segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE XI - CAPÍTULO 4 - PARTE 1


Dois helicópteros da polícia civil sobrevoavam o espaço aéreo da favela desde muito cedo naquela manhã azul...

Parecia feriado no Morro da Mangueira. Ninguém descia para a escola, e aqueles que tencionavam sair para trabalhar, driblavam o medo, porque emprego não era uma coisa fácil de conseguir hoje em dia...

O aparato policial militar, conforme Mouzon garantira, era enorme...

O tiroteio começara imediatamente depois do início da ocupação nos arredores da Mangueira, entre os traficantes de guarda e vários batalhões da Polícia Militar, que tomaram a dianteira, seguidos de perto por grupos da Polícia Civil e da Federal...

O exército também mandara uma unidade.

Entrementes, no âmbito do setor de comando da operação, Mouzon apresentava Moffato a Felipe. 

– Ubiratan Moffato, chefe do setor investigativo sobre atividades financeiras ilegais da ABIN... – disse Mouzon, impessoalmente falando. Felipe cumprimentou-o sem nenhum entusiasmo, talvez precavido pelo parceiro, embora demonstrasse uma educação irrepreensível. – Tenha cuidado com ele, Felipe – volveu o delegado jocoso, mas não disfarçando certa ironia atroz. – Eu não confio um centavo nesse homem...

– Engraçado você dizer isso – retrucou Moffato com o mesmo espírito, segredando a Felipe logo em seguida: – Eu também não gostei dele desde o início.

Todos se riram deliciosamente falsos, porque ambos falaram a verdade brincando...

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE XI - CAPÍTULO 3 - PARTE 3


– Temos? – redarguiu Felipe.

– Claro!... Pode trocar esse babydol charmosinho, rapaz... Nestor Amarilla fugiu da sede da Polícia Federal de Boa Vista...

Felipe abriu uns olhos enormes, que o próprio Mouzon jamais os julgou tão grandes.

– Você nem desconfia quem está por trás deste personagem, o Amarilla... – continuou Mouzon em tom sherlockiano.

Felipe fitou-o como quem diz: “e daí?”

Mouzon deu uma pincelada a jato:

– CIA.

Felipe deixou cair o queixo.

Mouzon continuou:

– É... Na realidade ele é um agente duplo, embora haja muita incerteza sobre o verdadeiro patrão dele...

– Ele não é um agente da CIA?

– Eis a grande incógnita da equação, Felipe... Mas de qualquer forma ele é muito importante pra nós, talvez seja o nosso elo nessa merda toda, percebe?... Ele disse uma série de mentiras pra confundir-nos, mas uma coisa em particular me deixou encafifado...

– E aí você concluiu que ele estava aqui no Rio de Janeiro?

– Na mosca.

– Onde o safado está escondido?

– Favela da Mangueira, protegido pelos traficantes...

– Que filho da puta! Isso prova as conexões do tráfico com essa merda na Raposa Serra do Sol...

– Exatamente...

– Ótimo. Nós vamos invadir a favela, então?

– “Nós”, não. Um verdadeiro exército já está de prontidão. “Nós” seremos apenas observadores...

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE XI - CAPÍTULO 3 - PARTE 2


Felipe não sabia fazer café como a esposa. Ele disse isso a Mouzon, aliás, Flávia também não sabia fazer porra nenhuma! Mouzon perguntou por ela, mas quando viu que Felipe calou-se alguns segundos a mais do que devia, ele desistiu de querer saber a resposta.

Os dois beberam aquele café elétrico ralinho durante alguns intermináveis segundos de silêncio absoluto...

Algum galo cacarejou à distância...

Uma buzina escancarada – por incrível que pareça! – passou aterrorizando as redondezas, mas ninguém podia calá-la, nem mesmo a Lei e a Desordem...

O sol vinha nascendo, iluminando tudinho, e já se podiam visualizar os primeiros contornos das montanhas que se espreitavam da copa do apartamento de bom gosto de Felipe Corrientes.

O Primeiro-Tenente do Exército tentou contar tudo o que estava acontecendo, mas Mouzon interrompeu-o sem cerimônia, tirando-o de uma situação constrangedora:

– A parte que toca a sua vida pessoal, Felipe, não cabe explicação... – disse o experiente Mouzon, com o olhar voltado para baixo, contemplando a xicrinha vazia, melada de açúcar, toda decorada com motivos chineses, mas genuinamente espanhola.

– Mas a minha vida pessoal é justamente o que mais me motiva...

Mouzon sorriu um sorriso terno, sem restrições de caráter moral, mudando de assunto:

– Nós voltamos a Uiramutã depois da chacina... – volveu ele, cuidadoso.

– O que vocês descobriram? – perguntou Felipe, agradecendo-lhe no seu íntimo, mas deixando entrever que ele fazia força para manter certa compostura.

– Os traficantes – ou quem quer que tenha feito o trabalho – usaram mísseis de uso exclusivo das forças armadas da Venezuela...

– Isso te espanta?

Mouzon riu outra vez, melancolicamente, emendando:

– Claro que não...

Outro silêncio...

Mais goles de café ralo...

E Mouzon, sem subterfúgios, querendo animar o companheiro:

– Temos uma missão pela frente...

terça-feira, 14 de agosto de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE XI - CAPÍTULO 3 - PARTE 1


Aquele som intermitente despertou-o sobressaltado no meio da manhã...

Que manhã?...

Ainda estava escuro...

Naquele quarto escuro...

Bom, Felipe saltou da cama alarmado...

Ainda não havia amanhecido, mas o sinal continuou...

Um sinal?...

Que sinal?...

Não, não, um tambor...

Que tambor o quê, ô!...

Aquilo não era tambor, o tambor estava na sua cabeça, aquilo era a campainha!...

Felipe correu para atender a porta...

Mas deteve-se a tempo...

Não... Ninguém ia subir sem a autorização do porteiro do dia...

Ou da noite?...

Tanto fazia.

Felipe despertou meio que no tranco...

A campainha?...

Não era a campainha, mas o interfone...

– Pronto – disse Felipe meio mal humorado. – O que houve?

“Desculpe interrompê-lo de madrugada, seu Felipe, mas é que tem um delegado aqui embaixo doido pra falar com o senhor” – falou o porteiro através do aparelho.

– Um delegado?! – Felipe, naturalmente, estranhou, esquecendo sua dor momentaneamente, e esquecendo-se, inclusive, que não dormira a maldita da noite toda, mas aí o próprio “delegado” pegou o interfone e disse:

“Desculpa te acordar, Felipe, numa hora dessas... É o Mouzon. Tenho algo pra você”...

– Sobe logo, Mouzon...

sábado, 11 de agosto de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE XI - CAPÍTULO 2


– Você não vai pagar nada, Flávia! Até porque quem paga a porra toda aqui nesta merda sou eu!... Pode almoçar em paz, e depois vai badalar com suas amiguinhas ocas, vai...

A irritação de Flávia foi crescendo, e ela quase se engasgou:

– O que você está insinuando, hem?!

– Nada! – respondeu ele irônico. – Eu não insinuei, disse a verdade. Mesmo que eu insinuasse alguma coisa você não ia entender mesmo! E se entendesse, ia cagar solenemente!... Sabe porque, “Flavinha”?... Porque você está cagando pro mundo!... O que lhe importa que nós nos encontremos na maior encruzilhada da história?... Veja que eu ainda incluo você no mesmo barco que eu, porque, na verdade, parece que você vive numa realidade paralela, que não pode ser tocada pela mesma qu’eu vivo!...

– O que está acontecendo com você, hem, Felipe? Brigou com a namoradinha do quartel?

Flávia não teve a intenção de atingir Felipe no seu ponto mais vulnerável, até porque ela nem imaginava que Celha Regina existisse. Ou melhor, que algum dia tivesse existido. Na verdade ela não fazia nenhuma idéia do que se passava no dia-a-dia do marido. Acontece que ela ficara realmente furiosa com aquela casmurrice que julgava absurda, fora de hora. Tratava-se de uma mulher carinhosa, sem dúvida alguma, quando solicitada; prestativa na medida do possível, porquanto abominasse qualquer coisa relativa à casa, no sentido doméstico do termo, mas em se tratando de perceber aquilo que estava fora do seu universo microscópico, era a cidadã mais distraída do mundo, uma distração que cheirava a indiferença. Talvez não fosse uma coisa premeditada, mas com certeza alienação em seu mais alto grau.

 Numa circunstância normal a provocação de Flávia faria Felipe sorrir, porém, em virtude dos últimos acontecimentos trágicos passados em Roraima, ele perdeu a linha...

– Sabe de uma coisa, Miss Frivolidade? A sua vidinha mais ou menos pouco importa pra mim também... Neste mundo caótico, onde reina a insegurança, o desrespeito mútuo, a alienação em todas as suas formas, onde o hediondo é diversão de muitos, e a solidariedade atributo de poucos, onde cada um de nós é um boneco descartável, o que mais posso esperar?... O melhor que você faz, dentro das atuais circunstâncias, é desfilar esta beleza de barro por aí... “Mas cuidado com a chuva, meu bem” – acrescentou, imitando uma perua caricata. “– Ela pode estragar sua maquiagem”...

Tudo ficou em silêncio depois do ataque furibundo de Felipe.

Flávia engoliu as palavras de resposta, limitando-se a se trancar no banheiro...

Chorou durante horas.

Felipe não se incomodou com ela...

Voltou a sua cova no Monte Calvo.

Flávia saiu logo depois...

E não voltaria mais naquele dia...

Felipe não se importou.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE XI - CAPÍTULO 2


Compadecendo-se do maridão chateadão, ela não se importou mais nem com a toalha nem com sua nudez maravilhosamente bela, e entregou-se às carícias possíveis naquela que era uma atmosfera um tanto quanto mórbida. Pouco faltava para que alguém dissesse “meus pêsames”.

Felipe explodiu pela primeira vez:

– Me deixa em paz, Flávia, pelo amor de Deus!

– Eu é que invoco o nome de Deus, ué!... Você não quer me dizer o que está acontecendo?...

Um “NÃO” mais audível, que soou severo, encerrou aquela primeira tentativa de comunicação.

Ela foi cuidar da sua vida, afinal tinha que se arrumar, almoçar, porque iria ao shopping encontrar algumas amigas...

O tempo passou, Flávia estava comendo, com um apetite tremendo, quando viu o marido passar por si como assombração ligeira, indo direto ao banheiro...

Ele ia voltando para o quarto quando ela o convocou:

– Vem comer, Bem, porque tá quentinho, gostoso...

Felipe girou sobre os próprios calcanhares combalidos, e, de facto, dirigiu-se à cozinha, mas preferiu uma cerveja gelada que encontrara perdida, como ele, no fundo da geladeira, esta que em geral era reservada somente aos seus convidados, porque dificilmente Felipe bebia.

– Isto vai lhe fazer mal, meu amor... – admiração, logo contornada por outra garfada feliz. – Porque você não come com sua mulherzinha?... – Desta vez a apreensão era verdadeira: – Felipe, eu sou capaz de jurar que alguma coisa não anda bem, Amor!...

– Você é até capaz de perceber alguma coisa de errado em mim, Flávia...

Felipe fora propositadamente ácido, mas não parou por aí:

– O que se torna impossível pra você é pensar que existe vida inteligente em outros planetas...

Ela não gostou:
– Pó pará! – retrucou ela algo indignada, parando de mastigar. – Só porque você acordou de mau humor, eu é que vou pagar o pato?!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE XI - CAPÍTULO 2


Apesar de ver a porta do quarto fechada, exatamente como a deixara ao sair, ela preferiu ir direto para um banho quente e relaxante...

Cumpriu todo o ritual a que já se habituara desde que tomou ciência da beleza de seus primeiros passos em direção ao espelho...

E a porta de seu quarto continuava trancada, silenciosa, absolutamente sem vestígios de pegadas.

Tomou banho tranqüilamente, como uma sereia que espera sua vítima, e quando saiu do banheiro, enrolada na toalha vermelha sanguínea, foi até a porta e bateu suavemente...

Não obteve resposta e insistiu com mais força...

Como nenhum “ai” viesse lá de dentro, ela torceu a maçaneta e entrou rompendo a penumbra eterna...

Felipe continuava lá, deitado, olhando pro teto, sem reflexos de estrelinhas ou nuvenzinhas mentirosas...

Flávia não se conformou:

– Mas o que está acontecendo com você, meu amor?...

Nenhuma resposta viva.

Ela insistiu:

– Você está doente?

Recebeu um não lacônico soprado com sofreguidão, então repetiu:

– Hem, meu amor?...

O volume a seguir pouco se alterou.

E ela insistiu, cumprindo o que fazia parte do seu papel como esposa:

– Você tem certeza que está tudo bem, Felipe?

– Se eu tivesse certeza de alguma coisa na minha vida... – retrucou ele com um humor melancólico – não estaria neste estado, Flávia.