quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VII - CAPÍTULO 3 (CONTINUAÇÃO)


Depois de serenados os ânimos...

Coincidência das coincidências...

Nada é coincidência...

Sérgio Tavares entrou na cantina italiana...

Ele não demorou muito a reconhecer os delegados Mouzon e Paranhos, até porque o restaurante não estava muito cheio àquela hora, e eles já haviam aparecido em alguns noticiários jornalísticos...

Mas Mouzon, desconfiado, não o conhecia...

Moffato também reparou que o jornalista olhava para eles com alguma insistência, ainda que tentasse disfarçar, e mal, o fato...

Moffato também não o conhecia...

Tampouco Paranhos...

Os três se entenderam apenas com olhares...

Paranhos fez uma ligação rápida de seu celular...

Dois investigadores da Polícia Federal de Roraima apareceram de supetão no restaurante, exigindo discretamente que Sérgio Tavares apresentasse seus documentos...

Depois de tudo esclarecido, o jornalista foi “convidado” a sentar-se à mesa com os investigadores...

– Quer dizer então, senhor Sérgio Tavares, que o senhor está cobrindo a notícia do arranca-rabo na Raposa Serra do Sol pela Folha da Tarde? – perguntou Moffato, muito sarcástico e desconfiado, com seu ar de pavão emplumado que já era sobejamente conhecido dos dois delegados presentes.

– Exatamente... – retrucou o jornalista, relativamente tranqüilo depois da “dura” que levara dos policiais. – Talvez os senhores possam me ajudar...

– É... – volveu Moffato evasivo. – Talvez.

– O senhor está querendo informações?... – perguntou Mouzon, perscrutador. Sérgio anuiu. – Engraçado... Nós também.

Paranhos manteve-se calado. O fato é que o delegado de Boa Vista tinha um temperamento exatamente oposto ao do funcionário da ABIN.

– No que o senhor pode nos ajudar? – insistiu Moffato.

– Quem sabe não podemos trocar figurinhas? – brincou Tavares, porém muito mais sério do que se poderia imaginar.

– Algumas são inegociáveis... – volveu Mouzon.

– Difíceis de conseguir... – acrescentou Moffato.  

– A reportagem que nós estamos preparando talvez desafie o permissível, senhores...

– O que você está querendo dizer, Tavares? – voltava a perguntar Moffato.

– Eu entendo que algumas das informações que a PF dispõe – continuou Tavares – não podem ser divulgadas ao público, sob pena de atrapalhar as investigações, no entanto é importante que a opinião pública seja esclarecida de tudo...

– O senhor está certo, Tavares... – disse Mouzon. – Mas nós estamos no início das investigações; o senhor talvez saiba muito mais do que nós sabemos...

– Se nós cruzarmos algumas informações... – voltava a “sugerir” Moffato.

– Estou sabendo de fonte segura – e aqui Sérgio Tavares falou bem baixinho – que essas terras que compreendem a reserva Raposa Serra do Sol – e muito mais até! – estão praticamente nas mãos de particulares...

– Não sabemos nada a respeito disso – admitiu Moffato, porém escamoteando. – Nós temos aqui uma lista das “celebridades” nacionais e internacionais que podem estar por trás dos desajustes fundiários na Raposa Serra do Sol...

– Como o senhor chegou a esta informação, Tavares? – perguntou desta feita Paranhos, muito seriamente.

– Existem inúmeras fontes de informação disponíveis, delegado...

– E dentre estas as ONGS seriam as melhores equipadas? – replicou Mouzon.

– Elas estão espalhadas por toda a Amazônia, divulgando informações para todo tipo de mídia que existe...

– Incluindo espionagem – tornou Paranhos seco.

Moffato surpreendeu-se com Paranhos.

– É o que dizem – continuou Sérgio Tavares, reticente, acuado.

– Entretanto, senhor Tavares – volveu Paranhos, penetrantemente – o senhor nos ia dar uma lista das “empresas” envolvidas nessas negociatas com as terras na Raposa Serra do Sol...

– Não sei se empresas estão envolvidas ou não, delegado, mas pode riscar a porção nacional desta lista... – volveu o jornalista cheio de si.

– Porquê? – inquiriu Mouzon de pronto.

– Os brasileiros, ou brasileiras, não têm participação nos negócios... – continuou Sérgio Tavares, indiferente, sorvendo um gole de refrigerante.

– Como assim? – perguntou Moffato interessado, no entanto o ítalo-brasileiro, com cara de irlandês tradicional, não era bobo e já captara a resposta que viria a seguir.

– As terras na Amazônia, legal ou ilegal, tanto faz, estão sendo vendidas pra estrangeiros...

– Você tem como provar isto? – redargüiu Mouzon, visivelmente impressionado.

– Certamente que não – imiscuiu-se Moffato, o que despertou estranheza em Mouzon, que guardou, entretanto, esta sensação consigo.

– Você pretende publicar esta matéria, Tavares? – perguntou Paranhos quase em tom de ameaça.

– Estou investigando... Nós vamos fazer uma reportagem completa, esclarecendo todos os detalhes à população...

– Isso pode até causar um incidente diplomático, Tavares, sabia? A menos que o senhor possua as provas.

– O papel da imprensa é informar, agente Moffato – disse Tavares com certa rispidez, o que causou medo no agente da ABIN. – As reflexões cabem aos leitores. Os desdobramentos, as soluções, cabem à sociedade...

– É muito bonito este seu discurso – disse Mouzon com alguma ironia.

– Porquê, delegado? Não cabe a mim resolver as questões problemáticas deste país...

– Como não?! Ou os jornalistas também não são corresponsáveis pela história?! Nós sabemos, Sérgio Tavares, que ao longo dela, o papel da imprensa tem sido amordaçado muitas vezes por regimes de exceção...

– Seja mais específico, delegado. Aonde o senhor quer chegar?

– Tavares. Você sabe muito bem que nem sempre o papel da imprensa tem sido louvável...

– Eu respondo por mim, delegado...

– Eu acredito no senhor. Mas em muitas ocasiões a imprensa não tem contribuído tanto para esclarecer à opinião pública, e sim para confundi-la ainda mais...

– Existe o mau jornalista, delegado, como também existem os maus policiais... Aliás, eu vivo e trabalho no Rio de Janeiro, e todos nós sabemos que lá o prestígio dos policiais não é dos melhores...

– O senhor tem razão na sua queixa...

– Não, delegado. Isto não é uma queixa minha, é um clamor de toda uma sociedade...

– Mas, voltando aquele ponto onde tudo começou... Se no passado nós tínhamos um regime de força que impedia a verdade, hoje nós temos outro que impede as pessoas de sobreviverem...

– Que porra é essa que vocês tão falando, Mouzon? – replicou Moffato irritado.

– Calma, rapaz – volveu Mouzon, tranqüilizador, para Moffato. Depois, dirigindo-se a Tavares: – Você há de convir que hoje nós temos o primado das grandes corporações financeiras e industriais, ditando as normas não só do mercado, mas também nos governos...

– Eu concordo delegado – tornou Tavares neutro. – Mas felizmente eu não vivi aquele tempo da ditadura que o senhor mencionou, quer dizer, eu era muito garoto, de modo que só posso repetir o que acabei de dizer...

– É perfeitamente natural que as grandes empresas estejam inseridas neste contexto que nós estamos investigando – ponderou Paranhos conciliador.

– O meu jornal tem um compromisso com seus leitores, senhores – volveu Sérgio Tavares. – Não concordo com esse chavão que muitos proclamam que todo jornal quer é vender exemplares, sem se importar com as conseqüências daquilo que publica... Pelo menos nem todos trabalham de olho nas vendagens. Eu não trabalho assim, e o meu jornal não me paga pra fazer isso. Não vou responder por toda a imprensa, porque eu não tenho procuração pra defender ninguém em particular...

– Isto é tudo que o senhor tem pra nós, Tavares? – voltava a perguntar Moffato com certo sarcasmo.

– Continuamos com um panorama confuso visto da ponte – observou Paranhos.

– Quanto maior o caos, mais fácil pra manipular – sentenciou Mouzon.

Sérgio Tavares concordou com o delegado da PF, e acrescentou:

– Essas pessoas, ou empresas, que querem adquirir a Amazônia... Pra elas será mais fácil atingir este objetivo se as coisas não forem tão claras, nem no governo, nem no próprio seio dessas sociedades que vivem nesta região...

– Eu tenho aqui uma lista de possíveis responsáveis e irresponsáveis administradores deste caos que estamos falando – voltava a retrucar Moffato, pavoneando-se. – A pergunta é: qual deles é o principal gerenciador desta situação?

– O senhor me permitiria dar uma olhada na sua lista? – pediu o jornalista.

Moffato hesitou.

– Não se preocupe agente Moffato. Sou fiel às minhas fontes...

Moffato passou-lhe a lista.

Sérgio Tavares passou os olhos por ela sem nenhum entusiasmo, detendo-se uma vez ou outra em algum nome específico, mas não comentou nenhum deles.

– O que o senhor achou? – indagou o pavão, digo, Moffato.

– É como o senhor disse... Qualquer uma delas pode ser o principal agente do caos...

– O senhor pode nos ajudar? – solicitou Mouzon.

– Não conheço ninguém – disse Tavares abanando a cabeça, desanimado. – São pessoas ligadas à sociedade da região norte, não são?

Paranhos confirmou.

– Infelizmente, senhores, minhas fontes estão ligadas à região Sul e Sudeste...

– Mas nós temos uma conexão destes incidentes da reserva com a região Sudeste...

– Que conexão?

Agora o jornalista mostrou-se humildemente interessado, ao invés da distância e superioridade do início, quando se julgava mais esperto do que aqueles homens que o interrogavam.

– Dois assassinatos em São Paulo – continuou Mouzon. – Ambos militares ligados às investigações de irregularidades na reserva, ou talvez ao tráfico de drogas, ou até mesmo com a ação de estrangeiros nos conflitos de terras entre índios, grileiros, madeireiros, e rizicultores...

– Eu li isto nos jornais do Rio e de São Paulo, mas não me lembro de ter visto qualquer menção a este caso da Raposa Serra do Sol, e sim com o crime organizado.

– Porque não existem indícios muito claros de ligação, Tavares... – pontuou Paranhos.

– Até agora, né? – tornou Moffato, sempre perturbador.

– Talvez você possa nos ajudar... – pediu Mouzon.

– Em qual dos assuntos, o tráfico de drogas, ou os conflitos na reserva? – volveu Tavares irônico.

– Os dois fatos podem estar intimamente ligados – voltou a pontuar o delegado de Boa Vista.

– Que podem também não ter ligação alguma – advertiu Tavares...

– Realmente... – acedeu Moffato cínico. – Por isso estamos aqui, seu Tavares.

– Eu acrescentaria a este imbróglio dois nomes que não estão na lista elaborada pela ABIN, Moffato – disse Mouzon, deixando a todos atônitos, e Moffato despeitado.

– Esses homens da polícia federal! – comentou o “irlandês” em tom anedótico, mas com profundo desdém.

– Um do Rio, mas lotado no 7º PEF, que possuía certa animosidade com os falecidos – continuou Mouzon. – Seu nome é Felipe Corrientes... Vocês já ouviram este nome alguma vez?

– Porquê...? – retorquiu Sérgio admirado. – Deveríamos?

– Realmente... – retrucou Moffato, de certa forma procurando disfarçar sua contrariedade. – Não existe nada em meus registros sobre este Homem. Quem é o cara?

Divertindo-se para valer com o efeito perturbador que causara nos circunstantes Mouzon atacou de novo:

– O segundo nome é pernambucano... Ela... – fez uma pausa sorridente. O espanto foi maior ainda. – Também pertence ao 7º PEF, e é muito amiga de Corrientes...

Paranhos interrompeu a exposição e lembrou:

– Não sabemos se o Gusmão foi assassinado ou não, Mouzon.

– Quem é este? – perguntou Tavares confuso, referindo-se ao nome citado por Paranhos.

– É o homem morto em Mato Grosso com a mulher, num incêndio – respondeu Paranhos.

– Bem... – interveio Moffato hilário. – Você não nos contou nada sobre estes dois suspeitos, Mouzon...

– Não disse que eles eram suspeitos – tergiversou o delegado da PF de São Paulo.

– Você os interrogou? – insistiu Moffato.

– Apenas o Primeiro-Tenente Corrientes...

– Eh, Mouzon! – chiou Moffato. – E qual a ligação desses dois com os falecidos?

– Havia uma espécie de rixa entre o Capitão Siboldi e o Tenente Corrientes. Os outros dois mortos formavam linha com o capitão, ao passo que a pernambucana aliava-se ao tenente.

– O senhor sabe a causa dessa rixa, delegado? – tornou Tavares.

– Aparentemente uma briga bairrista...

– Aparentemente? – desconfiou Moffato.

– Eu conversei com o tenente Corrientes no Rio de Janeiro. Ele me deu todos os detalhes a respeito de suas desavenças com o capitão. Volto a dizer, não há nenhum indício que nos aponte estas duas personagens num envolvimento no assassinato dos dois homens em São Paulo...

– Você tem certeza, Mouzon? – Moffato parecia não acreditar no seu colega.

– Posso mostrar minhas anotações a você, aí tire suas próprias conclusões.

Moffato não insistiu mais.

– Onde foi que paramos mesmo? – perguntou Tavares, bocejando.

– O meu chope... – retrucou Moffato. – Está quente!... Garçom!

– Bem, senhores... – volveu Sérgio Tavares. – Se vocês me dão licença... O dia foi muito cansativo e eu preciso dormir... Este é o meu cartão. Se precisarem de mim, não me negarei a colaborar com a polícia. Boa noite...

– Boa noite, Tavares – disseram, quase em uníssono, os homens do governo, menos Paranhos, que mais uma vez manteve-se à distância. Ele já percebera a polarização nascente entre Mouzon e o homem da ABIN.

Os três não se demoraram muito mais do que o jornalista na cantina...

Alguns chopes ainda rolaram durante uma meia hora, senão mais; um pouco mais, um pouco menos, quem se importa?

Mouzon seguiu logo depois para o seu discreto hotel, ali mesmo, no centro de Boa Vista. Não sabia onde estava hospedado o colega da ABIN, mas também não perguntou, nem se interessava, assim como Leonardo Paranhos, que tinha boca e não falava, ou mesmo Ubiratan Moffato, que, talvez devido aos inúmeros chopes tomados a mais, não procurou demonstrar mais a sua bela calda emplumada àquela noite...

Era o fim de um dia intenso, porém o início de uma triangulação que ainda geraria muita confusão a quem tivesse fôlego para acompanhar até o fim.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VII - CAPÍTULO 3


Num determinado momento ele estacou defronte a um dos monumentos mais significativos da cidade, o Portal do Milênio...

Olhou atentamente alguns dos prédios a sua volta, como também o tráfego que deslizava relativamente tranqüilo pela avenida principal...

       Os carros eram os mesmos que ele estava acostumado a identificar nas ruas de São Paulo, isto é, as mesmas marcas e cores, só se diferenciavam pelas placas. Qualquer uma que ele olhasse, só enxergava um município: Boa Vista. Até que numa determinada hora ele avistou uma placa de Belém, aí realizou quão grandiosa era esta região Amazônica, que compreendia não sei quantos países sulamericanos vizinhos, e quão infinitamente pequenos em relação ao resto do universo nós éramos; então ele pensou numa diminuta formiga e suas congêneres, relegadas a um ínfimo formigueiro no jardim, o que representava muito mais do que a milésima parte do todo que ele tentava mensurar com sua mente insipiente...

       Ó Senhor dos meus descalabros...

       Fora a expressão que cunhou o próprio Mouzon...

Mouzon Pai, é bom que se diga.

Giuliano Marcondez Mouzon, filho de italiano legítimo, não da Mooca como qualquer um poderia pensar, mas da Itália do Norte, acostumado a muito frio, ruínas romanas, e muitos outros monumentos de um passado no mínimo edificante, porquanto ele, o pai, não soubesse avaliar a verdadeira herança de Roma, como muita gente da mesma forma, mas foi em Interlagos, bairro de Sampa, onde Mouzon filho cresceu saudavelmente, com os pulmões ainda preservados numa infância feliz e aventureira. De lá, sairia um homem extremamente correto e perspicaz, amigo dos seus amigos, fiel a suas crenças, por mais ou menos enraizadas que fossem, embora descrente de tudo aquilo que não o convencesse...

       Assim Giuliano Mouzon, o Filho.

       Ó Senhor dos meus descalabros...

       Repetia Mouzon, uma expressão que muitas vezes ouviu seu pai proferir, como tantas outras que agora não lhe ocorria, mas o sentido do paradoxo, do mistério, e da miséria humana não lhe saía da sombra...

       Onde quer que Mouzon se encontrasse.

Ele olhou mais uma vez ao seu redor...

Mais uma vez voltou a contemplar o Portal do Milênio. Por onde começar uma investigação que só tinha, para início de conversa, algumas toscas informações apanhadas a maneira de conchinhas na praia, recolhendo uma ali, outra acolá, mas sabendo que o areal é um não acabar mais na imensidão marinha? Assim se sentia Mouzon, um catador de conchas perdido na praia infinita...

O monumento suscitava tal afronta técnica, que ele se viu, por questão de segundos, descadeirado.

Mouzon voltou a delinear a imagem simpática de Felipe Corrientes na sua mente mais ou menos matemática...

Ele havia gostado daquele jovem logo de cara, como acontece às vezes, quando nos deparamos com uma pessoa que nunca vimos antes, mas que ao travar conhecimento uma vez, é como se conhecêssemos há muitas décadas. Quantas vezes isto aconteceu em nossas vidas?

Mouzon não atentara para esta quantificação no seu caso em particular, embora ele reconhecesse piamente a verdade do fato. 

É verdade que Felipe falara muito pouco, por uma questão ética, profissional, segurança nacional, essas coisas aí, que ele, aliás, entendia como ninguém, mas aquele pouco poderia transformar-se num redemoinho incessante se ele fosse colher pistas como achava que iria...

Além do que, talvez pelo fato de Mouzon nunca ter tido filhos, já fora casado uma vez, mas a esposa provou que não o amava tanto quanto ele amava o seu trabalho, e o deixou muito antes que o casal pudesse pensar em fabricar um pequerrucho...

A verdade é que certo sentimento paternal poderia explicar tanta identificação entre um homem de 51 anos e outro de 26, ainda que Giuliano Mouzon não tivesse tantos cabelos brancos quanto o do irmão, com 54, embora fosse um tantinho calvo nas entradas temporais acima da testa...

Mouzon, além disso, tinha uma vitalidade balzaquiana, ombros largos, pele branca azeitonada, bem apessoado, altura razoável, e não aparentava, absolutamente, a idade que possuía, passando tranquilamente por um homem de “quarenta anos virginais”, embora seus amigos mais chegados, que não passavam de meia dúzia, todos criados ali na zona sul de São Paulo com ele, se rissem desta designação presunçosa...

Sua peregrinação por Boa Vista começara muito cedo naquele dia, embora ele tivesse chegado à cidade na noite anterior, se hospedado num hotel simplesinho, não queria chamar a atenção de ninguém para sua pessoa, e fosse logo para seu quarto a fim de dormir cedo...

Não conseguiu.

A história dos dois assassinatos dos oficiais em São Paulo, e o suposto acidente mais do que estranho com o sargento do mesmo batalhão em Mato Grosso, não lhe saía da cabeça...

Ele via fantasminhas rondando sua cama, coisa um tanto quanto incômoda...

Mouzon odiava cama de molas! Ele dormira naquela cama porque não havia tempo hábil para trocar de hotel...

Onde estava a resposta àquele caso?...

Estariam os dois oficiais do exército brasileiro envolvidos com tráfico de drogas mesmo, ou o quê...?

E o tal do Sargento Gusmão, aliás um seu camarada deles, seria cúmplice dos dois paulistanos...?

Mas então era verdade que os dois, Siboldi e Mascarenhas, estavam metidos em alguma atividade ilegal, não confirmada por seu comandante, que, aparentemente, desconhecia toda e qualquer atividade dos seus homens fora do tal 7º PEF de Roraima...

E o Felipe Corrientes...?

Estaria dizendo a pura verdade como lhe dizia sua intuição...?

E ainda havia a amiga do Felipe, a tal tenente Celha Regina do Nascimento... Será que eles eram apenas bons amigos?... Isto não interessava a Mouzon, e sim se algum deles tinha a chave para esclarecer o mistério...

Eram muitas incógnitas...

Bendito é o Senhor de nossos descaminhos...

Esta frase também seu pai costumava resmungar às vezes, quando alguma coisa não ia muito bem...

Ah, a igreja católica!...

Quantas e quantas vezes Mouzon a frequentou com sua mãe, quando era pequeno...

Seu irmão mais velho, não...

Andrea...

Que aqui no Brasil não pôde ser registrado assim...

Isto geraria certos problemas burocráticos a princípio, depois na própria natureza psíquica do menino...

O cartório disse a seu pai que o garoto tinha de ser registrado como era usual aqui no Brasil...

Então ficou Andre mesmo...

E sem acento agudo no “e”.

Bom, sua mãe não obrigava seu irmão mais velho, o “Andre”, a ir às missas no Domingo, até mesmo porque o “Andre” escapulia com a desculpa que ia para a pizzaria com seu pai e avô, ajudar no preparo da massa...

Que mentira aquele safado não inventava!

O Andre, hoje, está morando na Itália... Alto funcionário do governo, ou coisa que o valha...

Há dois anos Giuliano não o via...

Mas, enfim, o trabalho tinha de prosseguir, e Mouzon não tinha muita certeza aonde começaria...

O “tour” de Mouzon pelo centro de Boa Vista terminou na sede da Polícia Federal local; um prédio singelo, como singela era também esta viagem de trabalho...

Porém, qual não foi a surpresa de Mouzon em encontrar neste órgão um funcionário da ABIN – Agência Brasileira de Informação, que também trabalhava no caso, porquanto em Brasília, este acontecimento era tratado com o status de “PRIORIDADE”.

Leonardo Paranhos, o delegado da PF responsável pelo escritório de Boa Vista, um jovem de mais ou menos trinta anos, meio banal, baixo, deselegante, cabelos louros opacos, igualmente oriundo de São Paulo, com uma fala que denotava algum marasmo social, foi quem fez as apresentações.

O funcionário da ABIN se chamava Ubiratan Moffato, mistura esta muito curiosa, o de índios com italianos...

No entanto era mais um paulista na tropa...

Enfim...

Depois das introduções de praxe, e do abre-alas tradicional, Mouzon, Moffato e Paranhos saíram para jantar numa cantina italiana da capital...

Lógico!

Lá pelas tantas, massa no bucho, alguns chopes na mente, Moffato, que era um tipo não muito comum, quase ruivo, pele esbranquiçada, sardenta, porém bastante alto, mais lembrando um irlandês do que um descendente itálico com sangue indígena, o que contrastava com a silhueta quase comum de Mouzon, e a apagadíssima presença de Paranhos, colocou para os companheiros, funcionários públicos federais, o “Who’s Who” da sociedade Amazônica...  

 Mouzon pareceu algo admirado do dossiê, tanto que disse:

– Esses homens e mulheres que você listou... Todos eles são suspeitos de atividades ilegais aqui na Amazônia?

– Não diretamente – retrucou o tipo irlandês evasivamente. – Se nós considerarmos que todo ser humano, pelo menos alguma vez na vida, andou meio às avessas...

– Mas o que isto quer dizer em termos práticos?

– Desses nomes que você pode ver aí, dificilmente não verá algum que esteja livre de pelo menos um lobbyzinho em relação a algum benefício arrancado desta floresta que Deus nos deu...

O funcionário da ABIN, Mouzon o percebeu logo de cara, pecava por falta de clareza. Mas o que será que o pessoal de Brasília tencionava com isso? Confundir mais ainda o já tão confuso painel amazônico?

Mouzon voltou à carga:

– Estou vendo aqui que na sua lista aparecem até nomes de estrangeiros...

– De fato... Esses homens e mulheres são cientistas, funcionários de embaixadas, diplomatas, ou homens de negócios que estão sempre às voltas com as coisas da região... Ah, claro! E políticos! O que significa que são pessoas muito bem informadas de tudo o que rola por aqui...

– Mas existem autênticos suspeitos neste grupo?

– É difícil dizer com certeza... Quantos, dentre nós, somos suspeitos de cometer algum delito contra a humanidade?

“Ai, caralhos!”

Berrou Mouzon com seus bagos cheios para si mesmo.

“Esse babaca tá a fim de me sacanear? Qual é a dele?” 

– Esse casal, por exemplo, Mouzon... – e o dedo impreciso de Ubiratan Moffato apontou para os Taylors. – São pesquisadores europeus... britânicos. Ele é um dos maiores especialistas em aves do mundo, e ela é uma bióloga de prestígio internacional...

– Sim e daí?

Foi a vez de Paranhos dar o ar de sua graça:

– Eles trabalham diretamente na floresta, e estiveram na região dos conflitos um dia depois dos últimos incidentes na Raposa Serra do Sol. Foram reconhecidos por homens nossos... Esses são dois que devem saber muito bem o que está se passando por lá...

– Porquê? – perguntou Mouzon.

– Duvido que não estejam! – respondeu algo veemente Moffato. Paranhos olhou-o de modo enigmático, pressentindo que o “irlandês” talvez quisesse ser o centro das atenções em Roraima. – É um sentimento generalizado em Brasília. O mundo todo está com os olhos bem abertos para a Amazônia...

– Todo mundo sabe disso – concordou Mouzon como se falasse o óbvio, o que deixou Paranhos satisfeito, sorrindo discretamente. – Dificilmente conseguiremos mantê-la intacta em sua cobertura original...

– Até mesmo porque esta originalidade se perdeu há muito tempo! – voltava a manifestar-se Moffato, com todo o seu exibicionismo forçado. – Veja a própria cidade de Boa Vista! É uma maçã mordida no meio da selva...

Mouzon e Paranhos não puderam deixar de se rir da comparação de Moffato.

– Este japonês que está incluído na lista, por exemplo... – continuou Moffato.

– Qual é a dele? – perguntou Mouzon.

– Tanaka Osumi – interveio Paranhos. – Empresário japonês. É o principal responsável pela exportação do arroz produzido em Roraima, quer dizer, nas terras que os colonos dizem pertencer a eles há gerações, e que os índios contestam...

– Mais uma vez Raposa Serra do Sol? – constatou Mouzon. – Quem está com a razão, afinal de contas?

– Ambos – respondeu Paranhos indecifrável.

– Como assim? – insistiu Mouzon.

– As terras são, por direito, dos índios – disse Paranhos. – Tanto é assim que a Justiça deu ganho de causa a eles, mas acontece que também é verdade que existem colonos instalados nesta região desde o início do século passado...

– A família Seixas é uma delas – tornou Moffato com ar superior, deixando entrever que ele sabia muito mais do que admitia.

– Família Seixas? – voltava a perguntar Mouzon, sempre curioso.

Moffato passou-lhe uma foto...

– Uuuuuuuuh! – suspirou o paulista. – Linda, não?

– Marina Seixas. Alta sociedade de Boa Vista.

Moffato lhe deu uma segunda foto.

– E este... quem é? – perguntou de novo Mouzon.

– Ildebrando Seixas – volveu Paranhos, seco, taxativo. – Último patriarca de uma dessas famílias que alegam ter chegado à região desde a década de vinte.

– E é verdade? – voltava a indagar Mouzon.

Paranhos sorriu antes de retrucar:

– E faz diferença? O que importa é que a Justiça, volto a dizer, deu ganho de causa aos índios, e todos os colonos devem desaparecer daquela área sem tardar...

– Porém isso é mais fácil de falar do que fazer – acrescentou Mouzon com malícia.

– Por isso estamos aqui... – declarou Moffato, seguro de si.

– Até o exército está pisando em ovos para lidar com a situação – advertiu Paranhos.

– O “Exército”, amigo, também tem sua parcela de culpa nesses episódios que descambaram pra violência...

– Porque você não nos esclarece logo de uma vez sobre as minúcias deste caso, Moffato? – solicitou em tom imperioso Mouzon.

– Em Brasília – continuou o “irlandês” reticente – existe muita desconfiança em relação ao trabalho que é feito por aqui...

Mouzon abriu os braços quase em desespero.

– A separação do joio do trigo... – acrescentou Moffato, sempre de maneira propositalmente incompleta.

Paranhos veio em socorro de seu colega policial.

– Pra começar, o exército não poderia ter se instalado em Uiramutã...

– Então porque eles estão lá? – tornou Mouzon.

– O município também faz parte da reserva – continuou Paranhos – e é uma das áreas onde as nossas “etnias”, digamos assim, brigam. Os militares são acusados por algumas ONGs de abusar da violência com os índios, com o pressuposto de garantir a segurança das fronteiras, pois ali também é uma região de tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa, além do mais, existe uma pecha pesando sobre o 7º PEF...

– Porque existe a penetração dos traficantes de drogas internacionais? – completou Mouzon.

– Pior do que isso – retrucou Paranhos. – Os intermediários entre estes traficantes produtores e os narcoatacadistas do Brasil, seriam alguns desses militares que atuam na Amazônia...

– Que obra maquiavélica, amigos – opinou, meio que debochadamente, Moffato.

Com a lista do “Who’s who” da sociedade amazônica nas mãos, Mouzon voltou à carga, apontando o nome dos Taylors. 

– O que tem os Taylors? – redargüiu Moffato mecanicamente.

– Qual a ligação deles com esta história toda, além do fato de trabalharem na área e muito provavelmente estarem a par do que ocorre ali?

– São muito amigos do japonês – respondeu o delegado da PF de Boa Vista.

– Boiei...

– Não te parece um tanto suspeito... – imiscuiu-se Moffato – que um exportador estrangeiro, que vive da comercialização de um produto que é uma das causas de invasão numa região protegida, seja tão amigo de cientistas que conhecem a região muito bem?

– Provavelmente uma circunstância fortuita, embora eu deva admitir que esta ligação também pode não ser casual...

– Você acredita mesmo nisto, Mouzon?! – volveu o irlandês indignado.

– Ué! A menos que você me dê mais subsídios do que eu vou suspeitar?

– Que tal isso... – volveu Paranhos. – Pescadores que lutam por seu sustento no Rio Branco, abastecido pelos montes Roraima e Caburaí, dizem que a água está poluída pelos agrotóxicos a partir de 500 km rio baixo das cabeceiras, agrotóxico este utilizados nos arrozais da Raposa, impedindo a Piracema...

– Putz! – lamentou-se Mouzon.

– Tudo se encaixa – acrescentou Moffato.

– Você está sugerindo que o japonês pode ser uma espécie de lobista internacional arregimentando técnicos que trabalhem em função de seus próprios objetivos escusos? – tornou Mouzon.

– As ligações não param aqui, Mouzon... – respondeu Paranhos.

– Uma boa e frondosa árvore, com todos os ramos que se possa imaginar – voltava a comentar Mouzon de maneira jocosa.

– E inimagináveis também – obtemperou Moffato.

– Os ramos desta árvore, Mouzon – continuou Paranhos – podem estar ligados a Mato Grosso ou São Paulo... Ou até mesmo com o Rio de Janeiro.

Mouzon engasgou-se...

Entalado com uma azeitona preta...

Produzida em terras legais da própria Amazônia...

Moffato e Paranhos não conseguiram livrar o colega do incômodo...

Dois garçons, vestidos a italiana, vieram acudir os investigadores...

Foi um sufoco danado o desvencilharem-se da azeitona preta...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VII - CAPÍTULO 2


       Cada um de seus passos naquele piso extremamente liso, bem desenhado, recortado em grandes quadrados pretos e brancos, como numa paródia ao Yin e ao Yang que ele conhecia como ninguém, transcorria com uma placidez quase absoluta, embora ele não acreditasse neste absoluto vulgarizado, banal na boca de um sacerdote medíocre, e apesar dos burburinhos poluidores que vinham de todos os lados, entrecruzando-se feéricos, e que não viam os mesmos sinais de prosperidade que havia em seus olhos.

       A cegueira, pensava ele, jazia na retina dos ignorantes, dos timoratos, daqueles que não acreditavam no seu potencial, mesmo que esta energia não existisse em quantidades iguais em cada coração...

       Ele sabia disso.

       O Absoluto em que ele acreditava estava mais próximo de Deus, ainda que o seu sentimento particular não orbitasse na mesma oitava santificada de um eleito.

Mas ele sabia também que estava a distâncias incomensuráveis de um desses pares divinos, ainda que sua cultura, fortemente arraigada em hierarquias constitucionais, relegasse a todos os fiéis a mesma sensação do sagrado, da presença possível de um Deus palpável.

       Portanto, ainda que Tanaka Osumi carregasse todos esses sentimentos consigo, naquele coração pretensamente leve, ele não duvidava em nenhum instante da natureza transitória de todas as coisas. Por isso ele se esforçava cada vez mais! Para que esta transitoriedade de todas as coisas sob o sol não prejudicasse seus projetos imediatos, sempre com a perspectiva atenta de um homem que possuía livre iniciativa, porque ele julgava que aí consistia realmente a diferença entre os homens...

       Bem...

       Cada macaco no seu galho, continuava pensando Tanaka, agora com a mente infectada pela cultura nacional, onde remergulhava mais uma vez, e, coisa engraçada...

       Tanaka não estava preparado para a surpresa que o aguardava pouco depois do saguão de desembarque...

       Mas como todo bom samurai, ele não demonstrou em momento algum a fraqueza do imprevisível...

       Sorriu maleavelmente...

       Conquanto por dentro estivesse furioso!

       Marina, sim...

Esta sorria de verdade...

O prazer do reencontro agradava-lhe a alma. A satisfação de estar revendo seu grande amor era perceptível a uma distância entre o Pacífico e o Atlântico...

Sem nenhum exagero.

Tanaka Osumi representava a última tentativa de consumar um ideal que alimentara as mulheres da sua estirpe há gerações...

Mas não era só!

Antes mesmo que certos fatores majoritários do clã Seixas se impusessem, Marina gostava de Tanaka gratuitamente, e continuaria a amá-lo se ele fosse mero seringueiro...

Quer dizer...

Ela pensava assim...

Acontece que as escolhas do clã Seixas, sacramentadas bem antes de seu nascimento neste planeta, exigiriam dela algo além de sangue plebeu...

Isto era indubitável.  

Entretanto, aquele sorriso moreno, alvacento, regado a mimos patriarcais, que transcendia sua capacidade psíquica intrínseca, aquilo que ela carregava como sendo só seu, mas que representava o coroamento do ápice social eclipsou-se a uma simples frase em tom de reprimenda:

– O que você está fazendo aqui, Marina?

Esta sentença, claro, foi proferida em português, mas num português ruim, temperado com um japonês do interior das ilhas pacíficas daquele arquipélago inumerável.

O sorriso, que contrastava entre o branco de uma dentadura perfeita, e o amarronzado da pele, tornou-se de súbito amarelo.

Tanaka continuou com seus passos marcados, agora destituídos daquela placidez do Absoluto, substituída por uma pisada mais firme, que denotava a irritação de um guerreiro oriental subjugado pelas forças da natureza.

– Eu não gosto de encontrar você em lugares públicos sem ser avisado – disse o japonês num tom de quem mastiga uma ameixa azeda.

– Eu sei disso. Eu tentei entrar em contato com você, mas o seu celular não entrava em comunicação de jeito nenhum...

– Ainda bem... – Tanaka falava seco, e caminhava inexoravelmente, como se pudesse ignorar a presença de Marina respirando no seu cangote.

– Desculpa, meu amor...

– E não me chame de “meu amor”!

Agora o semblante nublado de Marina deu vazão às lágrimas da decepção...

– Pare de chorar, Marina!...

Mas ela não conseguiu atender a ordem do seu Tanaka-san, e chorava copiosamente...

Tanaka segurou-lhe no braço amorenado com a força de um ronim em duelo, sapecando-lhe um beijo selvagem, no que ela amoleceu visivelmente...

Eles tinham chegado a um local do aeroporto de Boa Vista praticamente deserto...

– Eu não entendo você, Tanaka!...

Mas ela não teve tempo de refletir sobre o absurdo daquela sensação incrivelmente boa, ainda que paradoxal, pois levou outro beijo à moda de haraquiri.

– Eu achei que você estava furioso comigo...    

Ela tentou dizer...

– Eu estou!

E toma-lhe outro beijo babado...

– Vamos sair daqui de uma vez... – disse o japonês, arrastando-lhe pelo braço para o estacionamento do aeroporto.

– Aonde você quer ir?!...

Todo o resto é quase dispensável.

Algumas horas depois...

Num quarto de motel nos arredores da capital de Roraima...

– Meu pai quer conversar com você...

Tanaka Osumi fitou aquela pequena com uma ameaça desvelada nos olhos.

– Não é o que você está pensando – volveu ela prontamente, a fim de desfazer um engano.

Ele relaxou e foi até o frigobar pegar um refrigerante.

– Como você sabe o que eu estou pensando?

– Você é engraçado, sabia, Tanaka?

– Não, não sou.

– Não precisa entrar em pânico...

– Você não acha que eu devo me preocupar?

– Claro que não. Além disso, o velho Ildebrando só quer falar sobre negócios, seu bobo...

– Negócios?...

– Ééééé!

– Mas isso nós fazemos todos os dias... – Tanaka, de repente, mudou de humor. – Eu fico imaginando se o velho descobrisse, por exemplo, que você está grávida...

– Deus me livre!

– Ele ia te expulsar de casa?

– Se não fizesse coisa pior!

– Não acho que o Ildebrando fizesse esse tipo de coisa...

– Mas que tipo de coisa você está pensando?

– Matar você.

– Cruzes, Tanaka! Que brincadeira!

– Você não disse que ele poderia fazer uma coisa pior que expulsar você?

– Ah! Isso é uma forma de falar.

– Mataria?

– Você é que está querendo me matar!

– Você não é um estorvo na minha vida, Marina... Embora me atrapalhe às vezes.

– Às vezes eu acho que se não fossem os negócios com meu pai, você me largaria...

– Não me tome por um aventureiro qualquer...

– Se a exportação do arroz se tornasse um mau negócio pra você, nós continuaríamos a nos ver?

– Vejamos por outro lado... Mais prático e menos emocional. Se a exportação da produção de arroz aqui de Roraima se tornasse inviável, talvez eu tivesse que deixar este país...

– Então é verdade?

– É verdade o quê?

– Você me usa, Tanaka.

– E você?... Também não está me usando?

– Claro que não! Eu amo você, Tanaka. Mesmo que você passasse a ser um açougueiro eu ainda continuaria com você...

– Lidando com carnes todo dia? Acho que você enjoaria...

– Seu japonês “englaçadinho”! Acabou que você fugiu de uma resposta...

– Eu não fujo a nada, Marina...

– Então me responda, anda...

– Se eu tivesse que me ausentar do Brasil de que forma eu iria vê-la?

– Eu iria atrás de você... Até no Japão... Se o senhor assim mo permitir.

– Nem por brincadeira você diga uma coisa dessas!

– Tá vendo?! Eu conheço muito bem o seu lado fraco, Tanaka-san!

– E daí? Se você diz que me ama porque iria querer me prejudicar?

– Eu não falei isso... Em algum momento eu falei em te prejudicar?... Não.

– E as plantações... como está o trabalho da colheita?

– Ah, eu não sei, Tanaka! Eu não me meto nos negócios do meu pai. Você tem que ir lá conversar com ele.

– Você sabia que o conflito na Raposa Serra do Sol repercutiu no exterior muito negativamente?

– E eu com isso!  Eu não quero saber dessa história, já falei!... Meu Deus, como eu gostaria de sair de Boa Vista, ir morar no Rio de Janeiro...

– Rio de Janeiro?! Pra quê?! Aquilo lá é um hospício!...

– Eu gosto do Rio... Morar na praia... Já pensou? Eu adoro praia! Você gosta?

– Não. Além do mais elas estão todas poluídas...

– E o que tem isso de mais? Aqui em Boa Vista as mentes é que estão poluídas... As pessoas pensam pequeno, o mundo pra elas é do tamanho desta cidadezinha no meio da floresta, cheia de mosquitos, doenças... Eu odeio essa vida, Tanaka! Me leva daqui!

– Pra onde?!

– Pro Rio. Lá não correríamos nenhum risco, meu amor...

– Nisso você se engana... Redondamente. O Rio é uma cidade cosmopolita; gente do mundo inteiro visita o Rio... de janeiro a dezembro. A possibilidade que eu teria de encontrar um parente ou amigo do Japão é enorme!

– Pode ser que a possibilidade de nós sermos vistos por lá seja a mesma que existe de aparecermos nas colunas sociais de Manaus ou Belém...

– Eu não gostaria de aparecer nas colunas sociais de lugar nenhum!... Nosso compromisso é absolutamente proibido, reservado, e deve continuar assim...

– Eu não pretendo ficar a vida toda me escondendo dos meus amigos...

Tanaka olhou para ela com uma indiferença gritante, quase de desprezo.

– Mas foi você mesma que disse que odeia isso daqui! – volveu Tanaka.

– Isto não quer dizer que eu vou ficar a vida toda me escondendo do mundo como se fosse uma criminosa! Ou uma coisa tem a ver com a outra? Não, que eu saiba... Você acha que a sua família, lá no meio do Japão, iria ver um jornal brasileiro, Tanaka?

       – Não sei... Mas não quero facilitar. Excesso de confiança é o primeiro passo em direção à derrota... O meu filho... Ele... Está começando a se interessar pelo Brasil...

       – Ah, é? – a interrogação de Marina ficou a meio passo entre o sarcasmo e o prazer, embora ela mesma não soubesse especificar o porquê.

       – É... O que não me está agradando nem um pouco.

       – Eu posso imaginar... Já pensou se ele quiser vir uma temporada pra cá?

       E começou a rir gostosamente.

       – Nem pense nisso! – retrucou Tanaka quase em pânico.

       – Não sou eu quem tem que pensar ou deixar de pensar...

       – Em hipótese alguma eu o deixaria vir para o Brasil.          

       – Você tem certeza?

       – Tenho... porquê?

       – Porque dependendo das circunstâncias, uma seqüência de negativas ilógicas deixaria a sua família desconfiada.

       – Talvez você tenha razão... Mas eu não quero discutir isso agora...

       E os beijos recomeçaram...

       Os dois se atracaram na espaçosa cama do motel, embrulhados nos lençóis como dois pasteis orientais. A luz diminuiu lentamente, e outros sons acrescentaram-se à sinfonia tênue...

Sussurros, resmungos e estalos de beijos molhados...

       Marina interrompeu o tratamento de choque.

       – Você vai conversar sobre negócios ainda hoje?

       – Vou pensar nisso também...

       E as câmeras foram proibidas de mostrar a seqüência que se seguiu.