Ela não sabia muito
bem o que escrever naquele dia, embora tentasse depois de umas duas xícaras de
café solúvel, porque não havia pó naquele momento na empresa. Uma questão de
descuido regular, próprio das mentes feéricas que pensam o mundo.
Na realidade havia
muito pouca gente na redação da Sweetwaters naquela hora. Todos estavam
empenhados na busca de notícias atualizadíssimas acerca da nossa conturbada
reserva Raposa Serra do Sol.
Eu também me achava
meio oco por dentro. Sabe aquela coisa de desertos e terras ásperas como
metáforas para pouca ou nenhuma inspiração literária...
Nós nos olhávamos,
Wirna e eu, como dois desconhecidos obrigados a se sentar lado a lado num
consultório médico, uma coisa que me oprimia um pouco às vezes, mas que era
quase inevitável...
O fato é que nem
mesmo um computador quântico, com ligação direta à máquina de fabricar idéias,
estrelas, abstrações, poderia tirar o zero do placar...
Olhávamos nossos
laptops como duas crianças que contemplam um brinquedo novo, cujo significado
permanece obscuro por longo tempo, antes que ganhe vida num folguedo qualquer...
Eu esticara os pés
bem calçados por cima da mesa da nossa sala a fim de visualizar melhor o que
não fazíamos, embora soubesse muito bem que Wirna, a chefona da tribo, apesar
de nossa intimidade extrapolar aquelas paredes, não gostasse nada nada desse
afrouxamento dos costumes austeros num ambiente de trabalho, como levar o dedo
ao nariz por exemplo, próprio de uma boa germânica da boa cepa, com educação
prussiana e tudo...
Mas eu vivia subvertendo
a ordem preestabelecida...
E continuamos lá,
nosso diálogo mudo com laptops inexpressivos...
Olhava pra todos os
lados, menos pra onde devia...
O trabalho.
Ach Gott! Eu não
podia falar nada dele, pois estava no mesmo barco, como eles costumam se
expressar.
Que preguiça era
essa que tomava todo o meu corpo de assalto? Eu a chamaria “doença dos
trópicos”. Creio já ter ouvido isto em algum lugar...
Estávamos os dois
como que paralisados, como se uma descarga elétrica monumental, como numa
daquelas tempestades tropicais típicas, tivesse caído sobre nós...
O pior é que ele
cismou, naquele momento de ócio, em colocar os pés sobre a mesa, coisa que ele
sabia que eu detestava!
Mas, nossa, eu não
podia fazer com que o Celso esquecesse suas raízes completamente. Ele já
procurava se anular tanto por minha causa!
Fechei o laptop e
encarei Celso...
Disse:
– Temos de mandar alguém
a Boa Vista amanhã.
Ele fez o mesmo e
retrucou:
– Eu sei.
– O conflito generalizado
está prestes a explodir.
Celso olhou a sua
volta como que procurando por ouvidos indiscretos, mas a nossa sala era isolada
do restante da sede e praticamente a prova de som.
– Porque não vamos
nós mesmos?
– Há coisas que
tenho de resolver por aqui...
– Tipo...
– Segurança.
– Como assim segurança?!
Nós não temos nenhuma no Rio de Janeiro. A menos que...
– Eu quero dizer a
segurança interna do nosso projeto.
– Ah, bem! Porque,
Segurança, com letra maiúscula, aquela que todo cidadão paga pra ter, essa pode
esquecer! Além do mais, a suposta insegurança que todos nós temos de conviver
diariamente nas grandes cidades serve justamente de cortina de fumaça...
– É isto mesmo. A
fumaça não pode baixar. Temos que ajustar algumas peças antes do golpe final.
– Então um de nós
apenas irá?
– Você Celso. Eu
sou mais importante aqui no Rio agora. Podemos cobrir os desdobramentos de toda
a confusão que ocorre lá na Amazônia entre a intelectualidade dos grandes
centros urbanos, ao mesmo tempo alimentando a mídia com novas informações a
cada dia.
– Mas isso qualquer
um pode fazer, Wirna.
– Não senhor,
Celso. Eu preciso de alguém da minha inteira confiança no local. É uma questão
de segurança interna, como já disse antes. Segurança no acesso à informação
limpa, entende?
– Completamente.
– Estão acontecendo
coisas na Amazônia que até Deus duvida! Os interesses capitalistas estão a um
passo de transformar a floresta em pó! A despeito de toda a propaganda negativa
que nós e a imprensa fornecemos há décadas!
– E a despeito de
todos os pseudoprogramas de governo também.
– Sim. Também.
– Wirna, cá entre
nós. Sinceramente. Você acredita que a humanidade organizada poderá deter o
processo de degradação da Amazônia?
Demorei alguns
instantes para dar uma resposta fatídica. Mas nem precisava! O Celso, claro, já
sabia o que eu ia dizer. Nós nos conhecíamos há mais de dez anos, trabalhando
juntos aqui na Sweetwaters diuturnamente, viajando pra todo lado em dupla, e
nos relacionando intimamente há pelo menos a metade disto. Não havia segredos
entre nós...
Nenhum.
Compartilhávamos
tudo...
Absolutamente tudo...
De bom e de ruim.
Acrescentei,
desanimada:
– Infelizmente os
interesses do capitalismo extrapolam o fator humano. A vida toda foi assim.
Esse negócio de dizerem que nós ultrapassamos a fase do capitalismo selvagem é
pura balela. A sede do capitalismo, das grandes corporações, trustes,
conglomerados financeiros, é insaciável. O capitalismo é e sempre será
selvagem.
– Então porque
estamos lutando?
– Porque o ser
humano sempre se apoiará numa mísera palha pra não se afogar. Veja isto como
instinto de sobrevivência se quiser; os mais materialistas, pelo menos, pensam
assim; os espiritualistas encaram isto como uma questão de fé, otimismo, mas a
essência do capitalismo nunca mudou: a exploração do lucro onde houver. É
inevitável.
– Estamos fadados à
autodestruição.
– Talvez. Quem pode
prever? Algumas décadas atrás a maioria dos intelectuais de todo o mundo
achavam que nós nos destruiríamos numa guerra nuclear, e isto não aconteceu,
embora ainda não estejamos livres deste pesadelo. Sempre encontraremos um meio
de sobreviver...
– Mas se não houver
água, por exemplo...
Agora quem olhou ao
redor, em pânico, fui eu. Este era um tema tabu entre toda a comunidade
ecologicamente correta. Havia muitas controvérsias no que tange ao certo e
errado na forma de lidar com a questão da água. Poucos convergiam neste
particular. A única coisa que se tinha certeza era o óbvio...
– Que ninguém nos
ouça – acrescentei – mas se a água faltar, aí não haverá nem mesmo uma palha
para nos segurar.
– É o fim desta
civilização de tantos altos e baixos.
– Mais baixos do
que altos.
– E o que
acontecerá depois?
– Só Deus sabe;
literalmente.
– Será que o Dono do
Mundo também sabe disso?
– Quem é o Dono do
Mundo? Você sabe?
– Nós trabalhamos
pra ele...
Soltei uma sonora
gargalhada. O Celso, como todo brasileiro em geral, esbanjava bom humor. E era
muito inteligente também. Aliás, como todo brasileiro, o Celso era um
sobrevivente. Quer dizer, ele já podia ser considerado uma pessoa nos padrões
europeus, tanto no seu pensamento, quanto nos hábitos civilizados, mas ainda
carregava aquele DNA tipicamente tupiniquim.
Continuei o meu
discurso:
– Será que o Dono do
Mundo é humano?
– Sabe, Wirna, isso
é o que eu vivo me perguntando...
– E qual foi a
conclusão a que você chegou?
– É impossível a
uma mente humana responder a esta pergunta.
– Então, Senhor
Sabichão, trate de arrumar as suas coisas, pois o senhor embarca para a Região
Norte ainda esta semana...
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