Sussurrava
tão baixinho que ela teve de pedir para ele falar mais alto, tal o cuidado que
eles precisavam tomar neste instante, não só devido aos desdobramentos dos
últimos acontecimentos em Raposa Serra do Sol, mas também porque uma suspeita
generalizada passou a pairar sobre cada elemento do 7º PEF.
Todos
poderiam estar implicados, de alguma maneira, com os criminosos que teriam
assassinado os ex-militares Siboldi, Mascarenhas e talvez Gusmão.
Felipe
não descartava, inclusive, sua amiga do peito Celha Regina, por mais que isto o
tirasse o sono.
Mais
uma folga havia terminado, e eles estavam justamente encerrando mais uma missão
de reconhecimento aos arredores da reserva, missão esta que fora comandada pelo
capitão Aleixo, substituto do falecido Siboldi...
Tudo
estava calmo por lá...
Por
enquanto.
Os
índios voltaram a apascentar-se com a promessa do governo federal de que todos
os invasores seriam expulsos de suas terras, embora a opinião pública, de uma
maneira geral, desacreditasse nesta política de tapa buraco.
No
entanto, o que ainda encafifava nossos dois ternos amigos, Celha Regina e
Felipe Corrientes, consistia nos assassinatos não tão misteriosos dos
ex-companheiros.
Armando
Paglia ainda dava as cartas por lá...
Embora
Celha e Felipe não soubessem por quanto tempo.
–
Não há dúvida que as mortes deles tinham o intuito de apagar arquivo – comentou
Celha Regina, baixo, quase inaudível, o que obrigou Felipe a proferir um “hã?”.
Ela
repetiu:
–
Aquela foi uma situação típica de queima de arquivo, Felipe. Não há outra
explicação.
–
Então você está admitindo que eles fossem mesmo ligados ao crime organizado?
–
Porque eles seriam assassinados, da forma como foram, se não fossem?
–
Muito simples, Celhinha! Eles foram a uma festa qualquer naquela noite do
crime, mexeram com a mulher de alguém não muito simpático, e levaram bala. Não
é assim que muitas brigas são resolvidas hoje em dia em qualquer esquina?
–
Os crimes não têm a característica de passionais, Felipe. Eu admito que se possa
encontrar explicação pra quase tudo, é só ter boa vontade, mas se isto que você
cogitou for verdade... Pô! Então os caras que se vingaram dos garanhões Siboldi
e Mascarenhas são verdadeiros filhos da puta, que planejam assassinatos com a
maior frieza... Não, é forçar muito a barra... Além do mais existem outras
coisas pra nos fazer suspeitar que eles realmente se envolveram em algo
ilícito...
–
Como, por exemplo, aquela conversa que eu flagrei deles, no dormitório, algumas
noites atrás...
– Isso. Lembre-se
também da armação do Siboldi ao nos mandar por uma trilha na mata, dando a
entender que nós iríamos cercar os grileiros, quando, na verdade, ele fez foi
nos isolar...
– E você parecia
conhecer aqueles caminhos muito melhor do que qualquer um de nós...
– Não adianta você
jogar verde pra cima de mim, tá, Felipe? A minha única vantagem é que eu faço o
dever de casa. Uma das primeiras providências que eu tomei, ao me deparar com o
tipo de missão que íamos desenvolver, foi fazer uma varredura completa pela
internet daquela região, o que me deu a noção exata de onde nós estávamos...
– Sei...
– Que você está
querendo insinuar?! Que eu sou a chefona do tráfico de drogas em Roraima?!
– Calma, Celha. Não
precisa ficar tão nervosa...
– Se você está
vivo, deve a mim, tá?
– Eu sei disso; não
estou cobrando nada de você. Eu só quero entender o que tá acontecendo aqui na
Amazônia, só isso...
– Nós sabemos o que
está acontecendo...
– Eu não sei não!
Estou cada vez mais confuso...
– O que eles querem
é que pessoas como nós, que têm o poder de solucionar muitas das questões
escusas que rolam por aqui, não esclareçamos nada ao contribuinte, e a Amazônia
caia nas mãos de homens e mulheres inescrupulosos que vão loteá-la totalmente
para fins comerciais, acabando com o meio ambiente. É isto que está
acontecendo... ou não é?
– Sim, mas quem é
que está mandando? Quem são os cúmplices, os corrompidos que permitem esse tipo
de coisas? Qual foi o papel do Siboldi e seus capangas nisto? São muitas
incógnitas.
– E o delegado da
Polícia Federal? Possuía as respostas?
– O Mouzon? Acho
que não. Está mais encalacrado do que nós...
– Como é o nome
dele todo?
– Eu não sei. Ele
me deu um cartão. Só tinha um nome, ou sobrenome: Mouzon – Delegado Polícia
Federal, E-mail, etc.
– Tenho minhas
dúvidas...
– Você também?
– Como assim, eu
também? Por quem você está me tomando, hem, Felipe?
– Por uma mulher
muito esperta...
Neste instante
Celha fitou-o bem fundo nos olhos.
– Só isso? – volveu
ela, provocativa.
Felipe não
sustentou aquele olhar por muito tempo. Havia qualquer coisa naqueles olhos que
o feriam de morte.
– Você é merecedora
da mais absoluta admiração, sabia? Você venceu onde 99% das pessoas
falhariam...
– Eu não quero que
você fique repetindo isso toda vez, sabe, Felipe? Eu venci esta etapa, tudo
bem, mas possuo outros atributos que agora me levam adiante... Eu quero ser reconhecida
como qualquer mulher; não quero que o meu passado, as minhas baixas
perspectivas de sobrevivência pretéritas, seja levado em conta toda vez que eu
me deparar com a simples condição de mulher... Entende, Felipe?
Claro que entendia,
e corou por isto...
No entanto Felipe
não teve coragem para dar um passo adiante...
E disse,
simplesmente:
– São estas as suas
dúvidas?
– Depende do
momento. Neste exato instante não eram...
– Mas em relação a
este caso nebuloso, você já chegou a alguma conclusão?
– Felipe! Não é
isso que me interessa neste momento, já disse!
Todavia Corrientes
continuou na defensiva, ainda que suas palavras dissessem justamente o
contrário.
– Eu tenho certeza
que você juntou 1 + 1...
– Claro que juntei!
– atacou ela concupiscentemente...
Mas o nobre tenente
do exército brasileiro recolheu mais uma vez a sua espada...
– O que você achou
desse delegado?
Celha soçobrou:
– O que eu achei
dele?! Mas foi você quem conheceu o homem...
– Sim, mas o que
lhe parece, baseado no que eu lhe falei?
– Ele me parece
muito esperto...
Felipe a fitou com
uma cara de quem se depara com um engenho espacial inédito, sem encontrar
explicações para tal.
Celha continuou:
– Ele é um daqueles
sujeitos que não desprezam nada em termos de informações, fazendo jus àquele
ditado: “pra bom entendedor, meia palavra basta”...
– Assim é, se lhe
parece.
– Ele pediu
informações sobre mim?
– Não se preocupe.
Não falei nada que pudesse despertar qualquer curiosidade sobre você...
– E quem lhe deu o
direito de falar por mim na minha ausência?
– Ele ia acabar
descobrindo, de uma maneira ou de outra. O Mouzon pareceu muito esperto
realmente...
– Eu compreendo...
Você se identificou com o cara...
– Fica fria. Não é
o meu tipo – retrucou ele zombeteiro.
– Eu não tenho nada
com isso. Mas você disse a ele que nós éramos amigos?
– Éramos?
– Não importa o
tempo do verbo. É óbvio que ele já deduziu que eu e você formamos uma facção
oposta ao Siboldi e aos outros; só resta saber onde o comandante do batalhão
fica nesta história...
– E onde o Paglia
fica nesta história?
– Boa pergunta...
– Você tem a
resposta?
– Não, mas acredito
que o delegado não vai demorar a descobrir, porque aí reside um ponto
importante nesta investigação...
– Tá vendo só? Você
me surpreende cada vez mais...
– Tudo o que eu
falei é lógico...
– Nem sempre o
óbvio é perceptível... Você, por exemplo... Você sabia que é meu talismã aqui
neste fim de mundo?
– Nossa! Quanta
honra! O que deu em você?
– Como assim?
– Você não costuma
me elogiar dessa maneira.
– É verdade mesmo!
– É verdade o quê?
– Você... É meu pé
de coelho...
– Quando você
chegou a esta conclusão?
– Eu estava
pensando em você um dia desses...
– É mesmo?!
– Sério! Eu venho
pensando há muito tempo nisso tudo que está acontecendo...
– Sobre... nós?
– Em como a vida nos envolve às vezes de tal
maneira que quando nos damos conta...
– O que acontece?
Felipe levou algum
tempo para responder.
– Eu não sei,
Celha...
– Você é feliz,
Felipe?
– Acho que... Porque
esta pergunta agora?
– É ou não é?
– E você?
– Sou, claro. Faço
aquilo que gosto; não sou remunerada como acho que deveria, mas ainda assim ganho
bem mais do que necessito pra viver, e muito mais do que a maioria do povo
brasileiro precisa pra sobreviver com o mínimo de conforto. Você não acha que
nós somos privilegiados?
– Sob este aspecto,
tudo bem, mas o mundo não é feliz, nós não somos felizes, vivemos nos
enganando...
– O fato de nós não
sermos felizes, por qualquer motivo que seja, não elimina a outra
possibilidade, que as pessoas possam ser felizes, sim senhor.
– Essa felicidade
que você menciona pra mim cheira a ignorância...
– Quem sabe esta desincompatibilidade
absurda não demonstre uma fragilidade infantil quase patológica...
– Pode ser. Mas uma
coisa é a mente patologicamente enferma, uma questão subjetiva, retórica,
autoritária, que depende de um receptor, alguém que interprete esta mensagem
como tal, e outra bem diferente é a sociedade com o atestado de saúde vencido...
– O seu problema,
Felipe, é que você confunde a sua condição com a do mundo...
– Mais uma vez sou
obrigado a te perguntar...
– Sim! Sou feliz
sim! E não tenho medo de repetir isto. E você não é feliz porque não quer...
– Fala sério, Celha Regina! Você nunca teve a
sensação de que tudo caminha tremendamente errado? Que ao invés de nós
melhorarmos a condição humana, o que parece é que nós a pioramos cada vez mais?
– O tempo todo a
gente tem esta sensação. Uma pessoa de bem percebe que há muita coisa errada, sim,
mas nem por isso nós vamos nos desesperar...
– Desesperar?
– É claro. Basta
que cada um faça a sua parte...
– Fazer a minha
parte não é o bastante, Celha! Há quantos e quantos séculos os homens
inteligentes, os instruídos, os melhores capacitados, os intelectuais, tentam
fazer a sua parte? Adiantou alguma coisa? Não! Desesperar é pouco! Um homem de
bem, como você disse, na verdade deveria se retirar do mundo...
– Suicidar-se?!
– Suicidar-se em
carne e osso? Não precisa! Basta renunciar a tudo o que é humano.
– Só existe uma
forma de fazer isso: a mendicância total e absoluta; assim mesmo é impossível
renunciar à condição humana, ela é inerente ao pensamento, mesmo que deturpado
pela necessidade...
– A mendicância
espiritual é abolir qualquer alternativa de reforma, qualquer tentativa de
revolução, posto que elas também sejam inúteis!
– O que você diz,
simplesmente, é um absurdo! Um mundo inviável... Sob quaisquer aspectos... Sem
saída. Você é um poeta, sabia? Porque você não escreve poesias? Talvez isto lhe
dê uma compreensão maior do mundo, das pessoas...
– Se a poesia fosse
uma solução, Platão não a teria excluído de sua República, e Cervantes não
teria concebido o seu Quixote como um louco.
– Você é
impossível, sabia?
– Não. Sou apenas o
que o mundo merece. E ele não merece ninguém melhor; a maior prova disso são
nossos mártires caídos...
– E, no entanto,
você diz isso tudo no seio de uma instituição que deveria defender tudo aquilo
em que você não acredita... Você não tem medo de ser perseguido por uma ufania
tola que não vai libertar o mundo de sua ignorância sem par?
– E quem vai dar
importância a isto que eu estou dizendo?
– Eu! – disse
Celha, quebrando a seriedade do assunto. – Também sou uma oficial do exército
brasileiro, e estou aqui dando ouvidos a um maluco delirante – acrescentou ela
de maneira lúdica.
– Você é inofensiva
– retrucou Felipe no mesmo tom.
– Cuidado, hem!
– Porquê?
– E se eu vier a
quebrar a sua confiança?
– Você não faria
isso...
– Você tem certeza?
– Tenho.
– Eu não teria se
fosse você.
– Porquê? Você vai
me denunciar ao Paglia, dizendo que eu sou um elemento subversivo dentro do
exército? Isso é coisa do passado!
– Não sei não, hem!
A história, muitas vezes, é como as marés. Vai e volta.
– Eu confiaria a minha
vida em suas mãos...
– A gente não deve
dar uma procuração em branco a uma pessoa...
– A você eu daria,
Celha...
– Mas eu me recuso
a aceitar!
– Ainda assim eu faria
isso.
– Você pode se
arrepender pelo resto de sua vida...
– Jamais me
arrependeria...
– Mas porque, cara?!
– Mais uma vez eu
não tenho uma resposta racional... Esqueça tudo o que eu te disse. Esqueça que
eu no fundo não passo de um homem revoltado. Mas não de graça. As coisas são
diferentes quando você gosta de uma pessoa...
– Mas se você
estiver errado em relação a mim?
– Não tem
importância. É difícil pra você me entender?
– Não, Felipe. Eu
já te entendi Mas você não me conhece como imagina.
– Porquê? Porque eu
nunca fui a Recife conhecer a sua família?
– Mesmo que você tivesse
ido... Talvez isto não fosse suficiente...
– Porque vocês
gostam de complicar tudo, hem?!
– Vocês, quem, cara
pálida?
– Vocês mulheres! Sabe
de uma coisa, Celha? Toque de recolher... Daqui a pouco teremos o chá das
cinco, depois virá o jantar, e depois...
– Depois?...
– A hora dos
sonhos.
– Sonhe com alguém
que você gosta...
– Vou tentar...
– Tchau, Fê...
– Tchau... Misteriosa...
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