quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VII - CAPÍTULO 1


       Sussurrava tão baixinho que ela teve de pedir para ele falar mais alto, tal o cuidado que eles precisavam tomar neste instante, não só devido aos desdobramentos dos últimos acontecimentos em Raposa Serra do Sol, mas também porque uma suspeita generalizada passou a pairar sobre cada elemento do 7º PEF.

       Todos poderiam estar implicados, de alguma maneira, com os criminosos que teriam assassinado os ex-militares Siboldi, Mascarenhas e talvez Gusmão.

       Felipe não descartava, inclusive, sua amiga do peito Celha Regina, por mais que isto o tirasse o sono.

       Mais uma folga havia terminado, e eles estavam justamente encerrando mais uma missão de reconhecimento aos arredores da reserva, missão esta que fora comandada pelo capitão Aleixo, substituto do falecido Siboldi...

       Tudo estava calmo por lá...

       Por enquanto.

       Os índios voltaram a apascentar-se com a promessa do governo federal de que todos os invasores seriam expulsos de suas terras, embora a opinião pública, de uma maneira geral, desacreditasse nesta política de tapa buraco.

       No entanto, o que ainda encafifava nossos dois ternos amigos, Celha Regina e Felipe Corrientes, consistia nos assassinatos não tão misteriosos dos ex-companheiros.

       Armando Paglia ainda dava as cartas por lá...

       Embora Celha e Felipe não soubessem por quanto tempo.

       – Não há dúvida que as mortes deles tinham o intuito de apagar arquivo – comentou Celha Regina, baixo, quase inaudível, o que obrigou Felipe a proferir um “hã?”.

       Ela repetiu:

       – Aquela foi uma situação típica de queima de arquivo, Felipe. Não há outra explicação.

       – Então você está admitindo que eles fossem mesmo ligados ao crime organizado?

       – Porque eles seriam assassinados, da forma como foram, se não fossem?

       – Muito simples, Celhinha! Eles foram a uma festa qualquer naquela noite do crime, mexeram com a mulher de alguém não muito simpático, e levaram bala. Não é assim que muitas brigas são resolvidas hoje em dia em qualquer esquina?    

       – Os crimes não têm a característica de passionais, Felipe. Eu admito que se possa encontrar explicação pra quase tudo, é só ter boa vontade, mas se isto que você cogitou for verdade... Pô! Então os caras que se vingaram dos garanhões Siboldi e Mascarenhas são verdadeiros filhos da puta, que planejam assassinatos com a maior frieza... Não, é forçar muito a barra... Além do mais existem outras coisas pra nos fazer suspeitar que eles realmente se envolveram em algo ilícito...

       – Como, por exemplo, aquela conversa que eu flagrei deles, no dormitório, algumas noites atrás...

– Isso. Lembre-se também da armação do Siboldi ao nos mandar por uma trilha na mata, dando a entender que nós iríamos cercar os grileiros, quando, na verdade, ele fez foi nos isolar...

– E você parecia conhecer aqueles caminhos muito melhor do que qualquer um de nós...

– Não adianta você jogar verde pra cima de mim, tá, Felipe? A minha única vantagem é que eu faço o dever de casa. Uma das primeiras providências que eu tomei, ao me deparar com o tipo de missão que íamos desenvolver, foi fazer uma varredura completa pela internet daquela região, o que me deu a noção exata de onde nós estávamos...

– Sei...

– Que você está querendo insinuar?! Que eu sou a chefona do tráfico de drogas em Roraima?!

– Calma, Celha. Não precisa ficar tão nervosa...

– Se você está vivo, deve a mim, tá?

– Eu sei disso; não estou cobrando nada de você. Eu só quero entender o que tá acontecendo aqui na Amazônia, só isso...

– Nós sabemos o que está acontecendo...

– Eu não sei não! Estou cada vez mais confuso...

– O que eles querem é que pessoas como nós, que têm o poder de solucionar muitas das questões escusas que rolam por aqui, não esclareçamos nada ao contribuinte, e a Amazônia caia nas mãos de homens e mulheres inescrupulosos que vão loteá-la totalmente para fins comerciais, acabando com o meio ambiente. É isto que está acontecendo... ou não é?

– Sim, mas quem é que está mandando? Quem são os cúmplices, os corrompidos que permitem esse tipo de coisas? Qual foi o papel do Siboldi e seus capangas nisto? São muitas incógnitas.

– E o delegado da Polícia Federal? Possuía as respostas?

– O Mouzon? Acho que não. Está mais encalacrado do que nós...

– Como é o nome dele todo?

– Eu não sei. Ele me deu um cartão. Só tinha um nome, ou sobrenome: Mouzon – Delegado Polícia Federal, E-mail, etc.

– Tenho minhas dúvidas...

– Você também?

– Como assim, eu também? Por quem você está me tomando, hem, Felipe?

– Por uma mulher muito esperta...

Neste instante Celha fitou-o bem fundo nos olhos.

– Só isso? – volveu ela, provocativa.

Felipe não sustentou aquele olhar por muito tempo. Havia qualquer coisa naqueles olhos que o feriam de morte.

– Você é merecedora da mais absoluta admiração, sabia? Você venceu onde 99% das pessoas falhariam...

– Eu não quero que você fique repetindo isso toda vez, sabe, Felipe? Eu venci esta etapa, tudo bem, mas possuo outros atributos que agora me levam adiante... Eu quero ser reconhecida como qualquer mulher; não quero que o meu passado, as minhas baixas perspectivas de sobrevivência pretéritas, seja levado em conta toda vez que eu me deparar com a simples condição de mulher... Entende, Felipe?

Claro que entendia, e corou por isto...

No entanto Felipe não teve coragem para dar um passo adiante...

E disse, simplesmente:

– São estas as suas dúvidas?

– Depende do momento. Neste exato instante não eram...

– Mas em relação a este caso nebuloso, você já chegou a alguma conclusão?

– Felipe! Não é isso que me interessa neste momento, já disse!

Todavia Corrientes continuou na defensiva, ainda que suas palavras dissessem justamente o contrário.

– Eu tenho certeza que você juntou 1 + 1...

– Claro que juntei! – atacou ela concupiscentemente...

Mas o nobre tenente do exército brasileiro recolheu mais uma vez a sua espada...

– O que você achou desse delegado?

Celha soçobrou:

– O que eu achei dele?! Mas foi você quem conheceu o homem...

– Sim, mas o que lhe parece, baseado no que eu lhe falei?

– Ele me parece muito esperto...

Felipe a fitou com uma cara de quem se depara com um engenho espacial inédito, sem encontrar explicações para tal.

Celha continuou:

– Ele é um daqueles sujeitos que não desprezam nada em termos de informações, fazendo jus àquele ditado: “pra bom entendedor, meia palavra basta”...

– Assim é, se lhe parece.

– Ele pediu informações sobre mim?

– Não se preocupe. Não falei nada que pudesse despertar qualquer curiosidade sobre você...

– E quem lhe deu o direito de falar por mim na minha ausência?

– Ele ia acabar descobrindo, de uma maneira ou de outra. O Mouzon pareceu muito esperto realmente...

– Eu compreendo... Você se identificou com o cara...

– Fica fria. Não é o meu tipo – retrucou ele zombeteiro.

– Eu não tenho nada com isso. Mas você disse a ele que nós éramos amigos?

– Éramos?

– Não importa o tempo do verbo. É óbvio que ele já deduziu que eu e você formamos uma facção oposta ao Siboldi e aos outros; só resta saber onde o comandante do batalhão fica nesta história...

– E onde o Paglia fica nesta história?

– Boa pergunta...

– Você tem a resposta?

– Não, mas acredito que o delegado não vai demorar a descobrir, porque aí reside um ponto importante nesta investigação...

– Tá vendo só? Você me surpreende cada vez mais...

– Tudo o que eu falei é lógico...

– Nem sempre o óbvio é perceptível... Você, por exemplo... Você sabia que é meu talismã aqui neste fim de mundo?

– Nossa! Quanta honra! O que deu em você?

– Como assim?

– Você não costuma me elogiar dessa maneira.

– É verdade mesmo!

– É verdade o quê?

– Você... É meu pé de coelho...

– Quando você chegou a esta conclusão?

– Eu estava pensando em você um dia desses...

– É mesmo?!

– Sério! Eu venho pensando há muito tempo nisso tudo que está acontecendo...

– Sobre... nós?

 – Em como a vida nos envolve às vezes de tal maneira que quando nos damos conta...

– O que acontece?

Felipe levou algum tempo para responder.

– Eu não sei, Celha...

– Você é feliz, Felipe?

– Acho que... Porque esta pergunta agora?

– É ou não é?

 – E você?

– Sou, claro. Faço aquilo que gosto; não sou remunerada como acho que deveria, mas ainda assim ganho bem mais do que necessito pra viver, e muito mais do que a maioria do povo brasileiro precisa pra sobreviver com o mínimo de conforto. Você não acha que nós somos privilegiados?

– Sob este aspecto, tudo bem, mas o mundo não é feliz, nós não somos felizes, vivemos nos enganando...

– O fato de nós não sermos felizes, por qualquer motivo que seja, não elimina a outra possibilidade, que as pessoas possam ser felizes, sim senhor.

– Essa felicidade que você menciona pra mim cheira a ignorância...

– Quem sabe esta desincompatibilidade absurda não demonstre uma fragilidade infantil quase patológica...

– Pode ser. Mas uma coisa é a mente patologicamente enferma, uma questão subjetiva, retórica, autoritária, que depende de um receptor, alguém que interprete esta mensagem como tal, e outra bem diferente é a sociedade com o atestado de saúde vencido...

– O seu problema, Felipe, é que você confunde a sua condição com a do mundo...

– Mais uma vez sou obrigado a te perguntar...

– Sim! Sou feliz sim! E não tenho medo de repetir isto. E você não é feliz porque não quer...

 – Fala sério, Celha Regina! Você nunca teve a sensação de que tudo caminha tremendamente errado? Que ao invés de nós melhorarmos a condição humana, o que parece é que nós a pioramos cada vez mais?

– O tempo todo a gente tem esta sensação. Uma pessoa de bem percebe que há muita coisa errada, sim, mas nem por isso nós vamos nos desesperar...

– Desesperar?

– É claro. Basta que cada um faça a sua parte...

– Fazer a minha parte não é o bastante, Celha! Há quantos e quantos séculos os homens inteligentes, os instruídos, os melhores capacitados, os intelectuais, tentam fazer a sua parte? Adiantou alguma coisa? Não! Desesperar é pouco! Um homem de bem, como você disse, na verdade deveria se retirar do mundo...

– Suicidar-se?!

– Suicidar-se em carne e osso? Não precisa! Basta renunciar a tudo o que é humano.

– Só existe uma forma de fazer isso: a mendicância total e absoluta; assim mesmo é impossível renunciar à condição humana, ela é inerente ao pensamento, mesmo que deturpado pela necessidade...

– A mendicância espiritual é abolir qualquer alternativa de reforma, qualquer tentativa de revolução, posto que elas também sejam inúteis!

– O que você diz, simplesmente, é um absurdo! Um mundo inviável... Sob quaisquer aspectos... Sem saída. Você é um poeta, sabia? Porque você não escreve poesias? Talvez isto lhe dê uma compreensão maior do mundo, das pessoas...

– Se a poesia fosse uma solução, Platão não a teria excluído de sua República, e Cervantes não teria concebido o seu Quixote como um louco.

– Você é impossível, sabia?

– Não. Sou apenas o que o mundo merece. E ele não merece ninguém melhor; a maior prova disso são nossos mártires caídos...

– E, no entanto, você diz isso tudo no seio de uma instituição que deveria defender tudo aquilo em que você não acredita... Você não tem medo de ser perseguido por uma ufania tola que não vai libertar o mundo de sua ignorância sem par?

– E quem vai dar importância a isto que eu estou dizendo?

– Eu! – disse Celha, quebrando a seriedade do assunto. – Também sou uma oficial do exército brasileiro, e estou aqui dando ouvidos a um maluco delirante – acrescentou ela de maneira lúdica.

– Você é inofensiva – retrucou Felipe no mesmo tom.

– Cuidado, hem!

– Porquê?

– E se eu vier a quebrar a sua confiança?

– Você não faria isso...

– Você tem certeza?

– Tenho.

– Eu não teria se fosse você.

– Porquê? Você vai me denunciar ao Paglia, dizendo que eu sou um elemento subversivo dentro do exército? Isso é coisa do passado!

– Não sei não, hem! A história, muitas vezes, é como as marés. Vai e volta.

– Eu confiaria a minha vida em suas mãos...

– A gente não deve dar uma procuração em branco a uma pessoa...

– A você eu daria, Celha...

– Mas eu me recuso a aceitar!

– Ainda assim eu faria isso.

– Você pode se arrepender pelo resto de sua vida...

– Jamais me arrependeria...

– Mas porque, cara?!

– Mais uma vez eu não tenho uma resposta racional... Esqueça tudo o que eu te disse. Esqueça que eu no fundo não passo de um homem revoltado. Mas não de graça. As coisas são diferentes quando você gosta de uma pessoa...

– Mas se você estiver errado em relação a mim?

– Não tem importância. É difícil pra você me entender?

– Não, Felipe. Eu já te entendi Mas você não me conhece como imagina.

– Porquê? Porque eu nunca fui a Recife conhecer a sua família?

– Mesmo que você tivesse ido... Talvez isto não fosse suficiente...

– Porque vocês gostam de complicar tudo, hem?!

– Vocês, quem, cara pálida?

– Vocês mulheres! Sabe de uma coisa, Celha? Toque de recolher... Daqui a pouco teremos o chá das cinco, depois virá o jantar, e depois...

– Depois?...

– A hora dos sonhos.

– Sonhe com alguém que você gosta...

– Vou tentar...

– Tchau, Fê...

– Tchau... Misteriosa...

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