quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE III - CAPÍTULO 1


Quando abriu a porta da geladeira... Madrugada adentro, tudo escuro... Que susto danado! Um sanduíche americano, pelo menos parte do que sobrara dele, foi ao chão cuspindo caquinhos de louça colorida pra todo lado...

       Alface, tomate, pasta de atum e queijo amarelo, fatiados e despedaçados, jaziam no chão enladrilhado e frio, como no Alaska...

       Ele ficou ligeiramente preocupado com o sono da esposa nua ainda na cama, adormecida, após uma longa noite de amor como nunca se viu...

       Nooooossa! Que exagero das colunas sociais que levantam páginas e mais páginas de assuntos decididamente inúteis!

       Não foi assim... tão maravilhosamente maravilhoso como pensou um Tigre...

Isso até passava pela cabeça de um homem jovem adulto no auge do seu potencial sexual, mas...

       Definitivamente...

       Realmente?

       Foi muito bom. E ponto final.

       Mas houve dias melhores...

       Outros virão...

       Ele andou até uma poltrona na sala. Tudo escuro. Um frio de rachar na noite carioca, e a mulher lá... no quarto... nua.

       Deu uma espiadela pela porta do quarto entreaberta...

       Ela já havia se coberto.

       Voltou até a sala e espreguiçou-se sobre a poltrona confortável. Não era possível entreverem-se detalhes daquela decoração sui generis, pois estávamos na mais absoluta penumbra noctívaga, mas, se pudéssemos, diríamos que tudo que havia de mais confortável na indústria da decoração de ambientes deveria existir ali...

       Mas ele não se preocupava com nada disso...

       Sua mente vagava a muitos quilômetros de distância do Rio de Janeiro, apesar de estar precisando de uma folguinha como esta, não negava, principalmente depois dos acontecimentos que culminaram na declaração de guerra...

       Não comentara uma linha sequer com Flávia, sua mulher. Ela não precisava saber dos problemas do seu trabalho, até porque ignorava qual o serviço que o marido exercia no exército, e também não se interessava muito por ele por livre e espontânea vontade. Sua vida social era muito mais importante do que a carreira dele, metido no meio da selva amazônica, conforme ela desabafara uma vez com uma amiga...

       Amiga mesmo?

Todos nós temos nossas dúvidas.

Flávia era uma bela representante da classe média alta carioca. Um corpo escultural, jovem, moreno de praia todo dia e ávido por aventuras. Desfilava esta beleza por academias e onde mais fosse requisitada. A vida era uma delícia! Boa para ser vivida e não dramatizada. Odiava más notícias. E odiava tudo o que lhe subtraía deste mundinho da aparência e das pseudovirtudes da sociedade carioca, pois, em sua tosca opinião, a civilização caminhava cada vez mais para o ápice, embora não soubesse especificar do quê...

As preocupações com as desigualdades sociais, as distorções e iniqüidades por trás dos poderes públicos, tudo isto era conversa inútil, que não a levaria a nada!

Já fora assaltada duas vezes, uma delas na porta de casa, quando lhe deixaram apenas com a roupa do corpo, expressão máxima da impotência carioca. Ainda bem! Mas pensa que Flávia se incomodava com isso? Não ‘tava nem aí!

 Não, ela queria muito mais, muito mais do que poderia cogitar sua vã filosofia, as luzes e as passarelas adequavam-se ao seu perfil como a mão para a luva...

As festas desta cidade bandida que um dia ousou maravilhosa, hoje relegada ao descaso público; uma elite insensível e burra que não enxerga um palmo adiante do nariz, e políticos e vassalos inescrupulosos, decadentes, agindo como vampiros sobre o dinheiro público, com a aquiescência de um povo sofrido e bitolado pela prestidigitação da mídia...

Esta a realidade invisível...

No entanto Flávia e suas queridinhas ainda queriam mais!...

       Felipe também...

       Só que numa oitava diferente.

       A gritante realidade que ele respirava tinha outro sabor...

Mais amargo, é verdade, porém, embora Felipe desconfiasse que todo o panorama visto da ponte cheirasse a cadáveres em grande profusão, também se sentia incapaz de perceber todos os sintomas para chegar ao diagnóstico final...  

Sentado na sua poltrona na escuridão da madrugada suada, apesar do frio noturno, chuvoso, tenebroso, Felipe conseguiu esboçar um sorriso...

Subitamente pensou em Celha Regina...

Mas logo em seguida imaginou-a no meio dos chacais comandados por Siboldi, a selva nervosa, coerente e hostil, a persegui-la com seus galhos ameaçadores, exatamente como num conto infantil de terror, e aquele sorriso desapareceu...

Uma vozinha esmaecendo por baixo dos lençóis despertou-o de outro pesadelo...

O vento noturno trouxera estas palavras:

“Meu amor”...

E outras mais se acrescentaram à sinfonia do Monte Calvo...

– Que que ce tá fazendo?

Ele guiou-se através dos becos escuros até seu himeneu penumbroso...

Um corpo bem esculpido agitou-se por baixo do edredom soletrando com dificuldade palavras ainda mais obscuras...

Ainda assim ele pôde compreender...

– Porque você não vem dormir?

– Porque eu perdi o sono...

Flávia levantou-se, como que embriagada, embora não bebesse uma gota de álcool. Sua beleza era estonteante, mesmo descabelada, aqueles cabelos sedosos compridos brilhantes emaranhados...

– Você está tão estranho, Felipe...

– Estou?

– Sério! Desde que você chegou...

– Engraçado...

– Aconteceu alguma coisa lá na Amazônia?

– Não.

Porém esta resposta dizia muito mais do que uma infinidade de livros.

Flávia levantou-se definitivamente para ir ao banheiro...

Toda a poesia ficou suspensa por alguns segundos...

Uma Noite no Monte Calvo...

De novo.

Flávia empurrou-o para cama...

Por um breve momento, Felipe pensou que eles começariam tudo outra vez, mas ela citou um acontecimento banal, uma fofoquinha de academia, e seu espírito rebelou-se...

Felipe deixou-a falando sozinha e dirigiu-se à sala, na cova do Monte Calvo...

– O que aconteceu, Felipe? – perguntou ela penetrando na cova. – Você está muito estranho, Bem...

– É impressão sua, Amor.

– Sabe aquela vaca da Marília?

– Não – volveu ele distante, imune aos ruídos. – Eu não conheço nenhuma das suas amigas – completou com ironia, o que jamais atingiria a insensibilidade social de Flávia.

– Largou o marido pra ficar com um amante vinte anos mais velho do que ela...

– Alguma coisa este “amante vinte anos mais velho do que ela” deve ter que o marido não tinha...

– Duas coisas na verdade. Uma BMW e um Masseratti na garagem.

– E o marido da Marília?

– Tinha um Picasso. Mas ficou só com ele. A Marília foi morar com o Masseratti.

– Isso foi bom pra ela?

– Meu Deus, Felipe, se eu não te conhecesse, diria que você está igual ao marido da Marília!

– Porquê? Eu não tenho um Picasso...

– Não! Mas eu adoro o seu Stylo! – volveu ela com uns olhões arregalados, e acrescentou satisfeita, sorrindo: – É tão bonitinho ele, sabia?

Felipe olhou-a com ternura. Ela não passava de uma criança, como toda a humanidade, pensou num momento de lucidez algo profética.

E o que não era este mundo senão uma imensa creche escola?

Felipe estava inspirado.

Ele caminhou em direção ao lavabo. Flávia seguiu-o, agarrando-o pelas costas, soprando pequenas palavras mutiladas de carinho. Ela gostava do marido, sem dúvida, não o trocaria por um Masseratti, nem por uma BMW, até porque Felipe lhe dava uma vida de rainha, só que adorava a vida carioca muito mais do que imaginava.

Futilidades a parte, os dois se atracaram no corredor, ou melhor, ela é quem o derrubou no tapete da porta do lavabo...

A madrugada alongou-se prazerosamente.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE II, CAPÍTULO 2.


Tanaka Osumi não se interessava por passarinhos...

Até gostava, nas horas vagas, lá na sua casa de campo no interior do Japão, com sua bela e tradicional família japonesa, que jamais havia visitado o Brasil, embora até ouvisse falar naquele país exótico, porque muitos descendentes viviam por lá...

No entanto, no Japão tradicional, a coisa era bem diferente...

O que mais se falava do Brasil por aquelas plagas, mas não na região onde viviam os Osumis, era Zico, Carnaval, Tropicalismo e Gisele Bündchen...

Alguns japoneses de olhinhos puxados ainda comentavam, com certo pudor, é verdade, porque eles eram muito educados, que, aqui no Brasil, o que dava mesmo era corrupção e impunidade...  

E o que as íris de Tanaka mais gostavam de ver eram os cifrões das moedas correntes pelo mundo, traduzidas em polpudos yens japoneses...

Sim, os interesses de Tanaka eram bem como Mister Taylor havia citado...

A exportação do arroz que era produzido às margens da reserva Raposa Serra do Sol, uma das maiores fontes de conflito da região por causa dos índios, dava a Tanaka um lucro exorbitante! Mas ele não se metia em interesses políticos de países amigos...

O seu trabalho gerava divisas pelo mundo afora, mantinha empregos, fazia a roda girar, e era isto o que importava, embora ele gostasse deste Brasil encantador que só dava lucro e ninguém queria largar, apesar de toda crise internacional, uma crise que transcendia a economia mundial, o que nenhum dos confrades de Tanaka jamais iria admitir...

Ou seja, Tanaka Osumi era um homem de negócios por excelência, convicto daquilo que fazia, e sempre pronto a fazer o próximo lance, e que isso lhe custasse o menos possível, pois, afinal, sempre existe a possibilidade de se barganhar, e nada melhor do que o Brasil, terra fértil para negócios baratos e lucrativos!

Talvez o Brasil fosse a terra mais promissora do futuro, isto é, desde que nenhum engraçadinho ousasse mudar as regras do jogo, isso Tanaka jamais admitiria, e todo o conglomerado financeiro mundial assinava embaixo.

 Tanaka era um dos maiores amigos do casal Taylor no Brasil, e em Little Town, na Guiana, onde o casal tinha sua residência fixa, o japonês se “escondia” às vezes.

Volta e meia estavam os três reunidos em festas em Manaus, Belém, Boa Vista, onde quer que elas estivessem acontecendo...

Apesar dos Taylors não morarem no Brasil oficialmente, eles falavam o português muito bem, e tinham livre acesso para ir e vir à vontade, pois o seu trabalho era reconhecido por toda a comunidade amazônica. Ambos eram autoridades em suas áreas técnicas no mundo todo, e tinham também muitas amizades nesta região, que englobava mais de um país da América do Sul.

Mas o que os Taylors tinham de tão aprazível para os olhos ávidos do japonês?

Apesar de viverem enfurnados lá nos cafundós do Judas da selva amazônica, os Taylors eram muito bem relacionados dentro e fora do Brasil, e com isto Tanaka dispunha de enormes possibilidades de penetração política em terras tupiniquins e alhures.

Mais contatos significavam também novas possibilidades de expansão em negócios, e o que há de mal nisto?...

Absolutamente nada.

Considerando ainda que Tanaka fosse um defensor férreo das linhas mestras do pensamento samurai, ele havia assimilado, todavia, um dos pilares fundamentais do modus operandi da sociedade brasileira, e por isso sabia que quem tem padrinhos não morre pagão.

Tanaka ficava, às vezes, uns dois meses sem pôr os pés no Japão, envolvido até o pescoço com os negócios, e nisto também ele assimilara uma das maiores manias nacionais, principalmente para os homens ricos de norte a sul, que era a de possuir uma amante...

Ela atendia pelo nome de Marina Seixas, e pertencia a uma das mais tradicionais famílias da região, que conhecia o japonês e sua história, e ainda assim não criava caso, ao contrário, uma vez que a bela morena, com ascendência inegavelmente indígena, de uma beleza estonteante, vivendo a tira colo com ele para cima e para baixo, só iria granjear, segundo a família Seixas, bons dividendos para todos, o que não desagradava nem mesmo a Tanaka, uma vez que sua família, lá no recanto mais inóspito de uma ilha no Pacífico, jamais ouviria falar das aventuras deste samurai às avessas, e, em relação à família de Marina, e mesmo dela própria, ele estava pouco se lixando!

Porém, estas ligações perigosas, mais dia menos dia, poderiam desembocar num grande escândalo, mas ninguém parecia se importar com isso, exceto os Taylors...

Aparentemente, claro.

– E essa menina, Tanaka... – perguntou-lhe Susan, num dia em que ele os visitava em sua bela casa em Little Town. – Não se incomoda mesmo de você ser casado?

– Acho que não – respondeu o japa taxativo, com algum orgulho por enxergar sua sapiência oriental, e certa superioridade imperialista. – Digamos que ela – e os pais também, claro – esperam aumentar seu rol de influência política na região...

– Mais ainda?! – perguntou, por sua vez, Charles Taylor, com a fala meio torta devido ao tradicional cachimbo inglês enfiado no canto da boca, embora com certa ênfase, sentado numa elegante Berger italiana com couro americano marrom escuro legítimo, no calor de sua suntuosa biblioteca e suas encadernações francesas do século XIX, e uma xícara de café, este genuinamente brasileiro, bem ao lado da mesinha de centro, onde outras duas xícaras repousavam, uma pela metade, exatamente a de Tanaka, porque ele preferia o saquê, a outra da própria Miss Taylor.

Tanaka limitou-se a rir da entonação um tanto sarcástica de Charles Taylor, a quem ele supunha conhecer muito bem, não entrando em detalhes acerca da verossimilhança ou não da assertiva.

– Mas e os pais dessa garota? – insistia Susan, num interesse que transcendia a esfera da fofoca – Eles devem saber que você nunca poderá assumir nenhum compromisso com a filha deles, o que torna este interesse meio inútil...

Tanaka voltou a sorrir. Era um homem no auge do seu autodomínio capitalista, da pujança senhorial, de alguém que pode até mudar o rumo das revoluções solares.

– Inútil? – replicou ele. – Esse povo tem uma esperança insana por um Deus que julga brasileiro acima de todas as outras raças! Vocês já viram maior absurdo?

Charles Taylor assentiu com o cachimbo na boca.

– Eu sim... Foi há quase dois séculos, quando o povo inglês se julgava privilegiado, até mesmo mais que aos judeus...

– Ou que os brasileiros – e Tanaka voltava a sorrir, zombeteiramente.

– Mas será que essa família tem mesmo alguma esperança de vê-la casada com você? – volveu Susan, no entanto estava claro que ela queria dizer muito mais. – Eu digo isso, porque, sendo esta família, como você mesmo acabou de dizer, uma das mais tradicionais de Boa Vista, não deve ter muita simpatia ao assistir a filha única desfilar com um homem casado...

– Susan – e aqui Tanaka fez uma pausa grave, delicada, porém ameaçadora para as pretensões dos Seixas. – Eu não tenho o menor interesse em me desfazer do meu casamento. Nunca passou pela minha cabeça abandonar a minha família para residir aqui no Brasil... E ela sabe disso...

– Mas será que a família dela sabe? – lembrou Susan bem a propósito.

 – Bom... Isto não é problema meu...

– Em muitas ocasiões, meu samurai, nós vemos a realidade de um jeito próprio, e que não necessariamente é encarada da mesma forma pelos outros – a fumaça expelida pelo cachimbo de Charles parecia rir-se daquela filosofia pela metade.

Não houve réplica por parte do japonês.

– Olha qu’eu já vi muito paxá descendo do seu trono engalanado, meu caro – completou Charles fumacento.

– Você está brincando comigo, Charles! – volveu um Tanaka indignado. – Esta situação não foi criada por mim... E eu deixei isto bem claro desde o começo!...

– Eu o entendo perfeitamente, meu caro Tanaka – continuou Charles, fumacento. – Além disso, você seria um tolo se largasse a sua... Como é mesmo o nome de sua esposa, Tanaka?

– Omiko – respondeu ele curto e grosso.

– É um belo nome, sem dúvida... Como você poderia largar a sua Omiko por esta... Não gosto desta alcunha, mas vá lá, é como todo mundo costuma denominar no sentido pejorativo do termo...

– Cucaracha – disse Susan sem rodeios.

– Obrigado, minha amada – retrucou Charles muito corado. – Na realidade é o tipo de coisa que nós, os líderes do mundo, costumamos pesar na balança...

– Não é isso que eu levo em consideração – respondeu Tanaka sem pestanejar. – É claro que nossas diferenças culturais têm o seu peso, mas... Até quando eu estarei no Brasil?

– Enquanto os negócios prosperarem – disse Susan com uma pontada de malícia.

– Estou como vocês... – devolveu o japonês. – De passagem.       

– Neste ponto permita-me discordar de você, meu jovem! – replicou Charles com jovialidade, mas sem esconder certo incômodo frívolo. – Eu não sei se eu e minha querida Susan partiremos desta região algum dia... Nós adoramos isto daqui!

Susan “Chapman” Taylor olhou para o marido com certa dúvida naqueles olhinhos azuis piscina. De certa forma ela até concordava com ele, mas deixou transparecer ao japonês que neste assunto não havia unanimidade entre o império britânico.

– Por falar nisto, Tanaka – volveu Charles com suas baforadas perfumosas. – Como vão os negócios nesta temporada de caça?

– Na mesma – retrucou o japonês com indiferença infinita. Nem parecia que ele amava o dinheiro.

– Qual o grande empreendimento do momento? – insistiu o inglês.

– O mesmo de sempre – disse o japonês com uma malícia oculta, mas que Susan percebeu no ato. – Mas o melhor negócio de todos, aquele que pode transformar a Amazônia num pote de ouro, seria, talvez, criar uma área de reserva internacional na Amazônia...  

– Como assim, Tanaka?! – perguntou ela, curiosa por natureza, disfarçando, porém, seu real interesse pelo assunto. – Como poderíamos transformar uma região que pertence a um punhado de países, numa reserva internacional?

– Então!... O primeiro passo já foi dado pela história... Não sei como poderíamos viabilizar isto do ponto de vista burocrático, mas sei que deveríamos.

– Todos nós sabemos que a Amazônia vale muito mais do que a floresta em si, mas se nós vamos transformá-la numa área de reserva internacional, ela não poderá ser explorada pelas indústrias...

– Neste caso – imiscuiu-se Charles, cortando a esposa, sorrindo e soltando espirais de fumaça para o ar privilegiado do lugar, porém dirigindo-se a Tanaka – Sou obrigado a concordar com minha esposa. Todos nós sabemos que a legislação no Brasil é frouxa em vários sentidos, o que faz com que as madeireiras, por exemplo, possam explorar este filão praticamente impunes, porém, desde o momento que nós criarmos uma área de reserva internacional por aqui, a comercialização da madeira cairá praticamente à zero, haja vista que quase a maioria dos ambientalistas diz ser este um dos principais problemas da floresta desde Chico Mendes.

Susan olhou para Charles, depois para Tanaka, a fim de presenciar se o japonês acusava o golpe, porém qual não foi sua surpresa ao vê-lo esboçar um sorriso tosco e enigmático, como o do jogador que acaba de se certificar que na próxima jogada sairá vencedor.

– Vocês não estão me entendendo...

– Explique-nos Tanaka – incentivou Charles, maliciosamente.

– Estou falando de uma falsa reserva, obviamente, onde nós possamos arrancar todas as riquezas que a Amazônia possa nos proporcionar...

– Nós?! – Susan fingiu não entender.

– Nós, as nações ricas e empreendedoras, claro! Há muito para fazermos na Amazônia, gente...

– Não creio, meu caro Tanaka. Não creio, sinceramente, que este seja um empreendimento viável, e nem que a opinião pública mundial veja isto com bons olhos...

– É óbvio que não, Charles! Mas manobrando as pessoas certas, eu acho que nós conseguimos dar um jeitinho, afinal o Brasil é a terra do jeitinho...

Tanaka não percebera que a conversa alcançara um terreno incômodo para os dois cientistas, e, facilitado pela boa comida e bebida, continuou falando até tarde, até que chegou o momento de ir-se embora.

Depois de encerrada a visita, tarde da noite, Susan Taylor ainda teve tempo de observar para seu marido:

– É bastante ambicioso nosso amigo japonês, né?

– Muito – concordou o inglês que nunca perdia o bom humor. – Esses homens de negócios não conseguem enxergar outra coisa que não seja uma boa fonte de renda onde quer que ela esteja. São capazes de qualquer coisa para atingir este objetivo...

– Será que nós devemos considerá-lo mesmo um amigo, Charles, meu bem?

– Querida, vou lhe dizer uma coisa que talvez lhe alegre o coração... Eu não consigo desgostar dele.

Susan abriu um largo sorriso antes de deitar para dormir.

– Eu também gosto muito dele... – disse ela, deitando-se. Charles anuiu deitado, todo coberto, com seu gorrinho inglês e tudo. Ela continuou sorrindo e deu-lhe um beijo caloroso no rosto, dizendo: – Mas espero, sinceramente, que a idéia de transformar a Amazônia numa reserva internacional fracasse.

A luz apagou-se. 

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE II, CAPÍTULO 1


Alguns palavrões em inglês, absolutamente inéditos para uma audiência pouco acostumada à língua, encheram o ar da floresta.

       Nenhum daqueles pássaros, entre miríades de outros seres não menos interessantes, ligou para as advertências monossilábicas que agora se seguiam às imprecações indignadas daquele homem praticamente nu, embora o tom da pele o denunciasse como um estrangeiro.

O motivo de tanta irritação era simples: Mister Taylor estava enredado na própria rede...

Ele tentava pegar alguns incautos passarinhos para seu mais recente estudo sobre as migrações das espécies ornitológicas...

Uma série de gargalhadas femininas de boa cepa, divertidas mesmo, logo se seguiram aos reclames internacionais.

– Ora veja você, Charles! O caçador tornou-se a caça!

– Você quer deixar de bancar a engraçadinha e me ajudar a sair daqui?

O tom de voz de Charles Taylor ainda era de irritação.

A propósito. A mulher que havia lhe falado, em português, porque eles o entendiam e falavam com muito prazer, era Misses Susan Taylor, uma grande biologista, que ajudava o ornitólogo e marido no trabalho de campo há já três décadas.

Misses e Mister Taylor já não eram garotinhos, embora gostassem daquele ritual célebre de esconderem a idade, orçada de qualquer maneira lá pela casa dos sessenta, é o que se dizia a boca pequena, na pequena comunidade onde viviam, em Little Town, República da Guiana.

– Acho melhor cortar a rede – volveu Susan sintomaticamente. – Oh, meu amor! Você se enredou de tal forma que não vejo outro jeito de tirá-lo daí...

– Tira essa merda logo, Susan! – esta frase foi proferida em português mesmo, com toda a ênfase que a situação exigia. – Não importa se estragar!

– Tá bom... – dizia ela sem perder o bom humor. – Vou cortá-la...

Logo depois Mister Taylor já estava livre da rede.

– Mas como você foi se enrolar na rede, Charles?

– Eu estava observando aquele casal de uirapurus de ontem, você lembra deles?... Pois eu tinha me esquecido da posição exata onde tinha armado essa merda!... Eu fiquei puto com a minha distração, aí saí arrastando a porra da rede que nem um alucinado...

– Calma, Charles! Nós temos dúzias destas redes em casa!

– Eu sei que temos, Sue! Só me preocupa a minha desatenção dos últimos tempos... Acho que estou ficando velho, sabe...

– É natural, meu querido. É óbvio que nós já não somos tão jovens de quando aqui chegamos... Você se lembra? Foi na década de oitenta...

– Se me lembro? Claro que eu me lembro! Como poderia esquecer. Acho que eu tive a mesma sensação dos portugueses há cinco séculos, a de ter encontrado o paraíso...

– Sabe de uma coisa, Charles? Eu ainda penso que estamos nele, apesar de tudo. Apesar do desmatamento, da ganância humana, da ignorância...

– Se nós não tomarmos muito cuidado com isto aqui, em poucas décadas a maior parte deste nosso paraíso terá desaparecido...

– Você acredita mesmo nisso?

– Olha o que nós fizemos com as florestas da maioria do planeta... O que os próprios brasileiros fizeram com a Mata Atlântica... Às vezes eu tenho muito medo, Sue.

– Você acha que pessoas como o Tanaka, por exemplo, deixariam?

– O Tanaka?! Aquele japonês só quer enriquecer, meu anjo! Ele não tem qualquer comprometimento com a sobrevivência da floresta, o que ele quer é engordar sua já bojuda conta bancária no Japão.

– Você está sendo injusto com o Tanaka, Charles! Eu gosto muito dele. Ele é muito nosso amigo...

– Nosso amigo, é?

– O trabalho dele depende diretamente da floresta. Se não houver Amazônia, ele perde a “bojuda conta bancária no Japão”.

– Ele não depende da floresta, Susan! Que espécie de blasfêmia é esta que você está dizendo? Além do mais, se um comerciante perde sua fonte de renda ele migra pra próxima...

– Não o Tanaka, Charles! O Tanaka está tão envolvido com isto daqui quanto nós...

– O negócio do Tanaka é exportar arroz, minha querida. Mais nada além disso.

– Não seja tão exigente com ele, Charles Taylor. É preciso que se tenha um pouquinho de benevolência...

– E uma pitada de pusilanimidade também, não é?

– Deixe de ser tão pessimista, Charles! O mundo sobreviverá a nós...

– Espero que sim, my darling! E você será canonizada pela Igreja Católica em 2100... “Santa Susan Chapman”...

– Deixe de ironias, seu bobo. Nós ainda temos muito que fazer por hoje...

– Mas logo agora que estávamos tratando da sua canonização?

– Recolha suas coisas, Doutor Taylor! Nossos passarinhos nos esperam em casa...

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - unidade I, capítulo 7


7



E foi numa tarde após tantas outras que se deu o primeiro confronto...

Felipe e Celha, alvos já de certo disse-me-disse, algumas bocas maledicentes garantindo, inclusive, que Celha já era comida do Comandante Paglia, agora parecia oferecer os seus favores ao rebelde Felipe, quando as duas facções depararam-se no meio do pátio do quartel...

Foi um arremate breve, mas que causou estrago.

Disse o Capitão Siboldi com malícia algo ferina, dirigindo-se ao Tenente Corrientes:

– E aí? Continua escutando atrás das portas, filhinho de papai?

Havia um clima de animosidade explícita, prestes a explodir num conflito mais grave a qualquer momento...

Entretanto vários dias de relativa paz se passaram sem que ninguém chegasse ao impasse final, àquilo que ninguém gostaria que acontecesse.

Celha, como possuísse uma compreensão maior do todo que a do companheiro, e preparação psicológica também, conseguiu evitar que Felipe cedesse às provocações, porque era justamente o que almejava Siboldi.

Num belo dia os dois voltaram a se esbarrar no corredor, numa hora em que o serviço já estava encerrado. Contudo, para piorar a situação, Felipe estava de ovo virado, como sói dizer. Houve um principio de tumulto. Felipe ameaçou partir pra cima do Capitão, o que seria uma clara demonstração de indisciplina, punida exemplarmente por qualquer superior. Porém houve atenuantes: Felipe não chegou a se engalfinhar com o seu superior, porque foi detido por sua amiga Celha, pelo Sargento Gusmão e o Tenente Mascarenhas, ambos da corriola de Siboldi, mas ainda assim a refrega não podia passar em branco...

Felipe e Celha foram recebidos no gabinete particular do Coronel Paglia.

– O que, exatamente, está acontecendo entre vocês, Tenente Corrientes?... Eu já soube de várias versões, mas decidi não acreditar em nenhuma delas até ouvir a sua primeiro.

Era um interrogatório, não havia dúvida! E nem poderia ser diferente, haja vista que o que estava em jogo neste momento era a ordem dentro de um quartel militar, e ordem era um artigo fundamental para qualquer instituição desta natureza, porém, havia um clima de camaradagem por parte do Coronel Paglia, próprio do seu temperamento conciliador, vaselinamente bem entrevisto pela Tenente Nascimento.

– Apenas e tão somente um desentendimento bairrista sem maiores proporções, Comandante – arrematou Celha, tergiversando.

 – Está me parecendo isso também – concordou Paglia com aquele eterno sorriso de bom humor. – Mas eu queria a sua opinião a este respeito – completou, apontando a boca cheia de dentes branquinhos para Felipe.

Ele demorou muito a engatar a primeira marcha, mas enfim pegou.

– Siboldi é daqueles paulistas que se acham mais espertos do que qualquer outro brasileiro, só que ele não entende que malandragem não se aprende na escola – arrematou Felipe deliberadamente omisso.

– Vamos fazer uma coisa, Corrientes... – retrucou Paglia com aquele sorrisinho divertido e insistente que chegou a irritar um pouco Felipe por achá-lo um tanto forçado naqueles lábios grossos quebradiços. – Vamos esquecer esta bobagem toda, tá? – de repente, aquele sorriso fácil desapareceu da expressão matreira do Coronel Paglia, e um ar de seriedade substituiu aquel’outro. – Até porque isto pode atrapalhar o rendimento de vocês nas ações que estamos desenvolvendo, o que me obrigaria a intervir de maneira severa contra os dois, o que eu espero não ter de fazer. Não posso mexer no nosso time agora.  

– Além da questão Raposa Serra do Sol, Coronel, existe alguma questão “extra” em andamento? – perguntou Celha com alguma malícia.

Paglia observou-a atentamente antes de responder, uma expressão absolutamente indecifrável.

– Nós trabalhamos num quadrante de fronteiras, Tenente Nascimento – volveu Paglia categórico, porém ameno, disfarçando o que ia ao intimo. – Estamos sempre prontos às missões de emergência. Bem, Corrientes, não ouvi sua resposta, garoto...

– Claro que sim, Coronel – respondeu Felipe meio cabisbaixo, mas não tanto. – Aquilo foi uma bobagem de nossa parte...

– Como toda grande família, sempre há um arranca rabo – Paglia voltou imediatamente ao seu tom habitual. – Deixe o Capitão Siboldi comigo – acrescentou relaxado, cínico, brincalhão.