quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - unidade I - capítulo 2


A tropa seguia o labirinto verde, inexoravelmente, cortando galhos e arbustos desprotegidos, sob as pancadas cutilantes dos facões militares. Milhas e milhas de um emaranhado vegetal infinito, como os caminhos do espaço sideral, quase inesgotáveis, cada gota de orvalho significava um estrela longínqua, até se depararem com as primeiras povoações indígenas da Raposa Serra do Sol...

Silêncio absoluto.

Tudo parecia deserto. A imensidão da floresta, os corações alheios, o conflito de vaidades, a oposição dos egos...

Os soldados, sob o comando do capitão Siboldi, ladearam toda a aldeia, até que tiveram um panorama total das formas e disposições dos índios naquela clareira.

Todos os índios ainda dormitavam o sono dos justos, até que os latidos dos cães denunciassem a presença de estranhos...

Os índios sabiam...

Uma parte da tropa, ao sinal de Siboldi, espalhou-se pelas redondezas. Apenas um pequeno grupo permaneceu ao redor de seu comandante.

Uma ladainha trocada entre os índios mais experientes, imitando trinados de pássaros, logo deixou claro a Siboldi que eles tinham sido identificados...

O Clima esquentou durante certo momento...

Os índios não falavam uma palavra de português, ou faziam questão de que os soldados pensassem desta maneira, mas como uma meia dúzia de militares falava o inglês perfeitamente, incluindo o capitão Siboldi e o Primeiro-Tenente Corrientes, e a situação estivesse mais ou menos mapeada por parte do 7º PEF, a questão pôde ter início...

O cacique José Ngá-Waimerê, pintado para guerra, acompanhado de cinco dos mais valentes guerreiros da tribo, saíram de posições ocultas na mata. Eles carregavam arcos e flechas prontos para disparar...

Mas o capitão Siboldi teve sangue frio para determinar a seus homens que não reagissem a nenhuma provocação.

Todos os soldados travaram suas armas, dando a entender aos índios que não havia nenhum clima de animosidade entre “brancos” e “civilizados”.

José Ngá-Waimerê falou num inglês tosco:

– Vocês não amigos de macuxis. Vocês fora de povo macuxi. Nós não querer brasileiros aqui.

– Quem disse que os brasileiros não são amigos dos macuxis? – perguntou Siboldi, um homem com pinta de galã italiano década de 60, com aquela expressão de cafajeste latino irresistível para as mulheres. Entretanto, sua fala destilava equilíbrio e sobriedade, obviamente tudo meticulosamente ensaiado, interpretado para a ocasião.

– Macuxis traídos por brasileiros. Brasileiros diz amigo, mas gado avança, arroz avança, riqueza macuxi roubada tempo todo, homem branco planta monocultura, quer tomar tudo e macuxis ficar miseráveis.

– E quem são os amigos dos macuxis?

– Homens brancos de fala outra amigos de macuxis.

– Mas estes homens brancos é que querem enganar macuxis, não os brasileiros. Eles conseguiram a sua confiança, Grande Chefe, e não vai demorar muito vão roubar vocês também.

– Aqui, esta terra, todo mundo é estrangeiro, a não ser índios. Brancos de fala não português alertar meu povo. Eles não querem terras...

– Deixe-me dizer uma coisa, Capitão – suplicou Felipe. – Por favor!

Siboldi não gostou da interrupção, e isto era visível, porém não disse mais nada, então Felipe atacou em inglês:

– A primeira coisa que os estrangeiros querem, José Ngá-Waimerê, é que vocês odeiem os brasileiros. Este é o primeiro passo para eles penetrarem nesta reserva. O Segundo passo será enganá-los e então eles vão tirar dos índios as terras que lhes pertencem. Eles já fizeram isso de onde vieram. Lá nas terras dos “brancos de outra língua” também havia índios e esses foram exterminados. Homem Branco não é de confiança, seja de que raça for...

– Se chefe brasileiro dizer assim, é porque estrangeiro ter razão...

– Que porra é essa, Corrientes?! – esbravejou Sibolbi. – Você quer me foder, caralho?! Nós estamos aqui numa missão de paz e você acaba de colocar mais lenha na fogueira!

– Estou tentando ajudar, capitão...

– Então cala essa porra dessa boca estúpida, caralho!

– Brasileiros não ter coração – volveu Ngá-Waimerê decepcionado. – Homem branco diz ajuda, mas vem aqui e quer tudo de nós, até nossas mulheres brasileiros apodrecem. Macuxis não quer ninguém aqui...

– O grande Chefe está certo... Homem branco estraga índios – tentava contornar uma situação difícil Siboldi. – Mas não são todos os homens brancos que querem prejudicar macuxis. Nós estamos aqui para prender esses brasileiros ruins que querem enganar vocês. Mas os estrangeiros não podem fazer nada contra esses homens maus. Sabe porque, Grande Chefe?... – José Ngá-Waimerê olhou para Siboldi com uma expressão espantada. – Porque estrangeiros são sócios dos brasileiros ruins, e juntos vão enganar índios. Mas nós, do exército do Brasil, podemos prender todos os homens maus e expulsar os estrangeiros mentirosos, desde que macuxis nos mostrem quem são eles...

José Ngá-Waimerê levou muito tempo pensando no que Siboldi tinha dito.

Os acompanhantes do Chefe Macuxi olhavam a situação sob o ângulo do seu chefe, com os arcos retesados; a um sinal deste, eles estariam prontos para a “guerra”.

Os homens do grupamento do 7º PEF permaneceram escondidos em outros pontos da mata, prontos também para o caso de haver um conflito, porém a mortandade entre os índios seria enorme, embora Siboldi não estivesse muito preocupado com essas possíveis baixas, sua inteligência espiritual era incapaz de enxergar além do véu difuso da materialidade.

– Ngá-Waimerê não acredita no Grande-Chefe brasileiro. Macuxis só têm esta terra que viver, porque nossos deuses deram terra pra nossos avós, e nossos avós defenderam sempre terra de outros brasileiros que falavam diferente, e Macuxis só deixarão esta terra quando as vidas não mais estiverem nesta terra, assim vocês, brasileiros de roupas de guerra, e nós, Macuxis, não somos amigos. Vocês deixar reserva.

Era o fim de uma tentativa louvável de entendimento previamente programada para fracassar.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - O ROMANCE. PRIMEIRA PARTE: RAPOSA SERRA DO SOL - UNIDADE I - CAPÍTULO 1


Mas naquela noite específica uma inquietude algo descontraída o assaltava persistentemente...

       Ele tentou não dar tratos à bola, despistar, até dormir, quem sabe sair para ouvir os gritos e sussurros da floresta, os grilos e os pássaros noturnos; o intuito, na verdade, era distrair a inquietação inexplicável e atrair o sono para seu dormitório, que dividia com mais três ou quatro oficiais, porém não conseguiu...

       Saiu do dormitório e dirigiu-se direto ao refeitório do quartel, sem escalas, mas a hora do jantar havia passado a um par de horas, o que não diminuía em nada sua disposição de deixar o tempo morrer, como numa sinfonia quase inacabada...

       O silêncio era quase unânime para aquele jovem alto, corpo atlético, moreno de praia, e branco no registro civil. Os cabelos castanhos escuros não penteavam convenientemente, mais por uma questão de modismo do que devido à maleabilidade dos fios capilares, ainda que ele detestasse qualquer menção ao conceito “moda”. Aliás, em muitas outras coisas seu gosto andava na contramão da história.

       A grande maioria dos oficiais, como também dos soldados, àquela hora, já se preparava para dormir. A Alvorada seria as quatro da matina! Haveria caminhada de reconhecimento pela mata fechada no meio da reserva Raposa Serra do Sol, aonde uma série de conflitos fundiários históricos vinham ocorrendo entre índios e colonos pelo domínio das terras a nordeste de Roraima, conflitos esses, que, segundo os militares, envolviam muito mais do que uma simples queda-de-braço por terras, e sim a soberania nacional, fato típico de um mundo cujas nacionalidades, decididamente, haviam deixado de existir desde que a bandeira do mundo passou a ser uma só...

       Entretanto, no fundo de sua consciência incendiada, o que ele ansiava mesmo era cair nos braços de Celha, a quem tinha quase a certeza, muito mais ansiosa do que ele próprio, provavelmente padecia do mesmo mal...

       Um fogo que devora as entranhas do corpo em ebulição...

       Mas, decepção, Celha não estava! O refeitório se encontrava completamente vazio.

       Uma garrafa térmica de chá, a esta altura do campeonato gelado, acompanhada de alguns copinhos descartáveis de plástico – açúcar ou adoçante? – passava algumas horas em cima de uma das mesas do amplo salão. Mas nem tudo aqui em Roraima era grande como poderia se supor...

       Ele resolveu esquentar o chá, isto é, se realmente encontrasse um fósforo...

       – Eu sabia que você estava aqui...

       Celha.

       Ele ouviu-a meio com cara de bobo, embora não soubesse exatamente o porquê, e não havia motivo mesmo para tal.

Sorriu em seguida, um sorriso indeciso, sem sal...

       – Você está procurando isso? – perguntou ela sorridente, zombeteiramente marota, porém quase infantil; morena aveludada bonita, curvas bem estruturadas, cabelos crespos ligeiramente desbotados, cheirando a louros, olhos verdes piscina completando um quadro pitoresco sensacional, obra esta capaz de paralisar todo o trânsito na Amazônia...

       Agora sim Felipe sorria pra valer!

       – Vou querer também! – volveu ela, notando o que colega tencionava fazer...

       A solicitação de Celha, entretanto, soou mais como uma imposição descontraída, imperiosa, mas no que tinha de mais sensual possível naquela voz um tanto chorosa, embora entre ambos não existisse nada, exceto um respeito mútuo, uma amizade profunda e uma camaradagem acima de qualquer suspeita, num mundo coalhado de desconfiança humana...

       (Não pode haver nada entre oficiais no exército brasileiro; nenhuma relação pessoal, íntima, seja qual for a natureza da opção sexual envolvida. Isto reza a lei, mas havia outra lei, que não fora escrita, e que não costuma ouvir a razão humana.)

       Felipe Mateus de Castro Corrientes, e Celha Regina do Nascimento eram ambos Primeiros Tenentes do 7º PEF – Pelotão Especial de Fronteira. Lotados no município de Uiramutã, dentro da reserva Raposa Serra do Sol.

       Felipe pegou a caixa de fósforos no ar, atirada pelas mãos de Celha, que já havia se sentado numa das mesas do refeitório vazio, esperando pelo chá requentado, mantendo aquele sorriso condescendente, cúmplice.

       A ação de requentar o chá não trazia em si nenhuma motivação ao pensamento profundo de Felipe, mas por incrível que pareça, eles mergulhavam neste instante num mutismo inteiramente atemporal, suscitando mesmo controvérsias de um para com o outro...

       – Eu sei porque você perdeu o sono... – encetou Celha, misteriosamente incógnita, abandonando o tom descontraído.

       Felipe não respondeu, mantendo uma restrição absoluta ao assunto.

       – Eu também fiquei preocupada...

Celha continuou séria.

       Felipe parecia intrigado com um fenômeno simples da natureza, a chama azul emitida pelo bocal semiautomático do fogão militar.

Fitando a amiga logo depois, sua expressão dizia: “É”...

       O chá quase ferveu...

       Felipe correu para desligar a boca, tudo isso visivelmente encafifado...

       Ele pegou dois copinhos de plástico descartáveis. Ia colocar açúcar, mas Celha declinou. Despejou duas colherinhas no seu próprio copinho. Celha chiou:

       – Quanto açúcar, Felipe!

Houve um hiato de emoções claras a partir de então, logo quebrado com um divertido... “Isso faz mal!”

       Ele teve de desfazer a operação, profundamente distraído, contrito mesmo, sentindo-se culpado devido ao açúcar...

       Tudo de novo!

       Encheu outro copinho...

       Desta vez com menos açúcar...

       Celha bebericava o seu chá requentado...

       Mas o motivo de tanta insônia permanecia...

       Quem sabe os dois talvez...

       Não havia ninguém ali para testemunhar...

       Mas será que ele queria isto mesmo...?

       E Celha...?

       Quais seriam as motivações dela, calcadas no simples fato de ser uma mulher no meio de um batalhão de homens ávidos por aventura? Porque aquilo poderia ser sintetizado desta maneira, ou não?

O que fazia com que um bando de seres humanos se refugiasse nos confins de uma selva interminável?

Tá certo que a maioria era original daquelas terras mesmo, o que significava dizer que aquele dia-a-dia nada mais era do que uma extensão de sua cultura natural, mas...

Patriotismo?

Nos dias de hoje?!

Quais as motivações legais ou ilegais, quais os fundamentos sociais em jogo para este tipo de empreendimento quando se sabe que civilização não é isto?... Quer dizer, dependendo do tipo de civilização que pretendemos desenvolver...

Isto na opinião de Felipe Corrientes...

Nenhum leitor, necessariamente, há de concordar ou discordar desta teoria...

       Em suma, Felipe não imaginava os motivos daquelas sensações ambíguas, quando o normal era justamente...

Aliás, ele nem tinha uma noção enraizada do que significava aquele ambiente todo, aquela imensidão toda, aquela angústia inexplicável, própria de sua natureza poética, não tanto hedonista, talvez um tanto quanto insana, mas certamente trágica no sentido da vida em si, retirada a explicação religiosa da coisa, e todo o miasma acumulado por eras de equívocos humanos...

       Não era este o motivo da insônia, ainda que se admitisse que uma simpatia mútua pudesse catapultar o nascimento de uma relação não tanto inverossímil quanto parecesse, mas era fato que o “acidente” que os tornava homem e mulher naquele exato instante não significava nada...

       Nada?

       Nada, não...

       Alguma coisa aquilo tudo significava, sim senhor!...

       Felipe não soube exemplificar para si mesmo o que queria a não ser aquele profundo sentimento de que tudo não valia a pena; tudo significava um montão de escória humana envolta em erros históricos que jamais poderiam ser modificados segundo aquele paradigma incontrolável...

       E com toda a certeza Celha compartilhava daquela opinião, pelo menos em termos espirituais, embora eles nunca tivessem discutido isto assim, desta maneira...

       Enfim...

Eram todos humanos, sim, e as artérias pulsavam desejos muitas vezes incontroláveis por conta de uma infraestrutura voltada para cegar a razão maior que há no universo...

Mas o que vem a ser isso, meu Deus?!

Muito provavelmente Celha e Felipe não sabiam...

Aliás, muita gente desconhecia igualmente...

– Eu sei porque você perdeu o sono, Felipe... – repetiu Celha, que na verdade não tinha muito a acrescentar naquele momento.

Ele encarou-a muito seriamente, embora evitando fitá-la nos olhos, foi aí que ele percebeu pela primeira vez um sinal muito pronunciado que a exuberante jovem dama possuía perto do lábio inferior, do tamanho de uma uva-passa murcha em demasiada exposição ao frio...

– O que você quer na verdade?

A curiosidade da tenente Nascimento contagiava.

– O que eu quero? – indagou Felipe confuso, incrédulo, talvez nem quisesse compreender o âmago da coisa ao qual se referia a colega...

Mas será que ela vinha com segundas intenções...?

– Não adianta querer tapar o sol com a peneira, Felipe... – tudo era perturbação agora. – Eu sei que você e o Capitão Siboldi se odeiam...

– Pera lá! – quicou ele, amuado, mas ao mesmo tempo com certo alívio refrescante. – Eu não odeio aquele bacaca! – Felipe percebeu que havia falado muito alto, mas agora era tarde, já havia se pronunciado, no entanto, depois disso, passou a falar mais baixo, porém, de certa forma, aliviado... – Ele que cisma em me provocar de graça, só isso! E o pior é que eu nunca dei motivo pra isso...

– Isso é assim mesmo, Felipe – Celha tentou consolá-lo, escatologicamente, com aquela conversa de cerca Lourenço, ela que tentava consolar a si própria. – Nós encontramos pessoas que foram colocadas no nosso caminho para nos testar, sabia?

– Este é o argumento mais kardecista que eu já ouvi da sua parte, e eu não pretendo discutir espiritismo neste momento...

– Mas você conhece a natureza desses argumentos?

– Claro! Eu tinha uma tia que era kardecista praticante. Lá em casa havia vários livros espalhados pelos cantos, até no banheiro, porque ela tentava convencer a minha mãe, de qualquer maneira, a aceitar a doutrina...

– E agora você tá aí, querendo desentalar o Siboldi da sua goela, e tentando negar os argumentos suprahumanos – completou Celha de forma irreconhecível para Felipe.

– Eu acho que é justamente o contrário – replicou o rapaz, mais uma vez confuso.

– Eu também não gosto dele, sabia?

– Tem qualquer coisa de errado com ele...

– Tem qualquer coisa de errado com o mundo, talvez.

– Há qualquer coisa nele que me causa um desconforto... – disse Felipe sem atentar ao que a companheira declarara. – Não sei... Uma sensação incômoda... Sei lá! É como se eu soubesse que alguma coisa está pra acontecer e que vai nos envolver a todos de uma forma definitiva, mudando o curso da história, e justamente o Siboldi será a mola pra todo o negócio...

– Pera lá, meu filósofo! De onde você tirou tudo isso?

– Mensagens da alma, quem sabe?

– Nós não podemos nos dar ao luxo de pensar desta maneira, sabia?

– Porquê?

– Porque nós somos militares...

– E o que tem a ver o cu com as calças?!

– Nós estamos aqui pra cumprir uma missão, e isto você sabe muito bem...

– Eu não sei mais se acredito nisso, sabe...

– Meu Deus, Felipe! Isto é alta traição!

– De’xa de ser debochada, vai... Olha, você quer alguma justificativa para a existência de exércitos?

– Não. Não precisa entrar em detalhes. Eu conheço sua tendência pra questionar as coisas mais absurdas do mundo. Só me pergunto o que um garoto da Zona Sul do Rio de Janeiro veio fazer na Amazônia...

– Você quer mesmo saber? – desta feita Celha limitou-se a acenar discretamente com a cabeça.

Felipe explicou:

– Eu simplesmente achava que esta poderia ser uma profissão decente...

– Decente?

– Quer dizer, eu não tinha mesmo nenhuma aptidão especial, aí o meu pai, por ser um ex-militar, filho de ex-militar...

– Convenceu você a seguir a mesma profissão que duas gerações já exerceram com honra?

– É mais ou menos isso...

O silêncio invadiu a arena das emoções mal disfarçadas.

Por um instante tudo parecia fadado ao fim do espetáculo, mas a curiosidade levou vantagem sobre o segredo...

– E você? – perguntou Felipe, repentinamente ousado, embora não fosse encorajado a isto. – Não foi por pressão familiar que você está aqui hoje, né?

– Não...

Celha se segurava, ainda que seu companheiro percebesse que uma hora ela iria explodir, o que não demorou um segundo...

– Você alguma vez já visitou a periferia de Recife, Felipe?

Ele se mostrou surpreso com aquela interpelação, embora conhecesse mais ou menos a história da sua amiga, mas não em detalhes.

– Nunca – respondeu ele reticente.

– Eu sou filha de pais muito pobres, de um bairro paupérrimo da periferia miserável de Recife; um lugar onde as oportunidades são bem próximas à zero. Dificilmente uma pessoa nascida naquele lugar pode ser outra coisa senão bandido ou prostituta, e eu perdi dois irmãos e uma irmã na marginalidade. Dos dois irmãos, um era assaltante e o outro traficante; minha irmã contraiu AIDS fazendo programas com turistas na Praia de Boa Viagem. Acabou num hospital de caridade sustentada por religiosas estrangeiras. Eu sou a caçulinha, a última esperança de uma família sair das páginas das estatísticas da ONU. Eu, particularmente, acho que só escapei desta vida porque talvez o Nosso Senhor lá em cima tenha colocado o seu dedo sobre mim e decretado: “Levanta-te e caminha”...

– Grande Celhinha! – respondeu Felipe solidário. – Você é uma vencedora, sabia?

– Mas porque nós viemos parar nisto?

– Aonde? Na Amazônia?

– O destino... Às vezes eu acho que nós somos peças de um jogo disputado entre anjos e demônios...

– Talvez não sejam anjos e demônios, e nós não sejamos tão inocentes e sem recursos como parecemos...

– Pode ser, mas como nós vamos ter certeza disto?

– Talvez não tenhamos nunca!

– Nunca é tempo demais...

– Pode ser, mas quem vai saber? Somos incompetentes demais pra descobrir...

– E o capitão Siboldi?

– Que que tem?

– Qual o papel dele neste jogo?

– Qual o papel da violência nesta encenação? Segundo Krishnamurti nós engendramos uma sociedade que respira violência em todos os sentidos. Tudo nos divide e separa, inclusive no seio das próprias famílias. Até as preferências no futebol agem neste sentido...

– E as forças armadas? Qual o papel delas neste jogo?

– Também é uma justificativa hipócrita pra indústria da violência...

– E os índios? Qual o papel deles neste jogo?

– São manipulados com mais facilidade por estarem inseridos num contexto em que nada disto lhes diz respeito. É como o ódio ancestral entre árabes e judeus, por exemplo... Você há de convir que existe aqui um mercado promissor em termos de violência, basta acirrar os ânimos dos mais ignorantes, no caso a esmagadora maioria, pra que os senhores da guerra tenham sempre clientes ao seu dispor, e o Brasil está nesta dança, porque vende armas também...

– Então nós somos marionetes dos senhores da guerra? Mas quem são os senhores da guerra?

– Os mesmos que manipulam os índios, os árabes, os judeus e os brasileiros...

– E nós somos os profissionais da violência?

– Infelizmente, Celha...

E ficaram por aqui, pois nunca chegariam ao fim disso tudo.

Todos os fósforos estavam apagados, inúteis, e as bocas do fogão militar idem, e o chá, outra vez frio, servira a sua função social, apesar de todos os desejos carnais terem sido assimilados na conta de transcendências kardecistas absolutamente descartáveis, mas talvez esta não fosse a melhor explicação para o início de tudo...

sábado, 13 de agosto de 2011

A ERA DE OURO DOS FARSANTES - III


A música é uma dessas coisas que nos marca desde meninos, e nos acompanha durante toda a nossa passagem por esta vida. Portanto, é deveras natural que várias canções nos marquem em certos momentos inesquecíveis, de bom e de ruim. Todo mundo acalenta pelo menos uma dúzia! Aquelas canções que jamais iremos esquecer...

É ou não é?

Claro que sim.



Hoje, entretanto, está difícil escolher uma canção que nos embale nos desdobramentos inevitáveis desta vida bandida...

Eu confesso que as melhores músicas, para mim, ainda são aquelas do passado. Os motivos, porém, são diferentes daqueles elencados nas postagens anteriores.



É evidente que o mau gosto também impera na música atual, na maior parte dos artistas, pelo menos. Claro que temos exceções. Poucas, mas temos. Não vou citar nomes, nem para o bem, nem para o mal. Prefiro refletir nos fatores que fazem com que hoje não tenhamos tantos artistas produzindo tanta coisa boa...

A música, no Brasil, não seguiu um padrão diferente de outras artes. O crescimento se deu exatamente pela diversidade, que gerou uma qualidade inigualável. O Brasil, como um caldeirão cultural, teve influências as mais exóticas, por isso a música popular brasileira conquistou os quatro cantos do mundo.



Agora... Porque a mídia investe maciçamente naquilo que temos de pior? Os fatores são os mesmos das demais artes? Não completamente.

Nós possuímos uma "Inteligência" que monitora o gosto do público, principalmente no que tange ao universo do jovem, mas não somente, vejam bem...

Esta "Inteligência" determina o que deve vender como banana e o que se venderá como grape fruit, e a música erudita está colocada nesta segunda categoria. Porquê? É o que eu gostaria de saber. Porque a música erudita não pode ser popularizada? Mas o que é popularizar um produto artístico? É baratear os custos de consumo, de propagação nos meios de comunicação de forma democrática, até que ela se torne corriqueira na vida do público, que consome o lixo musical justamente pelo fácil acesso financeiro e per capita, porquanto é muito mais fácil achar um disco de um desses artistas populares do que, por exemplo, um disco de Villa Lobos.



O processo que vai da produção inicial de um disco até o alcance do consumidor, nas lojas, passando pela divulgação, etc. deve ser democrático, ou seja, igual para todos os tipos de música, e todos os artistas. A mídia tem de dar a mesma importância a todos os estilos, inclusive do ponto de vista informativo, esclarecendo o público consumidor dos porquês de cada um deles, para que este mesmo consumidor final possua as ferramentas necessárias para julgar qual é realmente o melhor produto cultural.

Infelizmente não é isso o que acontece, e o lixo cultural, mais uma vez, ganha uma notoriedade absurda do ponto de vista estético...



"Dê nome aos bois!"... Eu não! Acho que podemos conversar e refletir sem ofender a ninguém.

Podemos determinar valores a certos artistas dentro de um mesmo gênero musical, e essas escolhas sempre terão um caráter subjetivo, mas discernir o que é bom do que é ruim todos podem fazer, desde que tenham a noção sobre o que estão falando, ou comprando. O grande problema é que os meios de comunicação e informação não fornecem os códigos para que a maior parte das pessoas possam seguir as pistas certas, e o problema da democratização dos meios de informação também é um problema global...

Mas isto é assunto para outra postagem...   

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

QUEM É QUE VAI PAGAR POR ISTO?

  Há cinco séculos houve um lugar cujos descobridores denominavam Terra de Santa Cruz. Neste lugar, os primeiros homens "civilizados" a por os pés nestas terras de antanho, acreditavam ter descoberto algo mais ou menos similar ao que eles acreditavam ser o Éden bíblico.
  Os construtores de pirâmides desta época tiveram de apelar para o trabalho escravo, haja vista que os nativos encontrados nestas terras recusavam-se a colaborar com aqueles homens estranhos, de cara pálida e pelos no rosto, que se julgavam donos de um quinhão de terra que absolutamente não lhes pertencia, e, ainda por cima, queriam escravizar os verdadeiros donos, ou, por outro lado, pelo menos àqueles que haviam chegado primeiro que eles...
  Isto tudo tem um significado muito profundo para todos nós, talvez as pessoas nunca tenham refletido sobre esta gênese, porque tudo começou errado desde o primeiro momento.
  Bem, o tempo passou nestas terras de Santa Cruz, e os construtores de pirâmides misturaram-se tanto com aqueles nativos rebeldes, não tão completamente exterminados, quanto os escravos trazidos de outras praias justamente para a construção de pirâmides.
  Nesta Terra de Santa Cruz outras raças forjaram-se a partir daí; culturas distintas fundiram-se num tempo e num espaço determinado, mas aqueles escravos nascidos de duas raças destroçadas pelo invasor deixaram muitos descendentes, e, apesar de terem sido libertados no papel, jamais o foram de fato...
  Nós somos os descendentes destes povos perdidos, e ainda hesitamos diante de tanta injustiça e das dívidas sociais contraídas junto à história...
  Chegou a hora de nos perguntarmos: quem é que vai pagar esta conta? Resposta facílima! Cada um de nós, segundo o seu entendimento, paga sem o perceber.
  O que aconteceu é que com o passar dos séculos, a sociedade resultante desta Terra de Santa Cruz, cruzou os braços e nunca admitiu sua parcela de culpa nesta dívida. Os problemas foram-se acumulando; a população crescendo, e a dívida idem.
  Tantos governos: monarquistas, federalistas, positivistas, ditatoriais, republicanos de todas as tendências, e nada! A dívida social crescendo, e os descendentes daqueles escravos alforriados pagando a conta...
  Uma dívida que não tem tamanho, mas tem uma dimensão: a da violência generalizada.
  O Estado brasileiro, seja em que esfera for, a municipal, estadual ou federal, não cumpre seus compromissos, nunca cumpriu, aliás! O cidadão brasileiro, por outro lado, mas inconscientemente, não reconhece a autoridade deste estado capenga, que perpetua-se no papel de não enxergar o seu patrão, o povo. Disto resulta uma desobediência civil quase generalizada, cujo Estado, prevaricador histórico, finge não assistir a esta rebeldia quase calada, ou seja, o produto final desta relação doentia é um Estado esquizofrênico cuja doença tem cura, porém o tratamento, após tantos séculos de enganação, sem tomarmos nosso remédio caseiro, será um tanto amargo, senão intragável.
  Não vamos solucionar problemas sociais históricos com políticas de gabinete que visam a interesses comerciais duvidosos, cujo resultado final, mais uma vez, colocará a problemática social de lado, enchendo os cofres particulares, mas esvaziando a sacola paupérrima da dívida pública para com os exilados da Terra de Santa Cruz.
  Repito a pergunta que ficou sem resposta: quem é que vai pagar esta conta? Cada um faça a sua parte. Eu farei a minha...