quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VII - CAPÍTULO 2


       Cada um de seus passos naquele piso extremamente liso, bem desenhado, recortado em grandes quadrados pretos e brancos, como numa paródia ao Yin e ao Yang que ele conhecia como ninguém, transcorria com uma placidez quase absoluta, embora ele não acreditasse neste absoluto vulgarizado, banal na boca de um sacerdote medíocre, e apesar dos burburinhos poluidores que vinham de todos os lados, entrecruzando-se feéricos, e que não viam os mesmos sinais de prosperidade que havia em seus olhos.

       A cegueira, pensava ele, jazia na retina dos ignorantes, dos timoratos, daqueles que não acreditavam no seu potencial, mesmo que esta energia não existisse em quantidades iguais em cada coração...

       Ele sabia disso.

       O Absoluto em que ele acreditava estava mais próximo de Deus, ainda que o seu sentimento particular não orbitasse na mesma oitava santificada de um eleito.

Mas ele sabia também que estava a distâncias incomensuráveis de um desses pares divinos, ainda que sua cultura, fortemente arraigada em hierarquias constitucionais, relegasse a todos os fiéis a mesma sensação do sagrado, da presença possível de um Deus palpável.

       Portanto, ainda que Tanaka Osumi carregasse todos esses sentimentos consigo, naquele coração pretensamente leve, ele não duvidava em nenhum instante da natureza transitória de todas as coisas. Por isso ele se esforçava cada vez mais! Para que esta transitoriedade de todas as coisas sob o sol não prejudicasse seus projetos imediatos, sempre com a perspectiva atenta de um homem que possuía livre iniciativa, porque ele julgava que aí consistia realmente a diferença entre os homens...

       Bem...

       Cada macaco no seu galho, continuava pensando Tanaka, agora com a mente infectada pela cultura nacional, onde remergulhava mais uma vez, e, coisa engraçada...

       Tanaka não estava preparado para a surpresa que o aguardava pouco depois do saguão de desembarque...

       Mas como todo bom samurai, ele não demonstrou em momento algum a fraqueza do imprevisível...

       Sorriu maleavelmente...

       Conquanto por dentro estivesse furioso!

       Marina, sim...

Esta sorria de verdade...

O prazer do reencontro agradava-lhe a alma. A satisfação de estar revendo seu grande amor era perceptível a uma distância entre o Pacífico e o Atlântico...

Sem nenhum exagero.

Tanaka Osumi representava a última tentativa de consumar um ideal que alimentara as mulheres da sua estirpe há gerações...

Mas não era só!

Antes mesmo que certos fatores majoritários do clã Seixas se impusessem, Marina gostava de Tanaka gratuitamente, e continuaria a amá-lo se ele fosse mero seringueiro...

Quer dizer...

Ela pensava assim...

Acontece que as escolhas do clã Seixas, sacramentadas bem antes de seu nascimento neste planeta, exigiriam dela algo além de sangue plebeu...

Isto era indubitável.  

Entretanto, aquele sorriso moreno, alvacento, regado a mimos patriarcais, que transcendia sua capacidade psíquica intrínseca, aquilo que ela carregava como sendo só seu, mas que representava o coroamento do ápice social eclipsou-se a uma simples frase em tom de reprimenda:

– O que você está fazendo aqui, Marina?

Esta sentença, claro, foi proferida em português, mas num português ruim, temperado com um japonês do interior das ilhas pacíficas daquele arquipélago inumerável.

O sorriso, que contrastava entre o branco de uma dentadura perfeita, e o amarronzado da pele, tornou-se de súbito amarelo.

Tanaka continuou com seus passos marcados, agora destituídos daquela placidez do Absoluto, substituída por uma pisada mais firme, que denotava a irritação de um guerreiro oriental subjugado pelas forças da natureza.

– Eu não gosto de encontrar você em lugares públicos sem ser avisado – disse o japonês num tom de quem mastiga uma ameixa azeda.

– Eu sei disso. Eu tentei entrar em contato com você, mas o seu celular não entrava em comunicação de jeito nenhum...

– Ainda bem... – Tanaka falava seco, e caminhava inexoravelmente, como se pudesse ignorar a presença de Marina respirando no seu cangote.

– Desculpa, meu amor...

– E não me chame de “meu amor”!

Agora o semblante nublado de Marina deu vazão às lágrimas da decepção...

– Pare de chorar, Marina!...

Mas ela não conseguiu atender a ordem do seu Tanaka-san, e chorava copiosamente...

Tanaka segurou-lhe no braço amorenado com a força de um ronim em duelo, sapecando-lhe um beijo selvagem, no que ela amoleceu visivelmente...

Eles tinham chegado a um local do aeroporto de Boa Vista praticamente deserto...

– Eu não entendo você, Tanaka!...

Mas ela não teve tempo de refletir sobre o absurdo daquela sensação incrivelmente boa, ainda que paradoxal, pois levou outro beijo à moda de haraquiri.

– Eu achei que você estava furioso comigo...    

Ela tentou dizer...

– Eu estou!

E toma-lhe outro beijo babado...

– Vamos sair daqui de uma vez... – disse o japonês, arrastando-lhe pelo braço para o estacionamento do aeroporto.

– Aonde você quer ir?!...

Todo o resto é quase dispensável.

Algumas horas depois...

Num quarto de motel nos arredores da capital de Roraima...

– Meu pai quer conversar com você...

Tanaka Osumi fitou aquela pequena com uma ameaça desvelada nos olhos.

– Não é o que você está pensando – volveu ela prontamente, a fim de desfazer um engano.

Ele relaxou e foi até o frigobar pegar um refrigerante.

– Como você sabe o que eu estou pensando?

– Você é engraçado, sabia, Tanaka?

– Não, não sou.

– Não precisa entrar em pânico...

– Você não acha que eu devo me preocupar?

– Claro que não. Além disso, o velho Ildebrando só quer falar sobre negócios, seu bobo...

– Negócios?...

– Ééééé!

– Mas isso nós fazemos todos os dias... – Tanaka, de repente, mudou de humor. – Eu fico imaginando se o velho descobrisse, por exemplo, que você está grávida...

– Deus me livre!

– Ele ia te expulsar de casa?

– Se não fizesse coisa pior!

– Não acho que o Ildebrando fizesse esse tipo de coisa...

– Mas que tipo de coisa você está pensando?

– Matar você.

– Cruzes, Tanaka! Que brincadeira!

– Você não disse que ele poderia fazer uma coisa pior que expulsar você?

– Ah! Isso é uma forma de falar.

– Mataria?

– Você é que está querendo me matar!

– Você não é um estorvo na minha vida, Marina... Embora me atrapalhe às vezes.

– Às vezes eu acho que se não fossem os negócios com meu pai, você me largaria...

– Não me tome por um aventureiro qualquer...

– Se a exportação do arroz se tornasse um mau negócio pra você, nós continuaríamos a nos ver?

– Vejamos por outro lado... Mais prático e menos emocional. Se a exportação da produção de arroz aqui de Roraima se tornasse inviável, talvez eu tivesse que deixar este país...

– Então é verdade?

– É verdade o quê?

– Você me usa, Tanaka.

– E você?... Também não está me usando?

– Claro que não! Eu amo você, Tanaka. Mesmo que você passasse a ser um açougueiro eu ainda continuaria com você...

– Lidando com carnes todo dia? Acho que você enjoaria...

– Seu japonês “englaçadinho”! Acabou que você fugiu de uma resposta...

– Eu não fujo a nada, Marina...

– Então me responda, anda...

– Se eu tivesse que me ausentar do Brasil de que forma eu iria vê-la?

– Eu iria atrás de você... Até no Japão... Se o senhor assim mo permitir.

– Nem por brincadeira você diga uma coisa dessas!

– Tá vendo?! Eu conheço muito bem o seu lado fraco, Tanaka-san!

– E daí? Se você diz que me ama porque iria querer me prejudicar?

– Eu não falei isso... Em algum momento eu falei em te prejudicar?... Não.

– E as plantações... como está o trabalho da colheita?

– Ah, eu não sei, Tanaka! Eu não me meto nos negócios do meu pai. Você tem que ir lá conversar com ele.

– Você sabia que o conflito na Raposa Serra do Sol repercutiu no exterior muito negativamente?

– E eu com isso!  Eu não quero saber dessa história, já falei!... Meu Deus, como eu gostaria de sair de Boa Vista, ir morar no Rio de Janeiro...

– Rio de Janeiro?! Pra quê?! Aquilo lá é um hospício!...

– Eu gosto do Rio... Morar na praia... Já pensou? Eu adoro praia! Você gosta?

– Não. Além do mais elas estão todas poluídas...

– E o que tem isso de mais? Aqui em Boa Vista as mentes é que estão poluídas... As pessoas pensam pequeno, o mundo pra elas é do tamanho desta cidadezinha no meio da floresta, cheia de mosquitos, doenças... Eu odeio essa vida, Tanaka! Me leva daqui!

– Pra onde?!

– Pro Rio. Lá não correríamos nenhum risco, meu amor...

– Nisso você se engana... Redondamente. O Rio é uma cidade cosmopolita; gente do mundo inteiro visita o Rio... de janeiro a dezembro. A possibilidade que eu teria de encontrar um parente ou amigo do Japão é enorme!

– Pode ser que a possibilidade de nós sermos vistos por lá seja a mesma que existe de aparecermos nas colunas sociais de Manaus ou Belém...

– Eu não gostaria de aparecer nas colunas sociais de lugar nenhum!... Nosso compromisso é absolutamente proibido, reservado, e deve continuar assim...

– Eu não pretendo ficar a vida toda me escondendo dos meus amigos...

Tanaka olhou para ela com uma indiferença gritante, quase de desprezo.

– Mas foi você mesma que disse que odeia isso daqui! – volveu Tanaka.

– Isto não quer dizer que eu vou ficar a vida toda me escondendo do mundo como se fosse uma criminosa! Ou uma coisa tem a ver com a outra? Não, que eu saiba... Você acha que a sua família, lá no meio do Japão, iria ver um jornal brasileiro, Tanaka?

       – Não sei... Mas não quero facilitar. Excesso de confiança é o primeiro passo em direção à derrota... O meu filho... Ele... Está começando a se interessar pelo Brasil...

       – Ah, é? – a interrogação de Marina ficou a meio passo entre o sarcasmo e o prazer, embora ela mesma não soubesse especificar o porquê.

       – É... O que não me está agradando nem um pouco.

       – Eu posso imaginar... Já pensou se ele quiser vir uma temporada pra cá?

       E começou a rir gostosamente.

       – Nem pense nisso! – retrucou Tanaka quase em pânico.

       – Não sou eu quem tem que pensar ou deixar de pensar...

       – Em hipótese alguma eu o deixaria vir para o Brasil.          

       – Você tem certeza?

       – Tenho... porquê?

       – Porque dependendo das circunstâncias, uma seqüência de negativas ilógicas deixaria a sua família desconfiada.

       – Talvez você tenha razão... Mas eu não quero discutir isso agora...

       E os beijos recomeçaram...

       Os dois se atracaram na espaçosa cama do motel, embrulhados nos lençóis como dois pasteis orientais. A luz diminuiu lentamente, e outros sons acrescentaram-se à sinfonia tênue...

Sussurros, resmungos e estalos de beijos molhados...

       Marina interrompeu o tratamento de choque.

       – Você vai conversar sobre negócios ainda hoje?

       – Vou pensar nisso também...

       E as câmeras foram proibidas de mostrar a seqüência que se seguiu.

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