Depois de serenados
os ânimos...
Coincidência das
coincidências...
Nada é
coincidência...
Sérgio Tavares
entrou na cantina italiana...
Ele não demorou
muito a reconhecer os delegados Mouzon e Paranhos, até porque o restaurante não
estava muito cheio àquela hora, e eles já haviam aparecido em alguns
noticiários jornalísticos...
Mas Mouzon,
desconfiado, não o conhecia...
Moffato também reparou
que o jornalista olhava para eles com alguma insistência, ainda que tentasse
disfarçar, e mal, o fato...
Moffato também não
o conhecia...
Tampouco
Paranhos...
Os três se
entenderam apenas com olhares...
Paranhos fez uma
ligação rápida de seu celular...
Dois investigadores
da Polícia Federal de Roraima apareceram de supetão no restaurante, exigindo
discretamente que Sérgio Tavares apresentasse seus documentos...
Depois de tudo
esclarecido, o jornalista foi “convidado” a sentar-se à mesa com os investigadores...
– Quer dizer então,
senhor Sérgio Tavares, que o senhor está cobrindo a notícia do arranca-rabo na
Raposa Serra do Sol pela Folha da Tarde? – perguntou Moffato, muito sarcástico
e desconfiado, com seu ar de pavão emplumado que já era sobejamente conhecido
dos dois delegados presentes.
– Exatamente... –
retrucou o jornalista, relativamente tranqüilo depois da “dura” que levara dos
policiais. – Talvez os senhores possam me ajudar...
– É... – volveu
Moffato evasivo. – Talvez.
– O senhor está
querendo informações?... – perguntou Mouzon, perscrutador. Sérgio anuiu. – Engraçado...
Nós também.
Paranhos manteve-se
calado. O fato é que o delegado de Boa Vista tinha um temperamento exatamente
oposto ao do funcionário da ABIN.
– No que o senhor
pode nos ajudar? – insistiu Moffato.
– Quem sabe não
podemos trocar figurinhas? – brincou Tavares, porém muito mais sério do que se
poderia imaginar.
– Algumas são
inegociáveis... – volveu Mouzon.
– Difíceis de
conseguir... – acrescentou Moffato.
– A reportagem que nós
estamos preparando talvez desafie o permissível, senhores...
– O que você está
querendo dizer, Tavares? – voltava a perguntar Moffato.
– Eu entendo que
algumas das informações que a PF dispõe – continuou Tavares – não podem ser
divulgadas ao público, sob pena de atrapalhar as investigações, no entanto é
importante que a opinião pública seja esclarecida de tudo...
– O senhor está
certo, Tavares... – disse Mouzon. – Mas nós estamos no início das
investigações; o senhor talvez saiba muito mais do que nós sabemos...
– Se nós cruzarmos algumas
informações... – voltava a “sugerir” Moffato.
– Estou sabendo de
fonte segura – e aqui Sérgio Tavares falou bem baixinho – que essas terras que
compreendem a reserva Raposa Serra do Sol – e muito mais até! – estão praticamente
nas mãos de particulares...
– Não sabemos nada a
respeito disso – admitiu Moffato, porém escamoteando. – Nós temos aqui uma
lista das “celebridades” nacionais e internacionais que podem estar por trás
dos desajustes fundiários na Raposa Serra do Sol...
– Como o senhor
chegou a esta informação, Tavares? – perguntou desta feita Paranhos, muito
seriamente.
– Existem inúmeras
fontes de informação disponíveis, delegado...
– E dentre estas as
ONGS seriam as melhores equipadas? – replicou Mouzon.
– Elas estão espalhadas
por toda a Amazônia, divulgando informações para todo tipo de mídia que
existe...
– Incluindo
espionagem – tornou Paranhos seco.
Moffato
surpreendeu-se com Paranhos.
– É o que dizem –
continuou Sérgio Tavares, reticente, acuado.
– Entretanto,
senhor Tavares – volveu Paranhos, penetrantemente – o senhor nos ia dar uma
lista das “empresas” envolvidas nessas negociatas com as terras na Raposa Serra
do Sol...
– Não sei se
empresas estão envolvidas ou não, delegado, mas pode riscar a porção nacional
desta lista... – volveu o jornalista cheio de si.
– Porquê? –
inquiriu Mouzon de pronto.
– Os brasileiros,
ou brasileiras, não têm participação nos negócios... – continuou Sérgio
Tavares, indiferente, sorvendo um gole de refrigerante.
– Como assim? –
perguntou Moffato interessado, no entanto o ítalo-brasileiro, com cara de irlandês
tradicional, não era bobo e já captara a resposta que viria a seguir.
– As terras na
Amazônia, legal ou ilegal, tanto faz, estão sendo vendidas pra estrangeiros...
– Você tem como provar
isto? – redargüiu Mouzon, visivelmente impressionado.
– Certamente que não
– imiscuiu-se Moffato, o que despertou estranheza em Mouzon, que guardou,
entretanto, esta sensação consigo.
– Você pretende
publicar esta matéria, Tavares? – perguntou Paranhos quase em tom de ameaça.
– Estou
investigando... Nós vamos fazer uma reportagem completa, esclarecendo todos os
detalhes à população...
– Isso pode até
causar um incidente diplomático, Tavares, sabia? A menos que o senhor possua as
provas.
– O papel da
imprensa é informar, agente Moffato – disse Tavares com certa rispidez, o que
causou medo no agente da ABIN. – As reflexões cabem aos leitores. Os
desdobramentos, as soluções, cabem à sociedade...
– É muito bonito
este seu discurso – disse Mouzon com alguma ironia.
– Porquê, delegado?
Não cabe a mim resolver as questões problemáticas deste país...
– Como não?! Ou os
jornalistas também não são corresponsáveis pela história?! Nós sabemos, Sérgio
Tavares, que ao longo dela, o papel da imprensa tem sido amordaçado muitas
vezes por regimes de exceção...
– Seja mais
específico, delegado. Aonde o senhor quer chegar?
– Tavares. Você
sabe muito bem que nem sempre o papel da imprensa tem sido louvável...
– Eu respondo por
mim, delegado...
– Eu acredito no senhor.
Mas em muitas ocasiões a imprensa não tem contribuído tanto para esclarecer à
opinião pública, e sim para confundi-la ainda mais...
– Existe o mau
jornalista, delegado, como também existem os maus policiais... Aliás, eu vivo e
trabalho no Rio de Janeiro, e todos nós sabemos que lá o prestígio dos
policiais não é dos melhores...
– O senhor tem
razão na sua queixa...
– Não, delegado.
Isto não é uma queixa minha, é um clamor de toda uma sociedade...
– Mas, voltando
aquele ponto onde tudo começou... Se no passado nós tínhamos um regime de força
que impedia a verdade, hoje nós temos outro que impede as pessoas de
sobreviverem...
– Que porra é essa
que vocês tão falando, Mouzon? – replicou Moffato irritado.
– Calma, rapaz –
volveu Mouzon, tranqüilizador, para Moffato. Depois, dirigindo-se a Tavares: –
Você há de convir que hoje nós temos o primado das grandes corporações
financeiras e industriais, ditando as normas não só do mercado, mas também nos
governos...
– Eu concordo
delegado – tornou Tavares neutro. – Mas felizmente eu não vivi aquele tempo da
ditadura que o senhor mencionou, quer dizer, eu era muito garoto, de modo que
só posso repetir o que acabei de dizer...
– É perfeitamente
natural que as grandes empresas estejam inseridas neste contexto que nós estamos
investigando – ponderou Paranhos conciliador.
– O meu jornal tem
um compromisso com seus leitores, senhores – volveu Sérgio Tavares. – Não
concordo com esse chavão que muitos proclamam que todo jornal quer é vender
exemplares, sem se importar com as conseqüências daquilo que publica... Pelo
menos nem todos trabalham de olho nas vendagens. Eu não trabalho assim, e o meu
jornal não me paga pra fazer isso. Não vou responder por toda a imprensa, porque
eu não tenho procuração pra defender ninguém em particular...
– Isto é tudo que o
senhor tem pra nós, Tavares? – voltava a perguntar Moffato com certo sarcasmo.
– Continuamos com
um panorama confuso visto da ponte – observou Paranhos.
– Quanto maior o
caos, mais fácil pra manipular – sentenciou Mouzon.
Sérgio Tavares
concordou com o delegado da PF, e acrescentou:
– Essas pessoas, ou
empresas, que querem adquirir a Amazônia... Pra elas será mais fácil atingir
este objetivo se as coisas não forem tão claras, nem no governo, nem no próprio
seio dessas sociedades que vivem nesta região...
– Eu tenho aqui uma
lista de possíveis responsáveis e irresponsáveis administradores deste caos que
estamos falando – voltava a retrucar Moffato, pavoneando-se. – A pergunta é:
qual deles é o principal gerenciador desta situação?
– O senhor me
permitiria dar uma olhada na sua lista? – pediu o jornalista.
Moffato hesitou.
– Não se preocupe
agente Moffato. Sou fiel às minhas fontes...
Moffato passou-lhe
a lista.
Sérgio Tavares
passou os olhos por ela sem nenhum entusiasmo, detendo-se uma vez ou outra em
algum nome específico, mas não comentou nenhum deles.
– O que o senhor
achou? – indagou o pavão, digo, Moffato.
– É como o senhor
disse... Qualquer uma delas pode ser o principal agente do caos...
– O senhor pode nos
ajudar? – solicitou Mouzon.
– Não conheço
ninguém – disse Tavares abanando a cabeça, desanimado. – São pessoas ligadas à
sociedade da região norte, não são?
Paranhos confirmou.
– Infelizmente, senhores,
minhas fontes estão ligadas à região Sul e Sudeste...
– Mas nós temos uma
conexão destes incidentes da reserva com a região Sudeste...
– Que conexão?
Agora o jornalista
mostrou-se humildemente interessado, ao invés da distância e superioridade do
início, quando se julgava mais esperto do que aqueles homens que o interrogavam.
– Dois assassinatos
em São Paulo – continuou Mouzon. – Ambos militares ligados às investigações de
irregularidades na reserva, ou talvez ao tráfico de drogas, ou até mesmo com a
ação de estrangeiros nos conflitos de terras entre índios, grileiros, madeireiros,
e rizicultores...
– Eu li isto nos
jornais do Rio e de São Paulo, mas não me lembro de ter visto qualquer menção a
este caso da Raposa Serra do Sol, e sim com o crime organizado.
– Porque não
existem indícios muito claros de ligação, Tavares... – pontuou Paranhos.
– Até agora, né? –
tornou Moffato, sempre perturbador.
– Talvez você possa
nos ajudar... – pediu Mouzon.
– Em qual dos
assuntos, o tráfico de drogas, ou os conflitos na reserva? – volveu Tavares irônico.
– Os dois fatos
podem estar intimamente ligados – voltou a pontuar o delegado de Boa Vista.
– Que podem também
não ter ligação alguma – advertiu Tavares...
– Realmente... – acedeu
Moffato cínico. – Por isso estamos aqui, seu Tavares.
– Eu acrescentaria a
este imbróglio dois nomes que não estão na lista elaborada pela ABIN, Moffato –
disse Mouzon, deixando a todos atônitos, e Moffato despeitado.
– Esses homens da
polícia federal! – comentou o “irlandês” em tom anedótico, mas com profundo
desdém.
– Um do Rio, mas
lotado no 7º PEF, que possuía certa animosidade com os falecidos – continuou
Mouzon. – Seu nome é Felipe Corrientes... Vocês já ouviram este nome alguma vez?
– Porquê...? –
retorquiu Sérgio admirado. – Deveríamos?
– Realmente... – retrucou
Moffato, de certa forma procurando disfarçar sua contrariedade. – Não existe
nada em meus registros sobre este Homem. Quem é o cara?
Divertindo-se para
valer com o efeito perturbador que causara nos circunstantes Mouzon atacou de
novo:
– O segundo nome é
pernambucano... Ela... – fez uma pausa sorridente. O espanto foi maior ainda. –
Também pertence ao 7º PEF, e é muito amiga de Corrientes...
Paranhos
interrompeu a exposição e lembrou:
– Não sabemos se o Gusmão
foi assassinado ou não, Mouzon.
– Quem é este? –
perguntou Tavares confuso, referindo-se ao nome citado por Paranhos.
– É o homem morto em
Mato Grosso com a mulher, num incêndio – respondeu Paranhos.
– Bem... – interveio
Moffato hilário. – Você não nos contou nada sobre estes dois suspeitos, Mouzon...
– Não disse que
eles eram suspeitos – tergiversou o delegado da PF de São Paulo.
– Você os
interrogou? – insistiu Moffato.
– Apenas o
Primeiro-Tenente Corrientes...
– Eh, Mouzon! –
chiou Moffato. – E qual a ligação desses dois com os falecidos?
– Havia uma espécie
de rixa entre o Capitão Siboldi e o Tenente Corrientes. Os outros dois mortos
formavam linha com o capitão, ao passo que a pernambucana aliava-se ao tenente.
– O senhor sabe a
causa dessa rixa, delegado? – tornou Tavares.
– Aparentemente uma
briga bairrista...
– Aparentemente? –
desconfiou Moffato.
– Eu conversei com
o tenente Corrientes no Rio de Janeiro. Ele me deu todos os detalhes a respeito
de suas desavenças com o capitão. Volto a dizer, não há nenhum indício que nos
aponte estas duas personagens num envolvimento no assassinato dos dois homens
em São Paulo...
– Você tem certeza,
Mouzon? – Moffato parecia não acreditar no seu colega.
– Posso mostrar
minhas anotações a você, aí tire suas próprias conclusões.
Moffato não
insistiu mais.
– Onde foi que
paramos mesmo? – perguntou Tavares, bocejando.
– O meu chope... –
retrucou Moffato. – Está quente!... Garçom!
– Bem, senhores...
– volveu Sérgio Tavares. – Se vocês me dão licença... O dia foi muito cansativo
e eu preciso dormir... Este é o meu cartão. Se precisarem de mim, não me negarei
a colaborar com a polícia. Boa noite...
– Boa noite,
Tavares – disseram, quase em uníssono, os homens do governo, menos Paranhos,
que mais uma vez manteve-se à distância. Ele já percebera a polarização
nascente entre Mouzon e o homem da ABIN.
Os três não se
demoraram muito mais do que o jornalista na cantina...
Alguns chopes ainda
rolaram durante uma meia hora, senão mais; um pouco mais, um pouco menos, quem
se importa?
Mouzon seguiu logo
depois para o seu discreto hotel, ali mesmo, no centro de Boa Vista. Não sabia
onde estava hospedado o colega da ABIN, mas também não perguntou, nem se
interessava, assim como Leonardo Paranhos, que tinha boca e não falava, ou mesmo
Ubiratan Moffato, que, talvez devido aos inúmeros chopes tomados a mais, não procurou
demonstrar mais a sua bela calda emplumada àquela noite...
Era o fim de um dia
intenso, porém o início de uma triangulação que ainda geraria muita confusão a
quem tivesse fôlego para acompanhar até o fim.