Cada
um de seus passos naquele piso extremamente liso, bem desenhado, recortado em
grandes quadrados pretos e brancos, como numa paródia ao Yin e ao Yang que ele
conhecia como ninguém, transcorria com uma placidez quase absoluta, embora ele
não acreditasse neste absoluto vulgarizado, banal na boca de um sacerdote
medíocre, e apesar dos burburinhos poluidores que vinham de todos os lados, entrecruzando-se
feéricos, e que não viam os mesmos sinais de prosperidade que havia em seus
olhos.
A
cegueira, pensava ele, jazia na retina dos ignorantes, dos timoratos, daqueles
que não acreditavam no seu potencial, mesmo que esta energia não existisse em
quantidades iguais em cada coração...
Ele
sabia disso.
O
Absoluto em que ele acreditava estava mais próximo de Deus, ainda que o seu
sentimento particular não orbitasse na mesma oitava santificada de um eleito.
Mas ele sabia também
que estava a distâncias incomensuráveis de um desses pares divinos, ainda que
sua cultura, fortemente arraigada em hierarquias constitucionais, relegasse a
todos os fiéis a mesma sensação do sagrado, da presença possível de um Deus
palpável.
Portanto,
ainda que Tanaka Osumi carregasse todos esses sentimentos consigo, naquele
coração pretensamente leve, ele não duvidava em nenhum instante da natureza
transitória de todas as coisas. Por isso ele se esforçava cada vez mais! Para
que esta transitoriedade de todas as coisas sob o sol não prejudicasse seus projetos
imediatos, sempre com a perspectiva atenta de um homem que possuía livre
iniciativa, porque ele julgava que aí consistia realmente a diferença entre os
homens...
Bem...
Cada
macaco no seu galho, continuava pensando Tanaka, agora com a mente infectada
pela cultura nacional, onde remergulhava mais uma vez, e, coisa engraçada...
Tanaka
não estava preparado para a surpresa que o aguardava pouco depois do saguão de
desembarque...
Mas
como todo bom samurai, ele não demonstrou em momento algum a fraqueza do
imprevisível...
Sorriu
maleavelmente...
Conquanto
por dentro estivesse furioso!
Marina,
sim...
Esta sorria de
verdade...
O prazer do reencontro
agradava-lhe a alma. A satisfação de estar revendo seu grande amor era perceptível
a uma distância entre o Pacífico e o Atlântico...
Sem nenhum exagero.
Tanaka Osumi representava
a última tentativa de consumar um ideal que alimentara as mulheres da sua
estirpe há gerações...
Mas não era só!
Antes mesmo que
certos fatores majoritários do clã Seixas se impusessem, Marina gostava de
Tanaka gratuitamente, e continuaria a amá-lo se ele fosse mero seringueiro...
Quer dizer...
Ela pensava
assim...
Acontece que as
escolhas do clã Seixas, sacramentadas bem antes de seu nascimento neste planeta,
exigiriam dela algo além de sangue plebeu...
Isto era
indubitável.
Entretanto, aquele
sorriso moreno, alvacento, regado a mimos patriarcais, que transcendia sua
capacidade psíquica intrínseca, aquilo que ela carregava como sendo só seu, mas
que representava o coroamento do ápice social eclipsou-se a uma simples frase
em tom de reprimenda:
– O que você está
fazendo aqui, Marina?
Esta sentença,
claro, foi proferida em português, mas num português ruim, temperado com um
japonês do interior das ilhas pacíficas daquele arquipélago inumerável.
O sorriso, que contrastava
entre o branco de uma dentadura perfeita, e o amarronzado da pele, tornou-se de
súbito amarelo.
Tanaka continuou com
seus passos marcados, agora destituídos daquela placidez do Absoluto, substituída
por uma pisada mais firme, que denotava a irritação de um guerreiro oriental
subjugado pelas forças da natureza.
– Eu não gosto de
encontrar você em lugares públicos sem ser avisado – disse o japonês num tom de
quem mastiga uma ameixa azeda.
– Eu sei disso. Eu
tentei entrar em contato com você, mas o seu celular não entrava em comunicação
de jeito nenhum...
– Ainda bem... –
Tanaka falava seco, e caminhava inexoravelmente, como se pudesse ignorar a
presença de Marina respirando no seu cangote.
– Desculpa, meu
amor...
– E não me chame de
“meu amor”!
Agora o semblante
nublado de Marina deu vazão às lágrimas da decepção...
– Pare de chorar,
Marina!...
Mas ela não
conseguiu atender a ordem do seu Tanaka-san, e chorava copiosamente...
Tanaka segurou-lhe no
braço amorenado com a força de um ronim em duelo, sapecando-lhe um beijo
selvagem, no que ela amoleceu visivelmente...
Eles tinham chegado
a um local do aeroporto de Boa Vista praticamente deserto...
– Eu não entendo
você, Tanaka!...
Mas ela não teve
tempo de refletir sobre o absurdo daquela sensação incrivelmente boa, ainda que
paradoxal, pois levou outro beijo à moda de haraquiri.
– Eu achei que você
estava furioso comigo...
Ela tentou dizer...
– Eu estou!
E toma-lhe outro
beijo babado...
– Vamos sair daqui
de uma vez... – disse o japonês, arrastando-lhe pelo braço para o
estacionamento do aeroporto.
– Aonde você quer
ir?!...
Todo o resto é
quase dispensável.
Algumas horas
depois...
Num quarto de motel
nos arredores da capital de Roraima...
– Meu pai quer
conversar com você...
Tanaka Osumi fitou
aquela pequena com uma ameaça desvelada nos olhos.
– Não é o que você
está pensando – volveu ela prontamente, a fim de desfazer um engano.
Ele relaxou e foi
até o frigobar pegar um refrigerante.
– Como você sabe o
que eu estou pensando?
– Você é engraçado,
sabia, Tanaka?
– Não, não sou.
– Não precisa entrar
em pânico...
– Você não acha que
eu devo me preocupar?
– Claro que não.
Além disso, o velho Ildebrando só quer falar sobre negócios, seu bobo...
– Negócios?...
– Ééééé!
– Mas isso nós
fazemos todos os dias... – Tanaka, de repente, mudou de humor. – Eu fico
imaginando se o velho descobrisse, por exemplo, que você está grávida...
– Deus me livre!
– Ele ia te
expulsar de casa?
– Se não fizesse
coisa pior!
– Não acho que o
Ildebrando fizesse esse tipo de coisa...
– Mas que tipo de
coisa você está pensando?
– Matar você.
– Cruzes, Tanaka!
Que brincadeira!
– Você não disse
que ele poderia fazer uma coisa pior que expulsar você?
– Ah! Isso é uma
forma de falar.
– Mataria?
– Você é que está
querendo me matar!
– Você não é um
estorvo na minha vida, Marina... Embora me atrapalhe às vezes.
– Às vezes eu acho
que se não fossem os negócios com meu pai, você me largaria...
– Não me tome por
um aventureiro qualquer...
– Se a exportação
do arroz se tornasse um mau negócio pra você, nós continuaríamos a nos ver?
– Vejamos por outro
lado... Mais prático e menos emocional. Se a exportação da produção de arroz
aqui de Roraima se tornasse inviável, talvez eu tivesse que deixar este país...
– Então é verdade?
– É verdade o quê?
– Você me usa,
Tanaka.
– E você?... Também
não está me usando?
– Claro que não! Eu
amo você, Tanaka. Mesmo que você passasse a ser um açougueiro eu ainda
continuaria com você...
– Lidando com
carnes todo dia? Acho que você enjoaria...
– Seu japonês
“englaçadinho”! Acabou que você fugiu de uma resposta...
– Eu não fujo a
nada, Marina...
– Então me
responda, anda...
– Se eu tivesse que
me ausentar do Brasil de que forma eu iria vê-la?
– Eu iria atrás de
você... Até no Japão... Se o senhor assim mo permitir.
– Nem por
brincadeira você diga uma coisa dessas!
– Tá vendo?! Eu
conheço muito bem o seu lado fraco, Tanaka-san!
– E daí? Se você
diz que me ama porque iria querer me prejudicar?
– Eu não falei
isso... Em algum momento eu falei em te prejudicar?... Não.
– E as
plantações... como está o trabalho da colheita?
– Ah, eu não sei,
Tanaka! Eu não me meto nos negócios do meu pai. Você tem que ir lá conversar
com ele.
– Você sabia que o
conflito na Raposa Serra do Sol repercutiu no exterior muito negativamente?
– E eu com isso! Eu não quero saber dessa história, já
falei!... Meu Deus, como eu gostaria de sair de Boa Vista, ir morar no Rio de
Janeiro...
– Rio de Janeiro?!
Pra quê?! Aquilo lá é um hospício!...
– Eu gosto do
Rio... Morar na praia... Já pensou? Eu adoro praia! Você gosta?
– Não. Além do mais
elas estão todas poluídas...
– E o que tem isso
de mais? Aqui em Boa Vista as mentes é que estão poluídas... As pessoas pensam
pequeno, o mundo pra elas é do tamanho desta cidadezinha no meio da floresta,
cheia de mosquitos, doenças... Eu odeio essa vida, Tanaka! Me leva daqui!
– Pra onde?!
– Pro Rio. Lá não
correríamos nenhum risco, meu amor...
– Nisso você se
engana... Redondamente. O Rio é uma cidade cosmopolita; gente do mundo inteiro visita
o Rio... de janeiro a dezembro. A possibilidade que eu teria de encontrar um
parente ou amigo do Japão é enorme!
– Pode ser que a
possibilidade de nós sermos vistos por lá seja a mesma que existe de
aparecermos nas colunas sociais de Manaus ou Belém...
– Eu não gostaria
de aparecer nas colunas sociais de lugar nenhum!... Nosso compromisso é
absolutamente proibido, reservado, e deve continuar assim...
– Eu não pretendo
ficar a vida toda me escondendo dos meus amigos...
Tanaka olhou para
ela com uma indiferença gritante, quase de desprezo.
– Mas foi você mesma
que disse que odeia isso daqui! – volveu Tanaka.
– Isto não quer
dizer que eu vou ficar a vida toda me escondendo do mundo como se fosse uma
criminosa! Ou uma coisa tem a ver com a outra? Não, que eu saiba... Você acha
que a sua família, lá no meio do Japão, iria ver um jornal brasileiro, Tanaka?
–
Não sei... Mas não quero facilitar. Excesso de confiança é o primeiro passo em
direção à derrota... O meu filho... Ele... Está começando a se interessar pelo
Brasil...
–
Ah, é? – a interrogação de Marina ficou a meio passo entre o sarcasmo e o
prazer, embora ela mesma não soubesse especificar o porquê.
–
É... O que não me está agradando nem um pouco.
–
Eu posso imaginar... Já pensou se ele quiser vir uma temporada pra cá?
E
começou a rir gostosamente.
–
Nem pense nisso! – retrucou Tanaka quase em pânico.
–
Não sou eu quem tem que pensar ou deixar de pensar...
–
Em hipótese alguma eu o deixaria vir para o Brasil.
–
Você tem certeza?
–
Tenho... porquê?
–
Porque dependendo das circunstâncias, uma seqüência de negativas ilógicas deixaria
a sua família desconfiada.
–
Talvez você tenha razão... Mas eu não quero discutir isso agora...
E
os beijos recomeçaram...
Os
dois se atracaram na espaçosa cama do motel, embrulhados nos lençóis como dois
pasteis orientais. A luz diminuiu lentamente, e outros sons acrescentaram-se à
sinfonia tênue...
Sussurros,
resmungos e estalos de beijos molhados...
Marina
interrompeu o tratamento de choque.
–
Você vai conversar sobre negócios ainda hoje?
–
Vou pensar nisso também...
E
as câmeras foram proibidas de mostrar a seqüência que se seguiu.
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