– O que você espera
conseguir com isto, Celha? – perguntou, algo irado, Felipe Corrientes, como se
estivesse discutindo uma diferença conjugal.
Celha pensou em
dar-lhe uma resposta à altura, mas respirou dez vezes antes de atirar a
primeira pedra, porque o seu projeto estava inteiramente ameaçado, e ela não
podia desperdiçar esta oportunidade.
Inúmeros problemas
surgiram nesta conflagração da Raposa Serra do Sol.
Estavam no
dormitório dos oficiais – ainda não soara quatro badaladas no relógio da madrugada
– cercados por tudo o que havia de melhor em termos de equipamento militar para
o tipo de trabalho que iriam desempenhar...
Isolados de todo o
restante do pelotão, como se os companheiros, Paglia incluso, já os computassem
como baixas de serviço...
O melhor dos
melhores...
Quem poderia se
considerar como tal?
Estranha ocasião
esta...
Num mundo onde as
pessoas vivem buscando respostas para seus principais problemas, e mesmo quando
as encontram, continuam a esmurrar a ponta de uma faca pontuda que sangra em
catadupas...
A fragilidade de
uma nação...
Estas frases cabiam
perfeitamente na boca de Felipe...
No entanto ele
continuava a fitar Celha, com olhos severos, como que aguardando uma resposta...
E ela veio de forma
enigmática.
– A resposta que
você quer não pode ser dada agora, Fê... Vamos esquecer todos os
questionamentos dos últimos meses, mesmo que eles pudessem ser levados às
últimas consequências, mudar nossas vidas para sempre. Eu acho um pouco tarde
demais...
– Tarde demais pra
quê?
– Olha a sua volta,
Fê! Está vendo todo este equipamento de última geração? Nós vamos estourar um
acampamento de traficantes de drogas! Vamos nos tornar heróis!
– Ou defuntos.
– Você acha mesmo?
– Esses caras não
têm nada a perder... Quer dizer, talvez tenham um prejuízo filho da puta se nós
os pegarmos, e por isso vão defender o seu ganha-pão até o último “soldado”...
– Eu continuo
achando que eles não vão ter muita chance...
– Seu otimismo é
contagiante, sabia? – retrucou Felipe mordaz.
– Eu falo sério...
Muito sério mesmo!
– Vamos aprontar
essa merda de uma vez, vai – volveu Felipe meio acabrunhado. – Eu desisto! Até
mesmo porque, como você bem disse, já estamos na chuva...
– Vai por mim,
Felipe. Não vamos nos molhar.
Felipe nem deu mais
atenção ao excesso de confiança da parceira. Ele sabia que este era o tipo de
coisa que levava muitas vezes as pessoas à catástrofe, mas preferiu apostar na
euforia de Celha Regina... Era mais... salutar.
Desempilharam
equipamento atrás de equipamento. Armaram-se e vestiram-se com todos os
apetrechos disponíveis: roupas camufladas, fuzis, pistolas, pentes de balas
para ambas as armas em grande quantidade, granadas, binóculos infravermelhos,
GPS, walkie-talkies, e até um aparelho revolucionário...
Um helicóptero os
levou a um determinado ponto, próximo do acampamento dos marginais...
Foram penetrando
pela mata como onças sorrateiras, dispostas a abater uma grande presa...
A selva em torno do
acampamento era uma escuridão infinita, só se ouvia os ruídos da vida
fervilhante, mas no acampamento, ao contrário do que se poderia pensar, as
coisas aconteciam...
Não se tratava de
um grupo organizado militarmente, mas com toda a certeza a disciplina era
férrea...
Passava das cinco
da manhã quando Felipe e Celha Regina chegaram ao acampamento dos
traficantes...
Localizaram seus
alvos...
Aproximaram-se bem
devagar...
O café da manhã era
servido...
Um grupinho
conversava e comia perto de uma fogueira a frente de um conjunto de barracas de
camping de porte médio...
Havia luz em outras
duas barracas grandes, e movimento de saída e entrada de homens...
Pareciam já estar
trabalhando...
Havia também
mulheres no meio do grupo...
Armadas, inclusive.
Duas jovens morenas
serviam este grupo, que conversava bastante animado em frente à fogueira, com
alguns quitutes indistinguíveis...
O café derramava-se
nas canecas reluzentes...
Todo este movimento
era acompanhado pelas lentes dos binóculos infravermelhos de Celha e Felipe.
– O que você acha?
– perguntou Felipe, com um grau de tensão que poderíamos identificar como alerta
vermelho.
– Tem muita gente
lá, Fê... Parece mais um acampamento de jovens universitários do que
traficantes de drogas...
– Como vamos pegar
os cabeças desse negócio? – volveu ele quase em desespero, largando o binóculo
e dirigindo-se a Celha.
– Na minha opinião
o nosso alvo deve se concentrar naquelas barracas grandes ali, ó... Dá só uma
olhada...
– Tô vendo... Que
que tem?
– Ali deve estar o
ouro, Fê...
– Mas pra nós
chegarmos até lá vamos ter que passar por um exército primeiro...
– Ora! Exércitos é
nossa especialidade!
– Fala sério!
– Eles estão
distraídos tomando o seu desjejum...
– Eu não tenho
dúvida que a qualquer sinal de nossa presença eles vão se transformar em
máquinas assassinas.
– OK. Vamos traçar
um plano estratégico...
– Fique à vontade
para sonhar, meu bem...
– Eu não sabia que
você era meio gaiato...
– Só quando a minha
vida está por um fio... Afinal sou um filósofo à moda antiga...
– Então vamos
começar, meu Sócrates tupiniquim. Bala na agulha. Checar equipamento...
– Tudo em cima...
Parece.
– Pra mim também...
– Quando você
quiser...
– OK. Um de nós
contorna o acampamento, se posiciona e começa a explodir os pilantras pra
dispersar, o outro entra atirando, visando as barracas grandes, onde
provavelmente acontece a produção de drogas e/ou contabilidade e comunicação. O
que seguir por este caminho não pode errar...
– É o caminho dos
campeões, Celha...
– Eu sei, Fê... Eu
vou neste...
– Não!... Você não
pode...
– Porque não?
– É a parte mais
difícil...
– E você quer me
proteger? Sai fora, Fê! Você ainda acredita neste tipo de coisa?!
– Agora não importa
mais no que eu acredito ou deixo de acreditar...
– Eu vou esperar você
plantar os ovinhos. Não vai acontecer nada comigo. Nossa missão será um
sucesso, cara!
– O que você tem?
Bola de cristal?
– Não, apenas uma
fé inabalável em nós dois...
– Huuuuum!
– O que o futuro
nos reserva, Fê... Ah, deixa pra lá!
– Eu acho bom, viu?
Agora nós temos que ser apenas soldados... Não é assim que devemos pensar,
“camarada”?
– Vai, lindão! Eu vou
dar uma de Clint Eastwood hoje...
– Esta parte do
filme, geralmente, é o mais fodão que faz...
– Então... Eu vou
te mostrar quem é foda aqui...
– Mas...
– Vai, Fé, ou eu
começo a atirar daqui mesmo...
Felipe não discutiu
mais com sua...
O quê?...
Amiga?
Como ele mesmo
disse, isto não importava agora.
Eles ligaram o
revolucionário aparelho de deflexão de imagem, uma “caixinha” do tamanho de um
rádio de pilha, afixada ao cinto de utilidades no uniforme militar.
Subitamente, os
dois deixaram de existir...
Entretanto, os dois
corpos não deixaram de ocupar o seu espaço no terreno, mas suas silhuetas, sim,
desapareceram das vistas de todas as possíveis testemunhas. Entretanto, caso
esbarrassem em alguém, o contato seria normal, embora continuassem
“invisíveis”.
Esta tecnologia
vinha sendo experimentada secretamente nos laboratórios da indústria brasileira
de armamentos, e ninguém, em qualquer parte do mundo, tinha conhecimento disto.
Felipe contornou o
acampamento calmamente...
Celha esperou...
Cada um dispunha de
sete granadas em seu equipamento pessoal. Felipe lançou mão logo de duas...
Que explodiram
aleatoriamente...
Alarme no
acampamento...
Todo mundo gritava,
corria, e alguns atiravam a esmo...
Esta era a parte
perigosa da missão, porque, mesmo invisíveis, uma bala perdida poderia
atingi-los...
Mais duas
explosões...
Que atingiram em
cheio algumas barracas dos traficantes...
Dois corpos foram
arremessados à distância. Duas primeiras baixas no seio dos traficantes.
O acampamento
estava em polvorosa. Alguns “soldados” do tráfico, em pânico, continuavam a
atirar num inimigo invisível...
Outra explosão...
Mais baixas...
Inúmeras...
Muita confusão...
Celha Regina
agiu...
Entrou correndo
numa das grandes barracas que escolheu na sorte...
Ninguém a podia
ver, porém, infelicidade, quando ia entrar na barraca grande e iluminada, uma
pessoa ia saindo da mesma...
Encontrão, terror,
mais confusão, porém ainda assim Celha percebeu que ali os traficantes preparavam
a pasta primordial de coca, exatamente como eles supunham.
O tiroteio
desesperado dos traficantes continuava...
Eles não viam
ninguém...
Celha esperou no
fundo do seu coração que as balas também não pudessem ver Felipe na escuridão,
agora iluminada por fogueiras extras, algumas barracas pegando fogo por causa
das explosões.
Mais uma explosão
monumental...
O paiol de produtos
químicos dos traficantes...
“Boa, Fê!”
Ela olhou na
segunda grande barraca. Acontecia o mesmo que na primeira...
E agora?
Mais uma
explosão...
A última da munição
de Felipe...
O caos no
acampamento era total...
Dois traficantes
morreram fuzilados pelos próprios companheiros, em pânico devido aos
“espíritos” que atacavam o acampamento.
Enquanto isso, uma
vez terminado o arsenal de granadas, Felipe se pôs a procurar a mesma coisa que
sua parceira. Não se comunicavam, pois eles poderiam ser interceptados pelos
traficantes, e a surpresa, e o pânico do desconhecido, acabariam.
Celha ligou seu
walkie-talkie, mas sua intenção não era falar com Felipe, e sim rastrear
possíveis tentativas de comunicação dos traficantes, para isto dispunha de
vários canais com este intuito.
Ela conseguiu...
Eles, de fato,
tentavam se comunicar com alguma espécie de posto de vigilância ou apoio que
deveria existir ali por perto. O espanhol era uma das línguas que Celha falava
com desenvoltura, mas aquele sotaque ela não conseguia entender a contento.
Procurou localizar
o posto de rádio dos traficantes no acampamento clandestino...
Não demorou a
encontrar...
Uma granada pôs fim
às comunicações dos traficantes...
Agora a coisa iria
se complicar, visto que os traficantes não sossegariam enquanto não
encontrassem os “fantasmas” que os atacavam no seu valhacoutinho...
A busca
continuava...
A corrida contra o
relógio também...
Acontece que Celha
sabia como achar o chefe daquele campo...
Embora ele não
estivesse na sua excelente barraca naquele preciso momento...
Foi Felipe quem
topou com ele primeiro...
Celha ligou seu
walkie-talkie...
O chefão dos
traficantes atendia pelo nome de Comandante Salas, e este também possuía um walkie-talkie
militar como o de Celha...
Felipe fazia o
mesmo, tentando rastrear mensagens entre os próprios traficantes...
Todo mundo, naquele
campo, procurava por Celha e Felipe, embora não soubessem exatamente o que
buscar, mas ninguém poderia achá-los...
A não ser que
alguma coisa saísse errada com seu equipamento de última geração...
E foi o que
infelizmente aconteceu...
Alguma
interferência de ordem física entrou na freqüência onde funcionava o aparelho
de deflexão de imagem, fazendo com que o mesmo deixasse de funcionar...
O pior é que Felipe
e Celha não perceberam a falha, o que quase foi fatal para ambos...
Porém Felipe teve
mais azar que a companheira...
Ele estava a poucos
metros do Comandante Salas quando foi localizado...
Os homens que
acompanhavam o Comandante atiraram sem pestanejar...
E erraram o alvo
por muito pouco...
Talvez o medo os
tivesse prejudicado...
Ainda bem que eram
ruins...
Felipe não demorou
a perceber a falha no aparelho, e correu...
Ele dispunha de
toda a munição que trazia, pois ainda não fizera um disparo sequer...
Celha, em outro
ponto do acampamento, com o walkie-talkie funcionando, ouviu a fala dos
traficantes que perseguiam a Felipe...
Desta feita ela os
compreendeu bem demais...
Felipe e Celha
agora estavam indefesos diante da fúria e do maior número dos bandidos. Teriam
de implementar um plano de retirada, pois a missão havia fracassado...
Antes de iniciar o
caminho que a levaria na direção do amigo em perigo, entretanto, Celha acionou
um canal particular em seu aparelho de comunicação, e falou com a Polícia
Federal em Boa Vista...
Os dois oficiais em
missão clandestina só teriam de sobreviver o tempo necessário para que os
federais chegassem até aqui...
Teoricamente
parecia muito fácil...
Começara a
brincadeira de gato e rato...
O Comandante Salas
era um homem duro. Não tinha a aparência típica dos indígenas de origem andina,
mas apresentava uma tez morena de origem espanhola, queimado de sol, altura
média, cerca de 1,80m, cabelos quase negros, bigodes fartos, expressão sombria,
gelada, um homem talhado para este serviço, que não poupava nada para atingir
seus objetivos ou para se proteger, tampouco hesitava em sacrificar os seres
humanos que tivessem o azar de estar sob seu comando, na selva ou em qualquer
lugar.
E era num momento
como este, no ápice de uma situação limite, cujas vidas de dezenas de bandidos,
bem como um trabalho lucrativo de semanas ou meses sem conta pendiam numa
balança, que o Comandante Salas se sentia no seu elemento, mostrando todo o seu
treinamento pragmático.
Na verdade Salas
ansiava por ocasiões como esta. Seus olhos brilhavam de felicidade.
A possibilidade de
enfrentar um batalhão do exército, ou centenas de policiais federais e
vencê-los, revivendo as históricas batalhas da segunda guerra mundial, quando
os generais nazistas, seus heróis de cabeceira, combatiam os inimigos aliados, deixando
a Europa de joelhos...
Ah! Salas tinha
orgasmos de prazer ao comparar-se com aqueles generais idos...
E imaginar a Europa
em chamas, transpondo tudo isso para a selva Amazônica!
Rommel...
Von Bock...
Von Rundstedt...
Guderian...
E tantos outros!
Vencedores dos
orgulhosos franceses e ingleses…
– Vocês agora já
viram que nós não estamos enfrentando fantasmas, seus imbecis degenerados! –
berrava Salas a plenos pulmões para seus comandados. Se Salas falasse alemão,
na certa teria usado esta língua para expressar-se. – Eu quero esses papagaios
brasileiros aqui na minha mão... Entenderam?
Ninguém se atrevia
a contraditá-lo nessas horas.
– Mexam estas
bundas sulamericanas, seus imprestáveis! – continuava a gritar Salas. – Vamos
mostrar a esses soldadinhos de merda que eles estão lidando com a elite do
tráfico!... Vamos! Vamos!
Os “soldados” se
dispersaram.
Salas pegou seu
walkie-talkie e falou:
– Não se esqueçam!
Não quero mortes desnecessárias... Entenderam, seus bostas?
– Bonito
discurso... Salas...
O chefe dos
traficantes olhou atônito aquela aparição, que não era sobrenatural, mas
causou-lhe um mal-estar semelhante.
Celha Regina, que
saíra sorrateiramente do meio da vegetação, apontava-lhe o fuzil diretamente
para seu peito...
Se ela disparasse
daquela distância, muito provavelmente lhe partiria em dois.
– Quem é usted? –
perguntou o Comandante Salas ainda descolorado, num portunhol sem-vergonha.
– Eu faço as
perguntas agora, seu crápula! – volveu Celha ferina. – As suas comunicações já
eram... Eu mesma dei cabo delas... Vocês estão isolados.
– Cuantos vocês som?
– perguntou o traficante, com uma frieza que demonstrava alguma demência.
– Dentro em breve
estas matas estarão cheias de federais...
– O que significa
que ustedes estom em menor número, muchacha.
– Não haverá tempo pra nós medirmos força,
“Comandante”...
O walkie-talkie de
Salas deu sinal de vida...
– Atenda – ordenou
Celha com o fuzil apontado para ele.
Celha Regina pôde
compreender muito bem o que foi dito por um dos comandados de Salas:
“Comandante. Nós
cercamos o hijo de puta. Ele está ferido”...
Celha deixou seu
fuzil cair, pálida...
Salas sacou sua
pistola imediatamente, sem piscar um olho.
– Quantos ustedes
son? – perguntou Salas entredentes. Agora ele apontava sua arma para uma mulher
combalida, desarmada moralmente.
– Apenas dois –
respondeu ela, em espanhol, com incrível tranqüilidade. – Mas não creio que
você consiga muita coisa da gente...
– Eu não seria tão
otimista na sua posição, senhorita... – volveu salas todo sorriso.
Todavia, o que se seguiu
a este pequeno entrevero estava dentro dos planos...