quarta-feira, 7 de março de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VIII - CAPÍTULO 1


       Mais um dia de nuvens carregadas, acima de qualquer suspeita, na varanda, lavada pela chuva torrencial do dia anterior, embora as folhas de inúmeras espécies ainda atapetassem boa parte do piso, testemunhando a queda, o descontrole normal da natureza indomável, esquadrinhando o que, dois dias antes, fora absolutamente ensolarado, sem uma nuvem sequer, o que levava muita gente a fleuma preguiçosa da contemplação...

Porém, muitos desses poetas fictícios não puderam escrever uma linha sequer, porque, dois dias antes, preocupados, neste mesmo dia sufocantemente ensolarado que brilhou nos confins desta Roraima sem lei, como tudo no Brasil, sáfaro, inconcluso, aquele dia elegantemente azul descortinava muita chuva no porvir...

       O que podia ser discutido...

       Evidentemente...

       Dependendo do foco que se quer dar...

       E, principalmente, dependendo da lente que capta o momento adequado, no quadrante certo...

       O fato é que havia muito a ser feito antes da chuva...

       Mas o que era isso tudo?

       Um telefonema no dia da chuva, com a barulheira da água caindo através das calhas antigas, deixara Armando Paglia de sobreaviso...

       O General Leopoldo Barreiros, Comandante-em-Chefe da Amazônia, chegaria hoje para cumprir uma série de compromissos burocráticos...

       O quartel do 7º Pelotão Especial de Fronteira precisava se preparar para a ilustre visita.

       Mas não havia muito que mudar...

       Tudo estava como dantes no quartel do Paglia.

       A comitiva chegou de helicóptero...

       Aliás, dois helicópteros...

       Ajudantes de ordens, secretários, oficiais de ligação, um ou dois engravatados...

       Dizia-se que não se queria fazer muito alarde da presença dos militares em Uiramutã...

       Enfim...

       Dois helicópteros bastavam. Havia pouca gente.

       O General seguiu diretamente para a sala particular do Coronel Paglia, juntamente com seu ajudante de ordens, o Major Alécio Pessanha, e um oficial ligado diretamente ao Estado-Maior do Exército em Manaus, o Tenente-Coronel Ricardo Guimarães Ceddric.

       Os três importantes oficiais ficaram impressionadíssimos com a decoração daquela saleta rústica, a moda de cabana amazônica, apesar de alguns quadrinhos típicos, com soldados e turmas de oficiais, mais familiares, porquanto tudo ali naquele ambiente lembrava a nossa querida Amazônia amada quase escorrendo pelos nossos dedos, amém.

       E não havia nada de mais...

       Uma decoração realmente singela.

       Esta foi a primeira frase proferida pela boca de Paglia, ao experenciar o deslumbre da simplicidade simpática das expressões daqueles homens importantes diante da salinha...

       Mas fora dado um toque de Paglia na confecção de cuja sala...

       Um dos orgulhos dele, embora Armando, como bom cristão, convicto, amando sua família antes de qualquer coisa, e Deus acima de todas as outras, depois vindo o Exército do Brasil, aí sim, em terceiro lugar, finalmente, vindo sua esposa e filhos, e netos, que só possuía um até agora, ele compreendesse que este não fosse o tipo de sentimento que o bom cristão deveria experimentar...

       Bom.

       – Que salinha simpática esta sua, Coronel – avaliou Barreiros, o que já sabíamos, mas alegrou Armando sobremaneira, aliás, deixando a todos como que “em casa”.

       – Obrigado, Senhor – disse Paglia, sorrindo de lóbulo a lóbulo; duas orelhas que não eram, assim, tão pequenas que alguém deixasse de perceber, apesar das sardas daquele homem quase pálido.

       – Mas é verdade, Paglia – concordou Ricardo Guimarães Ceddric muito naturalmente. – Muito jeitosinha mesmo! – completou, entusiasmado, o que fez com que Alécio Pessanha supusesse um exagero, o que não nos interessa conferir neste instante.

       – Mas então, General... – volveu Paglia, muito cordialmente. – A que devo esta honra inusitada...

       – Caríssimo Paglia...

       – Permita-me cortá-lo, Senhor, para acrescentar que o Senhor sempre foi um modelo para mim...

       – Mas o que é isso, Coronel – retrucou Barreiros, corado como um tomate fresco.

       – É a pura verdade, Senhor!

       – Muito obrigado, Paglia. De coração... Infelizmente as coisas não andam tão boas para nós em Brasília, Coronel...

       – É mesmo, Senhor? – toda a cordialidade extemporânea cedeu vez à preocupação repentina, íntima, de quem carrega carrapatos na corrente sanguínea.

       – É...

       – Deixe-me ver se eu adivinho, General... O mal estar, por um acaso, está ligado aos últimos acontecimentos na Raposa Serra do Sol? – Quase se poderia dizer que o general Leopoldo Barreiros tentara sorrir, embora a verdadeira máscara denunciasse limão azedo. – Acertei, certo?

       – Pois é, Coronel... – disse Barreiros. – Na mosca.

       – Vejo que a situação é mesmo séria... – continuou Paglia. – E não poderia ser diferente...

       – Guimarães... – volveu Barreiros, cortante. – Explique ao Coronel Paglia o que exatamente o Comando-Maior quer que façamos...

       O Tenente-Coronel Ricardo Guimarães Ceddric, um homem quase esbelto, moreno, alto, um ar de mosqueteiro gascão, se não fosse um pequeno defeito na perna esquerda, que o fazia manquitolar ligeiramente, ainda que ele tentasse disfarçar, tarefa impossível para um observador atento. Tal seqüela, ele adquirira num treinamento de paraquedismo, o que lhe cortara a brilhante carreira pela metade.

O Tenente-Coronel acendera um daqueles cigarros que só os caboclos amazônicos apreciam, ficando por alguns segundos atrás de um cinzeiro, mudo, quase em pânico, cinza despencando, até que Paglia arrumou algo para ele que não se parecia bem com um objeto desejado, mas serviu: um copo de geléia de mocotó antiga da Imbasa, que não existe mais, como a dignidade pública.

       – Bem, Coronel Paglia – encetou Ceddric. – Conforme é do conhecimento de todos, a chacina que ocorreu aqui ficou marcada no mundo todo como mais uma demonstração de que o poder público brasileiro não sabe lidar com a questão dos índios, e, pior, que a questão ecológica no Brasil é uma tragédia monumental...

       – Esses gringos são engraçados! – chiou Paglia, patrioticamente. – Até parece que eles nunca cometeram essas loucuras em outros tempos!

       – Calma, Paglia – ralhou Barreiros. – Escute...

       – Isto está obrigando o governo brasileiro a tomar uma atitude... – tentou continuar Ceddric, antes de ser interrompido mais uma vez por Paglia.

       – Até que enfim! – Barreiros fez um gesto de advertência. Paglia sossegou. Ceddric continuou.

       – Para piorar A NOSSA SITUAÇÃO... – o Tenente-Coronel realçou esta passagem. – Muitos dos indígenas inseridos neste contexto protestaram contra o tratamento dispensado a eles pelo EXÉRCITO...

       Todos emudeceram...

       Mas Paglia falou primeiro:

       – Mas nós nunca destratamos os índios!... Nem mesmo os mestiços!... Que absurdo é este?!

       – É o que está circulando em Brasília – pontuou Barreiros.

       – E no mundo todo – completou o próprio Ceddric.

       – Sei – volveu Paglia não muito satisfeito da vida, ao contrário. – E o que nós temos de fazer?

       – A questão é até muito simples do ponto de vista operacional – continuou Ceddric. – O 7º PEF terá de ficar na geladeira durante alguns dias, quiçá uns meses...

       – Mas como?! Isso será...

       Ceddric o interrompeu:

       – A região não ficará desprotegida, uma vez que a Polícia Federal aumentou seus efetivos nesta área com a vinda, inclusive, de forças de outros estados, e fará um policiamento ostensivo até a região de fronteira com a Venezuela e a República da Guiana... É o que ficou resolvido em Brasília, no Ministério da Defesa, até que a poeira abaixe em torno deste assunto...

       – Mas Coronel... General...

       – Entretanto... – continuou Barreiros. – A minha vinda a esta unidade tem como prioridade o planejamento de uma missão secreta...

       Armando Paglia parou boquiaberto...

       Barreiros sorriu...

       – Exatamente, Paglia – disse ele. – Quantos homens do S-2 nós ainda temos trabalhando aqui?

       – Depois daquele lamentável acidente com os nossos homens, General... – respondeu Paglia cheio de dedos.

       – Não vamos discutir este assunto agora, Coronel – volveu Barreiros, brandamente. – A PF também está investigando o caso...

       – Está?!

       – Não se assuste, Paglia. Eles são competentes para este tipo de coisa...

       – Eu sei...

       – Vamos ao que importa, Paglia...

       – Quais são os homens que podemos contar? – perguntou Ceddric. Até então o Major Pessanha não falara nada, mas prestava uma atenção!

       Alécio Pessanha assemelhava-se com o Brucutu dos quadrinhos: grande, peludo, cara de macaco, e um ar aparvalhado, mas que sabia reagir como um dínamo se a situação assim o exigisse.

       Isso de parecer, na verdade, com uma personagem dos quadrinhos, era um elogio, porquanto na sua unidade de origem, em Porto Alegre, entre seus confrades, eles só o chamavam de “homem das cavernas”.

       Mas Pessanha era um sujeito divertido entre família.

       – Temos dois – respondeu Paglia sem rebuços. – Aliás, um homem e uma mulher...

       Barreiros e Ceddric entreolharam-se admirados.

Uma vez tendo entrado num acordo tácito, porém silencioso, Ceddric concordou:

– OK. Traga-os para nós.

       – Na verdade ela é uma das melhores especialistas – acrescentou Paglia. – É a Primeiro Tenente Nascimento.

       – Convoque-os imediatamente para uma reunião aqui, Coronel – reforçou Barreiros.

       – Perfeitamente, Senhor...

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