quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 7


Na mesma semana, em São Paulo capital, fazia uma bela madrugada. Siboldi e Mascarenhas voltavam de uma balada na periferia da cidade, quando foram cercados por duas vans escuras, sem placas, vidros escuros que mal dava para se identificar os passageiros, numa rua deserta próxima a uma favela...

Alguns homens fortemente armados já saíram dos veículos atirando, não dando a mínima chance aos dois oficiais do exército escaparem...

O Capitão Siboldi e o Primeiro Tenente Mascarenhas faleceram no local...

Nenhum dos dois constituíra família ainda.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 6


O Sargento Gusmão era originário de Mato Grosso, e morava bem afastado da capital, numa região próxima à cidade de Barra do Garças, onde residia com sua esposa.

Seus filhos, um casal, já eram independentes; casados eles também e com filhos. Ambos moravam em Cuiabá.

Gusmão era avô de três netinhas; uma do filho e duas da filha mais velha.

Num belo entardecer de primavera, o avô orgulhoso assistia à televisão com sua esposa quando perceberam cheiro de queimado vindo de local desconhecido, mas próximo...

Quando eles foram verificar a origem, descobriram que um incêndio monstruoso queimava um dos quartos de hóspedes da espaçosa casa, um pouco afastada do conjunto arquitetônico principal, porém, ao que tudo indicava nada mais poderia ser salvo...

Tentaram de tudo para impedir que o incêndio se propagasse para o resto da casa. Não conseguiram.

O casal pereceu no incêndio...

Inexplicavelmente.

Isso tudo aconteceu uma semana depois dos incidentes na Raposa Serra do Sol.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 5


Aquela sensação de catástrofe iminente, coisa poderosa, indispensável ao instinto de sobrevivência animal, embora, ao mesmo tempo, fosse incômoda para um ser humano também, como a farpa no dedão de um operário, há muito contaminara Felipe Corrientes...

As vozes da floresta, tanto Celha quanto Felipe ousariam proclamar mais tarde, “demoníacas!”, já nem abalavam mais...

Eles seguiam pelo labirinto verde como que possuídos de estranha febre...

E o batalhão atrás...

Como patinhos seguindo sua mamãe pelo abanar do rabo...

Celha, guiada cegamente por sua bússola feminina, obnubilada pelo pânico da morte, não reconhecia as estreitas trilhas escavadas a fórceps...

Agora os comunicadores estavam ligados, mas eles só escutavam os ruídos ameaçadores da conflagração generalizada...

As frequências eram as mais variadas, tanto nas faixas de comunicação normais, quanto nas modulações das expressões de morte e estupefação...

Nenhum sinal de Siboldi e dos demais membros do comando foram captados...

Mas também!...

Naquela confusão de ruídos embaralhados nas ondas do rádio, nada podia ser percebido com nitidez...

A reserva Raposa Serra do Sol era como um mar verde interminável para olhos humanos, e Celha Regina e Felipe Corrientes, como náufragos manchados de sangue...

Não viam sequer os soldados sob seu comando, que nem importavam nas estatísticas dos ovos que foram quebrados para que se fizesse a gemada geral...

Nenhum dos dois soube dizer a posteriori como chegaram sãos e salvos ao 7º PEF...

Celha não falava coisa com coisa, articulando palavras vazias misturadas ao horror do espetáculo sangrento...

Felipe Corrientes, este então, só sabia dizer uma coisa: “não sei, pergunte a Tenente Nascimento”...

Daqueles homens enviados para acompanharem os dois tenentes, só foram identificados depois, a maioria deles na lista dos óbitos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 4


Enquanto isso, os outros só esperavam uma oportunidade como esta para golpear sem restrições...

Várias tribos estavam em pé de guerra, afinal suas terras estavam sendo invadidas por dois grandes grupos de ávidos capitalistas.

Os grileiros vinham sendo monitorados pelos militares e a Polícia Federal há algum tempo, porém, do outro lado da reserva, uma turma de madeireiros ilegais também preparava uma incursão...

Ninguém sabia da existência daqueles madeireiros...

Quer dizer, ninguém sabia da invasão em tempo real...

Porquanto este grupo de invasores também vinha sendo monitorado constantemente pelas autoridades, embora nada de concreto fosse feito para suster a invasão dupla.

Mas nós sabíamos de tudo o que estava acontecendo na Raposa Serra do Sol...

E não era de hoje!

Estávamos munidos de laptops ajustados a um satélite europeu, que, por sua vez, estava acoplado a um GPS de alta precisão. Podíamos acompanhar a movimentação de todos os grupos envolvidos, de uma forma ou de outra, na disputa pela Raposa...

Fizemos uma série de ligações com toda a imprensa instalada na capital de Roraima, inclusive outras ONGs que, como a Sweetwaters, tinha interesse que a situação fosse resolvida a favor dos povos indígenas, embora alguns daqueles chefes tribais, nós também tínhamos conhecimento disso, tivessem empenhado sua palavra com grandes empresas multinacionais ligadas a diversos setores da indústria pesada...

O drama da Amazônia se configurava como um imenso caos, que só iria beneficiar os grandes capitalistas mundiais...

Isto muita gente também tinha conhecimento...

Mas nada se fazia de concreto.

No meio deste aparato todo, eu me sentia meio que uma formiga a ser esmagada a qualquer momento por pés monumentais...

E isto poderia vir de qualquer lado, por qualquer um que estivesse procurando um bode expiatório para desafogar o seu fracasso...

Claro que esta impotência não se comparava a dos povos indígenas, que certamente não poderiam fazer nada para manter as terras que lhes pertenciam a gerações, nem a população do planeta como um todo, que via o seu “pulmão” sendo destruído lentamente, ainda que esta noção da floresta como o “pulmão do mundo” fosse extremamente controvertida entre os ecologistas...

A complexidade das relações entrelaçadas de interesses escusos se confundia ainda mais quando entravam em jogo os interesses das organizações que pretendiam salvar a Amazônia...

Tornara-se praticamente impossível discernir o certo do errado, e o lado bom do ruim...

Enquanto isso, a contagem regressiva para o fim da Amazônia já começara...

E, sinceramente, eu nem vi como tudo começou...

Contanto fosse previsível este desfecho...

Ânimos exaltados de parte a parte, pois cada lado só queria enxergar aquilo que lhe interessava...

E o direito da massa?!

Essa... Venhamos e convenhamos... Não tem direito algum!

Os madeireiros estavam cheios de jagunços superarmados a seu serviço...

Os índios, coitados, combatiam seus inimigos, o mundo inteiro, com arcos, flechas e bordunas...

  A FUNAI, o IBAMA, a Polícia Federal demoraram muito em conversas parabólicas. Chegaram depois pra contar o número dos corpos...

Curiosamente, até estrangeiros estavam entre as vítimas da “guerra”. Pessoas comuns, profissionais liberais, professores, até operários partidários de Chico Mendes, quedaram entre inumeráveis companheiros nossos...

Tudo gado na conta dos Senhores de Engenho...

Lá onde estavam posicionados os grileiros, a coisa não foi diferente...

Manchetes em todos os principais jornais do planeta: “CARNIFICINA DA AMAZÔNIA!”, estampava um; “GUERRA EM PLENA FLORESTA AMAZÔNICA”, dizia outro...

 E assim vai...

Entre os militares também... Muitos mortos e estropiados...

Alguém, não sei bem quem, chegou a comparar esta catástrofe aos Sertões de Euclides da Cunha...

Isso foi o que testemunhei naquele triste dia na Raposa Serra do Sol.

Estou voltando pro Rio agora, mas, infelizmente, a notícia da tragédia chegou antes de mim...

Não tenho muita novidade pra contar a Wirna...

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 3


– Onde eles se meteram?

Não obteve nenhuma resposta.

Todos se entreolharam meio aparvalhados.

– Verifiquem os comunicadores deles...

Os mesmos foram verificados.

Não havia resposta.

– O que será que aconteceu a eles? – perguntou um perplexo Mascarenhas.

Siboldi limitou-se a murmurar uma resposta incompreensível.

– Tente de novo – voltava a ordenar.

Gusmão verificou o aparelho...

Nada.

Os soldados em torno dos três oficiais não se pronunciaram...

Tinham um condicionamento tácito...

Criados para obedecer...

Mais nada.

– Bem, eu não sei o que aconteceu àqueles incompetentes... – disse Siboldi, irritadiço. Os três militares olharam na direção que era o foco de sua missão. – Aí está o acampamento dos grileiros...

Uma intensa atividade humana se desenvolvia como se fosse a coisa mais natural deste mundo. Várias barracas de camping se espalhavam pela clareira aberta no meio da Raposa Serra do Sol. Não havia nenhum sinal de índios ou de seus representantes, apenas homens brancos, colonos ilegais prestes a assentarem-se numa terra que não lhes pertencia.

– O que vamos fazer Capitão, sem a cobertura deles? – perguntou um preocupado Mascarenhas.

– Mesmo que eles estivessem no posto que eu ordenei... – volveu Siboldi – não poderíamos fazer nada. É muita gente. Provavelmente estão armados até os dentes. Eles nos massacrariam!

– Porque não passamos um rádio convocando reforços para cá? – opinou Gusmão, simples e objetivo. – Helicópteros talvez.

– Estes grileiros não iriam invadir a floresta ilegalmente sem o apoio de rádio...

– Eles nos interceptariam – acrescentou Mascarenhas.

– Com toda a certeza – concordou o capitão. – Ficaríamos num fogo cruzado...

– Mas o senhor não disse que nós não podemos deixar eles escaparem, capitão?

– Cala essa porra dessa boca, Gusmão! Eu sei o que falei!

– O que vamos fazer então? – tornou Mascarenhas, monotonamente repetitivo.

– Esperar – disse um Siboldi resignado. – Apenas esperar...

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 2


À medida que os pesados coturnos trituravam as folhas mortas, num faf-faf irregular, átono, um caminho extremamente tortuoso descortinava-se-lhes diante dos olhos súplices...

Eles sabiam que podiam morrer...

E pior... Pra muitos deles... Ficar para sempre numa cadeira de rodas... Babando pela boca passiva sem palavras... Aceitando tudo sem discutir... Tudo imposto sem vontade própria... Sem escolha... Sem poder se mover... Reagir... Tornar-se um inválido inútil inconsequente...  

Os ruídos ameaçadores da floresta, como sussurros fantasmagóricos incontroláveis, causavam uma sensação desagradável, aquecendo-lhes demasiado o estômago frágil...

Sinal de tensão emocional crescente segundo a medicina tradicional chinesa...

A respiração pesada misturava-se ao suor melado da umidade sempiterna...

Os corações acelerados bateram mais rápido ao soar daquele uivo sibilino; mais um dentre tantos chamados desconhecidos...

Sem querer, Celha Regina, que estava atrás de Felipe, mas bem colada a ele, segurou em sua mochila de equipamentos...

Ela parou, assustadíssima, observando aquele ambiente hostil, mesmo para uma pessoa acostumada a ele, enquanto o companheiro prosseguia a sua caminhada, liderando o grupo. Entretanto, ele pararia logo depois, inconscientemente, procurando por Celha, que, presa ao chão ervado, como a prisioneira de uma ratoeira inerme e gigantesca, de onde não há saída, buscava uma resposta a uma pergunta impronunciável...

Seus companheiros, soldados rasos, todos eles descendentes de índios, em menor ou maior grau, acompanhavam este sentimento prépânico, pois eles também tinham medo de morrer...

– O que foi? – perguntou Felipe, estranhando a atitude da amiga, mas é que ele sentira sua ausência espiritual.

– Este lugar me dá arrepios, sabia? – disse ela, olhar atônito, buscando os responsáveis por aquela aquarela sonora, olhando através dos companheiros de armas como se estivesse apenas ela e seu medo.

– Como é possível, Celhinha? – Sussurrou Felipe, apenas para ela ouvir, pois não quis dar crédito aos medos efêmeros que contaminavam a todos. – Nós estamos carecas de circular por aqui.

– Eu sei, mas agora é diferente...

Ela procurava por uma ou várias sombras; não sabia ainda, embora o resultado desta busca viesse logo a seguir, e não era nada concreto, contanto imediato...

– O que pode ser diferente nesta floresta tropical?

– Tantas coisas. Me admiro você esquecer isso.

– Eu não esqueci nada!

– Eu sei.

– O que está acontecendo, Celha?

– Você não desconfia de nada?

– Desconfiar do quê?

– Há algo de errado nesta história.

– Você quer fazer o favor de ir direto ao ponto!

– Não fique agastado comigo. Mas eu estou me sentindo tão... tão... sozinha.

– Sozinha?! Olhe a sua volta...

– Eu sei... Alguém já disse certa vez: “uma solidão infestada de presenças”.

– Você está tão esquisita, Celha! Sabia?

– Porque estou tendo uma sensação desagradável...

– Compreendo... Aquelas coisas de mulher, não é?     

– Não; engano seu. São coisas de ser humano. Ser humano sensível. Ser humano que quer...

– Que quer?

– Você não está percebendo nada mesmo?!

Felipe sentou-se no chão, atapetado de defuntos vegetais, um tanto enfarado...

Tudo isso de certa forma sussurrado...

Os soldados, alguns deles, o imitaram...

Depois do fato consumado ele fez um gesto de assentimento...

Celha, naturalmente, deixou o comando do grupo ao seu dispor...

– Você poderia me esclarecer, que tal? – volveu Felipe, enxugando o suor da testa pintada para a guerra, como manda o figurino indígena, copiado na guerra pelo homem branco vilão.

– Nós não vamos a lugar nenhum... – disse Celha. Felipe fitou-a com uma expressão de quem acabara de ver um saci Pererê. – Vamos voltar e sair desta missão...

– Como assim? Não tô entendendo nada!

– Ah, meu Deus, Felipe, não acredito que você seja tão mongo assim! Você não percebeu que tem alguma coisa errada?!

– Totalmente errada! Eu nunca vi você tão esquisita assim!

– Mas não é comigo, Corrientes! – esta ela disse para que todos pudessem ouvir, impessoal, o que deixou a tropa realmente alerta. – Trata-se desta situação!

– Ah, sim... Eu sei... Claro que percebi – voltaram a sussurrar. – Porque você não me explicou logo de uma vez?

– É o que estou tentando fazer desde o início! É muita coincidência estarmos todos juntos nesta missão, você e o seu desafeto...

– Porém há outras pessoas que não estão ligadas diretamente na picuinha entre eu e o Siboldi... – o gesto abrangente de Felipe incluía toda a tropa.

– Neste momento, em outro ponto da reserva, estão o Siboldi, o Mascarenhas e o Gusmão. Nós fomos separados e mandados por um caminho diferente... As duas facções em conflito.

– Nós não somos exatamente duas facções em conflito, Celha... – ela olhou furibunda para ele. – Está bem! Admito que coincidências assim nunca venham por acaso, mas as ordens foram dadas por Paglia.

– Nenhuma dúvida quanto a isso, mas eu duvido que não fosse coisa do Siboldi nos mandar separar...

– Realmente... Mas o que você quer fazer?

– Vamos sair desta trilha...

– Você quer voltar?! Mas qual a explicação que vamos dar ao Siboldi para descumprir as ordens dele?

– Você tem uma alternativa pra não cairmos na armadilha dele?

– No momento nada me ocorre...

– Vem comigo...

– Mas e estes soldados?!

– Eles farão o que nós dissermos!

– E os comunicadores portáteis?

– Desligue-os. Deixe o resto comigo...

Todo o trajeto já iniciado foi feito ao contrário...

De fato, nenhum dos homens questionou a improvisação...

Eram todos soldados rasos...

Índios!

Para eles tudo não passava disto...

Improvisação.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 1


Tudo se desenrola conforme o curso natural das coisas. Nem um milímetro a mais, nem uma noite a menos; nem um cicio de um grilo tardio, nem o mugido de um macaco noturno, nada que possa alterar o divisor de águas estabelecido pelo ciclo cósmico, insanamente incompreensível para nós, meros mortais bebedores de leite.

       O certo é que a denúncia chegara na quinta-feira ao quartel  do 7º PEF, um dia depois do retorno de Felipe Corrientes à Uiramutã.

       E aí residia o mistério...

       Felipe decerto não encarou o problema por este prisma...

       No início.

       Assim como Celha Regina...

Nenhum dos dois, no momento exato que as ordens foram emitidas, podia imaginar o atalho que o destino impunha a eles, embora também neste caso, nada estivesse predeterminado...

       Nunca está.

Todo o batalhão estava de prontidão, embora nem todos fossem convocados para aquela missão especial.

Felipe, Celha, Mascarenhas, Gusmão e o capitão Siboldi seriam os líderes de um comando escalado para investigar um suposto acampamento de grileiros em plena reserva Raposa Serra do Sol.

À testa do grupo, o não menos conspícuo Ernesto Siboldi teria o encargo de comandar os bravos cavaleiros do século XXI, que não tinham uma triste figura, mas fariam feio o seu trabalho de desbravar as terras invadidas pelos aventureiros da reserva proibida...

Ponto...

Não o final...

Mas o início.

Ora! Quis o destino que os cinco personagens envolvidos numa confusãozinha de esquina estivessem juntinhos nesta missão, ainda sobre o assunto se o destino tem ou não papel preponderante sobre nossas vidas, ou é apenas uma questão cultural...

Judaico-cristã.

Mas, afinal, isto era puro acaso...

Ou não?

Que julguem vocês, meus leitores atentos e perspicazes. Eu faço apenas o papel de relator dos acontecimentos.

Na madrugada da sexta-feira seguiu o batalhão com equipamento completo de combate na selva, dispostos a prender os criminosos e acabar com seu acampamento, caso a denúncia fosse confirmada.

Marcharam pela mata fechada no Município de Uiramutã, local do quartel do 7º PEF, e ponto inicial da missão, porém o planejamento da operação jamais se iludiu quanto a uma coisa: sabia-se que os soldados iriam penetrar muito mais do que se imaginava na reserva, sempre tendo como pano de fundo uma escuridão completa, cinzenta, sujeita às chuvas e/ou trovoadas, isto sem contar os inúmeros perigos da fauna hostil, sacis pererês, curupiras, etc. e tal...

Ah! Esta é uma probabilidade contida em muitas das equações dos matemáticos de plantão, principalmente porquanto numa floresta úmida, água é o que não falta...

Absolutamente!

Enfim, seguiram os atalhos que os levava ao tal do acampamento sem um minuto de trégua, até que o capitão Siboldi deteve-se num determinado ponto do percurso junto com a tropa.

– Bebam um pouco d’água, pessoal – disse Siboldi, impessoal, como manda um comandante bem treinado, encostando-se a uma das árvores reinantes ali, absoluta, impávida, abrindo seu cantil e levando-o a boca, pingando, pingando, e sem ressentimentos, como sói num escorpião venenoso...

Ainda permanecia o estado de expectativa dentre todos os membros do comando, como da beligerância entre Siboldi e Felipe, aquilo não se apagaria assim, de inopino, graças ao espírito de aventura que aquela missão implicava, mas nada transparecia do que estava para acontecer...

E as coisas são assim mesmo...

Imprevisíveis.

Embora três dos integrantes daquele comando soubessem muito bem o que viria a seguir...

Celha, a única mulher residente em todo o 7º PEF, e uma das mais competentes em termos de combate na selva, aprovada e comprovada nos treinamentos exaustivos levados a efeito no próprio PEF, curiosa como toda mulher, apesar do silêncio imposto aos integrantes da missão até aqui, não resistiu por mais tempo, e atacou:

– Bem, Capitão, eu poderia perguntar-lhe o que podemos esperar dos invasores?

Ela já havia bebido o seu quinhão.

– Não, tenente – respondeu Siboldi peremptório, antipático, sáfaro. – A senhora não tem o direito de perguntar nada...

No entanto Mascarenhas não respeitou o silêncio, e, deitado na erva alta do tapete florestal, olhos fitos em algum provável espião oculto na mata, debochou:

– O que podemos esperar de grileiros metidos na selva ilegalmente, Nascimento?

– Chumbo grosso, na certa – imiscuiu-se Felipe, igualmente atento, mas que não tivera nenhuma intenção de corroborar o espírito inamistoso em relação a ela, ou a ele próprio. Neste particular a atenção de Felipe Corrientes não despertara.

– Com certeza! – acrescentou Gusmão, agachado numa das inúmeras árvores que circundavam o ponto onde eles se encontravam. Fuzil em riste. Ele também espreitava.

– Silêncio todo mundo! – volveu Siboldi num tom que não deixava dúvidas em relação à gravidade do momento.

Acabara de se reequipar, e ajeitara seu uniforme, um tanto amarfanhado, com suavidade algo diplomática.

– Vamos... – disse mais uma vez o capitão. – Estamos a poucos metros do acampamento, segundo o mapa que o comandante nos deu. Preparem-se para trocar tiros com aqueles marginais. Eles estão dispostos a tudo para manter sua posição. Vamos nos dividir em dois grupos... – disse, e apontou para uma gigantesca quaresmeira que servia de marco para os soldados. – Ali na frente há dois caminhos distintos... O da direita é o mais longo, mas nos levará às costas dos grileiros, como garantia de que eles não nos escaparão. Corrientes e Nascimento, vocês liderarão este grupo. O outro nos leva direto ao acampamento deles. Eu, Mascarenhas e Gusmão vamos por ele. Alguma dúvida?

Felipe levantou a mão.

– Fala, Corrientes! – disse Siboldi ríspido, porém baixo.

– E se houver correria, fuga precipitada?

– Atirem para matar! Se for possível, só pra imobilizar. Ninguém pode escapar pelos nossos dedos... Entenderam? Nós temos de capturar um infeliz desses a qualquer preço. Temos de interrogá-los...

– Mas isto pode ser uma carnificina, Senhor! Será que as ordens que nos...

– As ordens que nos foram destinadas, Corrientes, dizem que não devemos deixar ninguém escapar! E ordens são para ser cumpridas, não questionadas. Entendeu?

Felipe, claro, tinha compreendido muito bem, entretanto ele perguntava com seus botões até que ponto Siboldi não estaria agindo com autonomia exagerada.

Não cabia a ele responder pelas conseqüências daquela ação talvez calamitosa.

Celha, ao contrário do companheiro, manteve-se calada o tempo todo, após advertência do comandante, observando o interior de cada um dos companheiros. E por dentro ela também fervia de uma excitação algo preocupada. Começava a enxergar naquela missão algo de podre, embora não pudesse prever com exatidão o que estava sendo arquitetado pelo comandante. Não tinha dúvidas em relação a isto, e agora precisaria redobrar sua atenção a cada passo.

Pegou no braço de Felipe, o que indicava que estava pronta para segui-lo até o inferno se fosse preciso, porém aquele toque disse muito mais do que Felipe precisava entender.

Siboldi, Mascarenhas e Gusmão não perderam mais tempo e tomaram o caminho na mata à esquerda. Os demais soldados do seu grupo limitaram-se a segui-los.

Celha e Felipe seguiram pela direita, seguidos pelos outros soldados...

Descerebrados...

Coitados...

Todos aqueles que seguem ordens sem prever as conseqüências...

E sem raciocinar no que estão fazendo.

Isto perpassou a mente de Felipe num átimo...

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE III, CAPÍTULO 2


Ela não sabia muito bem o que escrever naquele dia, embora tentasse depois de umas duas xícaras de café solúvel, porque não havia pó naquele momento na empresa. Uma questão de descuido regular, próprio das mentes feéricas que pensam o mundo.

Na realidade havia muito pouca gente na redação da Sweetwaters naquela hora. Todos estavam empenhados na busca de notícias atualizadíssimas acerca da nossa conturbada reserva Raposa Serra do Sol.

Eu também me achava meio oco por dentro. Sabe aquela coisa de desertos e terras ásperas como metáforas para pouca ou nenhuma inspiração literária...

Nós nos olhávamos, Wirna e eu, como dois desconhecidos obrigados a se sentar lado a lado num consultório médico, uma coisa que me oprimia um pouco às vezes, mas que era quase inevitável...

O fato é que nem mesmo um computador quântico, com ligação direta à máquina de fabricar idéias, estrelas, abstrações, poderia tirar o zero do placar...

Olhávamos nossos laptops como duas crianças que contemplam um brinquedo novo, cujo significado permanece obscuro por longo tempo, antes que ganhe vida num folguedo qualquer...

Eu esticara os pés bem calçados por cima da mesa da nossa sala a fim de visualizar melhor o que não fazíamos, embora soubesse muito bem que Wirna, a chefona da tribo, apesar de nossa intimidade extrapolar aquelas paredes, não gostasse nada nada desse afrouxamento dos costumes austeros num ambiente de trabalho, como levar o dedo ao nariz por exemplo, próprio de uma boa germânica da boa cepa, com educação prussiana e tudo...

Mas eu vivia subvertendo a ordem preestabelecida...

E continuamos lá, nosso diálogo mudo com laptops inexpressivos...

Olhava pra todos os lados, menos pra onde devia...

O trabalho.

Ach Gott! Eu não podia falar nada dele, pois estava no mesmo barco, como eles costumam se expressar.

Que preguiça era essa que tomava todo o meu corpo de assalto? Eu a chamaria “doença dos trópicos”. Creio já ter ouvido isto em algum lugar...

Estávamos os dois como que paralisados, como se uma descarga elétrica monumental, como numa daquelas tempestades tropicais típicas, tivesse caído sobre nós...

O pior é que ele cismou, naquele momento de ócio, em colocar os pés sobre a mesa, coisa que ele sabia que eu detestava!

Mas, nossa, eu não podia fazer com que o Celso esquecesse suas raízes completamente. Ele já procurava se anular tanto por minha causa!

Fechei o laptop e encarei Celso...

Disse:

– Temos de mandar alguém a Boa Vista amanhã.

Ele fez o mesmo e retrucou:

– Eu sei.

– O conflito generalizado está prestes a explodir.

Celso olhou a sua volta como que procurando por ouvidos indiscretos, mas a nossa sala era isolada do restante da sede e praticamente a prova de som.

– Porque não vamos nós mesmos?

– Há coisas que tenho de resolver por aqui...

– Tipo...

– Segurança.

– Como assim segurança?! Nós não temos nenhuma no Rio de Janeiro. A menos que...

– Eu quero dizer a segurança interna do nosso projeto.

– Ah, bem! Porque, Segurança, com letra maiúscula, aquela que todo cidadão paga pra ter, essa pode esquecer! Além do mais, a suposta insegurança que todos nós temos de conviver diariamente nas grandes cidades serve justamente de cortina de fumaça...

– É isto mesmo. A fumaça não pode baixar. Temos que ajustar algumas peças antes do golpe final.

– Então um de nós apenas irá?

– Você Celso. Eu sou mais importante aqui no Rio agora. Podemos cobrir os desdobramentos de toda a confusão que ocorre lá na Amazônia entre a intelectualidade dos grandes centros urbanos, ao mesmo tempo alimentando a mídia com novas informações a cada dia.

– Mas isso qualquer um pode fazer, Wirna.

– Não senhor, Celso. Eu preciso de alguém da minha inteira confiança no local. É uma questão de segurança interna, como já disse antes. Segurança no acesso à informação limpa, entende?

– Completamente.

– Estão acontecendo coisas na Amazônia que até Deus duvida! Os interesses capitalistas estão a um passo de transformar a floresta em pó! A despeito de toda a propaganda negativa que nós e a imprensa fornecemos há décadas!

– E a despeito de todos os pseudoprogramas de governo também.

– Sim. Também.

– Wirna, cá entre nós. Sinceramente. Você acredita que a humanidade organizada poderá deter o processo de degradação da Amazônia?

Demorei alguns instantes para dar uma resposta fatídica. Mas nem precisava! O Celso, claro, já sabia o que eu ia dizer. Nós nos conhecíamos há mais de dez anos, trabalhando juntos aqui na Sweetwaters diuturnamente, viajando pra todo lado em dupla, e nos relacionando intimamente há pelo menos a metade disto. Não havia segredos entre nós...

Nenhum.

Compartilhávamos tudo...

Absolutamente tudo...

De bom e de ruim.

Acrescentei, desanimada:

– Infelizmente os interesses do capitalismo extrapolam o fator humano. A vida toda foi assim. Esse negócio de dizerem que nós ultrapassamos a fase do capitalismo selvagem é pura balela. A sede do capitalismo, das grandes corporações, trustes, conglomerados financeiros, é insaciável. O capitalismo é e sempre será selvagem.

– Então porque estamos lutando?

– Porque o ser humano sempre se apoiará numa mísera palha pra não se afogar. Veja isto como instinto de sobrevivência se quiser; os mais materialistas, pelo menos, pensam assim; os espiritualistas encaram isto como uma questão de fé, otimismo, mas a essência do capitalismo nunca mudou: a exploração do lucro onde houver. É inevitável.

– Estamos fadados à autodestruição.

– Talvez. Quem pode prever? Algumas décadas atrás a maioria dos intelectuais de todo o mundo achavam que nós nos destruiríamos numa guerra nuclear, e isto não aconteceu, embora ainda não estejamos livres deste pesadelo. Sempre encontraremos um meio de sobreviver...

– Mas se não houver água, por exemplo...

Agora quem olhou ao redor, em pânico, fui eu. Este era um tema tabu entre toda a comunidade ecologicamente correta. Havia muitas controvérsias no que tange ao certo e errado na forma de lidar com a questão da água. Poucos convergiam neste particular. A única coisa que se tinha certeza era o óbvio...

– Que ninguém nos ouça – acrescentei – mas se a água faltar, aí não haverá nem mesmo uma palha para nos segurar.

– É o fim desta civilização de tantos altos e baixos.

– Mais baixos do que altos.

– E o que acontecerá depois?

– Só Deus sabe; literalmente.

– Será que o Dono do Mundo também sabe disso?

– Quem é o Dono do Mundo? Você sabe?

– Nós trabalhamos pra ele...

Soltei uma sonora gargalhada. O Celso, como todo brasileiro em geral, esbanjava bom humor. E era muito inteligente também. Aliás, como todo brasileiro, o Celso era um sobrevivente. Quer dizer, ele já podia ser considerado uma pessoa nos padrões europeus, tanto no seu pensamento, quanto nos hábitos civilizados, mas ainda carregava aquele DNA tipicamente tupiniquim.

Continuei o meu discurso:

– Será que o Dono do Mundo é humano?

– Sabe, Wirna, isso é o que eu vivo me perguntando...

– E qual foi a conclusão a que você chegou?

– É impossível a uma mente humana responder a esta pergunta.

– Então, Senhor Sabichão, trate de arrumar as suas coisas, pois o senhor embarca para a Região Norte ainda esta semana...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE III - CAPÍTULO 1


Quando abriu a porta da geladeira... Madrugada adentro, tudo escuro... Que susto danado! Um sanduíche americano, pelo menos parte do que sobrara dele, foi ao chão cuspindo caquinhos de louça colorida pra todo lado...

       Alface, tomate, pasta de atum e queijo amarelo, fatiados e despedaçados, jaziam no chão enladrilhado e frio, como no Alaska...

       Ele ficou ligeiramente preocupado com o sono da esposa nua ainda na cama, adormecida, após uma longa noite de amor como nunca se viu...

       Nooooossa! Que exagero das colunas sociais que levantam páginas e mais páginas de assuntos decididamente inúteis!

       Não foi assim... tão maravilhosamente maravilhoso como pensou um Tigre...

Isso até passava pela cabeça de um homem jovem adulto no auge do seu potencial sexual, mas...

       Definitivamente...

       Realmente?

       Foi muito bom. E ponto final.

       Mas houve dias melhores...

       Outros virão...

       Ele andou até uma poltrona na sala. Tudo escuro. Um frio de rachar na noite carioca, e a mulher lá... no quarto... nua.

       Deu uma espiadela pela porta do quarto entreaberta...

       Ela já havia se coberto.

       Voltou até a sala e espreguiçou-se sobre a poltrona confortável. Não era possível entreverem-se detalhes daquela decoração sui generis, pois estávamos na mais absoluta penumbra noctívaga, mas, se pudéssemos, diríamos que tudo que havia de mais confortável na indústria da decoração de ambientes deveria existir ali...

       Mas ele não se preocupava com nada disso...

       Sua mente vagava a muitos quilômetros de distância do Rio de Janeiro, apesar de estar precisando de uma folguinha como esta, não negava, principalmente depois dos acontecimentos que culminaram na declaração de guerra...

       Não comentara uma linha sequer com Flávia, sua mulher. Ela não precisava saber dos problemas do seu trabalho, até porque ignorava qual o serviço que o marido exercia no exército, e também não se interessava muito por ele por livre e espontânea vontade. Sua vida social era muito mais importante do que a carreira dele, metido no meio da selva amazônica, conforme ela desabafara uma vez com uma amiga...

       Amiga mesmo?

Todos nós temos nossas dúvidas.

Flávia era uma bela representante da classe média alta carioca. Um corpo escultural, jovem, moreno de praia todo dia e ávido por aventuras. Desfilava esta beleza por academias e onde mais fosse requisitada. A vida era uma delícia! Boa para ser vivida e não dramatizada. Odiava más notícias. E odiava tudo o que lhe subtraía deste mundinho da aparência e das pseudovirtudes da sociedade carioca, pois, em sua tosca opinião, a civilização caminhava cada vez mais para o ápice, embora não soubesse especificar do quê...

As preocupações com as desigualdades sociais, as distorções e iniqüidades por trás dos poderes públicos, tudo isto era conversa inútil, que não a levaria a nada!

Já fora assaltada duas vezes, uma delas na porta de casa, quando lhe deixaram apenas com a roupa do corpo, expressão máxima da impotência carioca. Ainda bem! Mas pensa que Flávia se incomodava com isso? Não ‘tava nem aí!

 Não, ela queria muito mais, muito mais do que poderia cogitar sua vã filosofia, as luzes e as passarelas adequavam-se ao seu perfil como a mão para a luva...

As festas desta cidade bandida que um dia ousou maravilhosa, hoje relegada ao descaso público; uma elite insensível e burra que não enxerga um palmo adiante do nariz, e políticos e vassalos inescrupulosos, decadentes, agindo como vampiros sobre o dinheiro público, com a aquiescência de um povo sofrido e bitolado pela prestidigitação da mídia...

Esta a realidade invisível...

No entanto Flávia e suas queridinhas ainda queriam mais!...

       Felipe também...

       Só que numa oitava diferente.

       A gritante realidade que ele respirava tinha outro sabor...

Mais amargo, é verdade, porém, embora Felipe desconfiasse que todo o panorama visto da ponte cheirasse a cadáveres em grande profusão, também se sentia incapaz de perceber todos os sintomas para chegar ao diagnóstico final...  

Sentado na sua poltrona na escuridão da madrugada suada, apesar do frio noturno, chuvoso, tenebroso, Felipe conseguiu esboçar um sorriso...

Subitamente pensou em Celha Regina...

Mas logo em seguida imaginou-a no meio dos chacais comandados por Siboldi, a selva nervosa, coerente e hostil, a persegui-la com seus galhos ameaçadores, exatamente como num conto infantil de terror, e aquele sorriso desapareceu...

Uma vozinha esmaecendo por baixo dos lençóis despertou-o de outro pesadelo...

O vento noturno trouxera estas palavras:

“Meu amor”...

E outras mais se acrescentaram à sinfonia do Monte Calvo...

– Que que ce tá fazendo?

Ele guiou-se através dos becos escuros até seu himeneu penumbroso...

Um corpo bem esculpido agitou-se por baixo do edredom soletrando com dificuldade palavras ainda mais obscuras...

Ainda assim ele pôde compreender...

– Porque você não vem dormir?

– Porque eu perdi o sono...

Flávia levantou-se, como que embriagada, embora não bebesse uma gota de álcool. Sua beleza era estonteante, mesmo descabelada, aqueles cabelos sedosos compridos brilhantes emaranhados...

– Você está tão estranho, Felipe...

– Estou?

– Sério! Desde que você chegou...

– Engraçado...

– Aconteceu alguma coisa lá na Amazônia?

– Não.

Porém esta resposta dizia muito mais do que uma infinidade de livros.

Flávia levantou-se definitivamente para ir ao banheiro...

Toda a poesia ficou suspensa por alguns segundos...

Uma Noite no Monte Calvo...

De novo.

Flávia empurrou-o para cama...

Por um breve momento, Felipe pensou que eles começariam tudo outra vez, mas ela citou um acontecimento banal, uma fofoquinha de academia, e seu espírito rebelou-se...

Felipe deixou-a falando sozinha e dirigiu-se à sala, na cova do Monte Calvo...

– O que aconteceu, Felipe? – perguntou ela penetrando na cova. – Você está muito estranho, Bem...

– É impressão sua, Amor.

– Sabe aquela vaca da Marília?

– Não – volveu ele distante, imune aos ruídos. – Eu não conheço nenhuma das suas amigas – completou com ironia, o que jamais atingiria a insensibilidade social de Flávia.

– Largou o marido pra ficar com um amante vinte anos mais velho do que ela...

– Alguma coisa este “amante vinte anos mais velho do que ela” deve ter que o marido não tinha...

– Duas coisas na verdade. Uma BMW e um Masseratti na garagem.

– E o marido da Marília?

– Tinha um Picasso. Mas ficou só com ele. A Marília foi morar com o Masseratti.

– Isso foi bom pra ela?

– Meu Deus, Felipe, se eu não te conhecesse, diria que você está igual ao marido da Marília!

– Porquê? Eu não tenho um Picasso...

– Não! Mas eu adoro o seu Stylo! – volveu ela com uns olhões arregalados, e acrescentou satisfeita, sorrindo: – É tão bonitinho ele, sabia?

Felipe olhou-a com ternura. Ela não passava de uma criança, como toda a humanidade, pensou num momento de lucidez algo profética.

E o que não era este mundo senão uma imensa creche escola?

Felipe estava inspirado.

Ele caminhou em direção ao lavabo. Flávia seguiu-o, agarrando-o pelas costas, soprando pequenas palavras mutiladas de carinho. Ela gostava do marido, sem dúvida, não o trocaria por um Masseratti, nem por uma BMW, até porque Felipe lhe dava uma vida de rainha, só que adorava a vida carioca muito mais do que imaginava.

Futilidades a parte, os dois se atracaram no corredor, ou melhor, ela é quem o derrubou no tapete da porta do lavabo...

A madrugada alongou-se prazerosamente.