada deles, seria cúmplice dos dois paulistanos...?
Mas então era
verdade que os dois, Siboldi e Mascarenhas, estavam metidos em alguma atividade
ilegal, não confirmada por seu comandante, que, aparentemente, desconhecia toda
e qualquer atividade dos seus homens fora do tal 7º PEF de Roraima...
E o Felipe
Corrientes...?
Estaria dizendo a
pura verdade como lhe dizia sua intuição...?
E ainda havia a
amiga do Felipe, a tal tenente Celha Regina do Nascimento... Será que eles eram
apenas bons amigos?... Isto não interessava a Mouzon, e sim se algum deles
tinha a chave para esclarecer o mistério...
Eram muitas
incógnitas...
Bendito é o Senhor
de nossos descaminhos...
Esta frase também
seu pai costumava resmungar às vezes, quando alguma coisa não ia muito bem...
Ah, a igreja
católica!...
Quantas e quantas
vezes Mouzon a frequentou com sua mãe, quando era pequeno...
Seu irmão mais
velho, não...
Andrea...
Que aqui no Brasil
não pôde ser registrado assim...
Isto geraria certos
problemas burocráticos a princípio, depois na própria natureza psíquica do
menino...
O cartório disse a
seu pai que o garoto tinha de ser registrado como era usual aqui no Brasil...
Então ficou Andre
mesmo...
E sem acento agudo
no “e”.
Bom, sua mãe não
obrigava seu irmão mais velho, o “Andre”, a ir às missas no Domingo, até mesmo
porque o “Andre” escapulia com a desculpa que ia para a pizzaria com seu pai e
avô, ajudar no preparo da massa...
Que mentira aquele
safado não inventava!
O Andre, hoje, está
morando na Itália... Alto funcionário do governo, ou coisa que o valha...
Há dois anos Giuliano
não o via...
Mas, enfim, o
trabalho tinha de prosseguir, e Mouzon não tinha muita certeza aonde
começaria...
O “tour” de Mouzon
pelo centro de Boa Vista terminou na sede da Polícia Federal local; um prédio
singelo, como singela era também esta viagem de trabalho...
Porém, qual não foi
a surpresa de Mouzon em encontrar neste órgão um funcionário da ABIN – Agência
Brasileira de Informação, que também trabalhava no caso, porquanto em Brasília,
este acontecimento era tratado com o status de “PRIORIDADE”.
Leonardo Paranhos,
o delegado da PF responsável pelo escritório de Boa Vista, um jovem de mais ou
menos trinta anos, meio banal, baixo, deselegante, cabelos louros opacos,
igualmente oriundo de São Paulo, com uma fala que denotava algum marasmo
social, foi quem fez as apresentações.
O funcionário da
ABIN se chamava Ubiratan Moffato, mistura esta muito curiosa, o de índios com
italianos...
No entanto era mais
um paulista na tropa...
Enfim...
Depois das introduções
de praxe, e do abre-alas tradicional, Mouzon, Moffato e Paranhos saíram para
jantar numa cantina italiana da capital...
Lógico!
Lá pelas tantas,
massa no bucho, alguns chopes na mente, Moffato, que era um tipo não muito
comum, quase ruivo, pele esbranquiçada, sardenta, porém bastante alto, mais
lembrando um irlandês do que um descendente itálico com sangue indígena, o que
contrastava com a silhueta quase comum de Mouzon, e a apagadíssima presença de
Paranhos, colocou para os companheiros, funcionários públicos federais, o
“Who’s Who” da sociedade Amazônica...
Mouzon pareceu algo admirado do dossiê, tanto
que disse:
– Esses homens e mulheres
que você listou... Todos eles são suspeitos de atividades ilegais aqui na
Amazônia?
– Não diretamente –
retrucou o tipo irlandês evasivamente. – Se nós considerarmos que todo ser
humano, pelo menos alguma vez na vida, andou meio às avessas...
– Mas o que isto
quer dizer em termos práticos?
– Desses nomes que
você pode ver aí, dificilmente não verá algum que esteja livre de pelo menos um
lobbyzinho em relação a algum benefício arrancado desta floresta que Deus nos
deu...
O funcionário da
ABIN, Mouzon o percebeu logo de cara, pecava por falta de clareza. Mas o que
será que o pessoal de Brasília tencionava com isso? Confundir mais ainda o já
tão confuso painel amazônico?
Mouzon voltou à
carga:
– Estou vendo aqui que
na sua lista aparecem até nomes de estrangeiros...
– De fato... Esses
homens e mulheres são cientistas, funcionários de embaixadas, diplomatas, ou
homens de negócios que estão sempre às voltas com as coisas da região... Ah,
claro! E políticos! O que significa que são pessoas muito bem informadas de
tudo o que rola por aqui...
– Mas existem
autênticos suspeitos neste grupo?
– É difícil dizer com
certeza... Quantos, dentre nós, somos suspeitos de cometer algum delito contra
a humanidade?
“Ai, caralhos!”
Berrou Mouzon com
seus bagos cheios para si mesmo.
“Esse babaca tá a
fim de me sacanear? Qual é a dele?”
– Esse casal, por
exemplo, Mouzon... – e o dedo impreciso de Ubiratan Moffato apontou para os
Taylors. – São pesquisadores europeus... britânicos. Ele é um dos maiores
especialistas em aves do mundo, e ela é uma bióloga de prestígio
internacional...
– Sim e daí?
Foi a vez de
Paranhos dar o ar de sua graça:
– Eles trabalham
diretamente na floresta, e estiveram na região dos conflitos um dia depois dos
últimos incidentes na Raposa Serra do Sol. Foram reconhecidos por homens
nossos... Esses são dois que devem saber muito bem o que está se passando por lá...
– Porquê? –
perguntou Mouzon.
– Duvido que não
estejam! – respondeu algo veemente Moffato. Paranhos olhou-o de modo
enigmático, pressentindo que o “irlandês” talvez quisesse ser o centro das
atenções em Roraima. – É um sentimento generalizado em Brasília. O mundo todo
está com os olhos bem abertos para a Amazônia...
– Todo mundo sabe
disso – concordou Mouzon como se falasse o óbvio, o que deixou Paranhos
satisfeito, sorrindo discretamente. – Dificilmente conseguiremos mantê-la
intacta em sua cobertura original...
– Até mesmo porque
esta originalidade se perdeu há muito tempo! – voltava a manifestar-se Moffato,
com todo o seu exibicionismo forçado. – Veja a própria cidade de Boa Vista! É
uma maçã mordida no meio da selva...
Mouzon e Paranhos
não puderam deixar de se rir da comparação de Moffato.
– Este japonês que
está incluído na lista, por exemplo... – continuou Moffato.
– Qual é a dele? –
perguntou Mouzon.
– Tanaka Osumi –
interveio Paranhos. – Empresário japonês. É o principal responsável pela
exportação do arroz produzido em Roraima, quer dizer, nas terras que os colonos
dizem pertencer a eles há gerações, e que os índios contestam...
– Mais uma vez
Raposa Serra do Sol? – constatou Mouzon. – Quem está com a razão, afinal de
contas?
– Ambos – respondeu
Paranhos indecifrável.
– Como assim? –
insistiu Mouzon.
– As terras são,
por direito, dos índios – disse Paranhos. – Tanto é assim que a Justiça deu
ganho de causa a eles, mas acontece que também é verdade que existem colonos
instalados nesta região desde o início do século passado...
– A família Seixas
é uma delas – tornou Moffato com ar superior, deixando entrever que ele sabia
muito mais do que admitia.
– Família Seixas? –
voltava a perguntar Mouzon, sempre curioso.
Moffato passou-lhe
uma foto...
– Uuuuuuuuh! –
suspirou o paulista. – Linda, não?
– Marina Seixas.
Alta sociedade de Boa Vista.
Moffato lhe deu uma
segunda foto.
– E este... quem é?
– perguntou de novo Mouzon.
– Ildebrando Seixas
– volveu Paranhos, seco, taxativo. – Último patriarca de uma dessas famílias
que alegam ter chegado à região desde a década de vinte.
– E é verdade? –
voltava a indagar Mouzon.
Paranhos sorriu
antes de retrucar:
– E faz diferença?
O que importa é que a Justiça, volto a dizer, deu ganho de causa aos índios, e
todos os colonos devem desaparecer daquela área sem tardar...
– Porém isso é mais
fácil de falar do que fazer – acrescentou Mouzon com malícia.
– Por isso estamos
aqui... – declarou Moffato, seguro de si.
– Até o exército
está pisando em ovos para lidar com a situação – advertiu Paranhos.
– O “Exército”,
amigo, também tem sua parcela de culpa nesses episódios que descambaram pra
violência...
– Porque você não
nos esclarece logo de uma vez sobre as minúcias deste caso, Moffato? –
solicitou em tom imperioso Mouzon.
– Em Brasília –
continuou o “irlandês” reticente – existe muita desconfiança em relação ao
trabalho que é feito por aqui...
Mouzon abriu os
braços quase em desespero.
– A separação do
joio do trigo... – acrescentou Moffato, sempre de maneira propositalmente
incompleta.
Paranhos veio em
socorro de seu colega policial.
– Pra começar, o
exército não poderia ter se instalado em Uiramutã...
– Então porque eles
estão lá? – tornou Mouzon.
– O município
também faz parte da reserva – continuou Paranhos – e é uma das áreas onde as
nossas “etnias”, digamos assim, brigam. Os militares são acusados por algumas
ONGs de abusar da violência com os índios, com o pressuposto de garantir a
segurança das fronteiras, pois ali também é uma região de tríplice fronteira
entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa, além do mais, existe uma pecha
pesando sobre o 7º PEF...
– Porque existe a
penetração dos traficantes de drogas internacionais? – completou Mouzon.
– Pior do que isso
– retrucou Paranhos. – Os intermediários entre estes traficantes produtores e
os narcoatacadistas do Brasil, seriam alguns desses militares que atuam na
Amazônia...
– Que obra
maquiavélica, amigos – opinou, meio que debochadamente, Moffato.
Com a lista do
“Who’s who” da sociedade amazônica nas mãos, Mouzon voltou à carga, apontando o
nome dos Taylors.
– O que tem os
Taylors? – redargüiu Moffato mecanicamente.
– Qual a ligação deles
com esta história toda, além do fato de trabalharem na área e muito
provavelmente estarem a par do que ocorre ali?
– São muito amigos do
japonês – respondeu o delegado da PF de Boa Vista.
– Boiei...
– Não te parece um
tanto suspeito... – imiscuiu-se Moffato – que um exportador estrangeiro, que
vive da comercialização de um produto que é uma das causas de invasão numa
região protegida, seja tão amigo de cientistas que conhecem a região muito bem?
– Provavelmente uma
circunstância fortuita, embora eu deva admitir que esta ligação também pode não
ser casual...
– Você acredita
mesmo nisto, Mouzon?! – volveu o irlandês indignado.
– Ué! A menos que
você me dê mais subsídios do que eu vou suspeitar?
– Que tal isso... –
volveu Paranhos. – Pescadores que lutam por seu sustento no Rio Branco, abastecido
pelos montes Roraima e Caburaí, dizem que a água está poluída pelos agrotóxicos
a partir de 500 km rio baixo das cabeceiras, agrotóxico este utilizados nos
arrozais da Raposa, impedindo a Piracema...
– Putz! – lamentou-se
Mouzon.
– Tudo se encaixa –
acrescentou Moffato.
– Você está
sugerindo que o japonês pode ser uma espécie de lobista internacional
arregimentando técnicos que trabalhem em função de seus próprios objetivos
escusos? – tornou Mouzon.
– As ligações não
param aqui, Mouzon... – respondeu Paranhos.
– Uma boa e
frondosa árvore, com todos os ramos que se possa imaginar – voltava a comentar
Mouzon de maneira jocosa.
– E inimagináveis
também – obtemperou Moffato.
– Os ramos desta
árvore, Mouzon – continuou Paranhos – podem estar ligados a Mato Grosso ou São
Paulo... Ou até mesmo com o Rio de Janeiro.
Mouzon
engasgou-se...
Entalado com uma
azeitona preta...
Produzida em terras
legais da própria Amazônia...
Moffato e Paranhos
não conseguiram livrar o colega do incômodo...
Dois garçons,
vestidos a italiana, vieram acudir os investigadores...
Foi um sufoco
danado o desvencilharem-se da azeitona preta...
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