quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE III, CAPÍTULO 2


Ela não sabia muito bem o que escrever naquele dia, embora tentasse depois de umas duas xícaras de café solúvel, porque não havia pó naquele momento na empresa. Uma questão de descuido regular, próprio das mentes feéricas que pensam o mundo.

Na realidade havia muito pouca gente na redação da Sweetwaters naquela hora. Todos estavam empenhados na busca de notícias atualizadíssimas acerca da nossa conturbada reserva Raposa Serra do Sol.

Eu também me achava meio oco por dentro. Sabe aquela coisa de desertos e terras ásperas como metáforas para pouca ou nenhuma inspiração literária...

Nós nos olhávamos, Wirna e eu, como dois desconhecidos obrigados a se sentar lado a lado num consultório médico, uma coisa que me oprimia um pouco às vezes, mas que era quase inevitável...

O fato é que nem mesmo um computador quântico, com ligação direta à máquina de fabricar idéias, estrelas, abstrações, poderia tirar o zero do placar...

Olhávamos nossos laptops como duas crianças que contemplam um brinquedo novo, cujo significado permanece obscuro por longo tempo, antes que ganhe vida num folguedo qualquer...

Eu esticara os pés bem calçados por cima da mesa da nossa sala a fim de visualizar melhor o que não fazíamos, embora soubesse muito bem que Wirna, a chefona da tribo, apesar de nossa intimidade extrapolar aquelas paredes, não gostasse nada nada desse afrouxamento dos costumes austeros num ambiente de trabalho, como levar o dedo ao nariz por exemplo, próprio de uma boa germânica da boa cepa, com educação prussiana e tudo...

Mas eu vivia subvertendo a ordem preestabelecida...

E continuamos lá, nosso diálogo mudo com laptops inexpressivos...

Olhava pra todos os lados, menos pra onde devia...

O trabalho.

Ach Gott! Eu não podia falar nada dele, pois estava no mesmo barco, como eles costumam se expressar.

Que preguiça era essa que tomava todo o meu corpo de assalto? Eu a chamaria “doença dos trópicos”. Creio já ter ouvido isto em algum lugar...

Estávamos os dois como que paralisados, como se uma descarga elétrica monumental, como numa daquelas tempestades tropicais típicas, tivesse caído sobre nós...

O pior é que ele cismou, naquele momento de ócio, em colocar os pés sobre a mesa, coisa que ele sabia que eu detestava!

Mas, nossa, eu não podia fazer com que o Celso esquecesse suas raízes completamente. Ele já procurava se anular tanto por minha causa!

Fechei o laptop e encarei Celso...

Disse:

– Temos de mandar alguém a Boa Vista amanhã.

Ele fez o mesmo e retrucou:

– Eu sei.

– O conflito generalizado está prestes a explodir.

Celso olhou a sua volta como que procurando por ouvidos indiscretos, mas a nossa sala era isolada do restante da sede e praticamente a prova de som.

– Porque não vamos nós mesmos?

– Há coisas que tenho de resolver por aqui...

– Tipo...

– Segurança.

– Como assim segurança?! Nós não temos nenhuma no Rio de Janeiro. A menos que...

– Eu quero dizer a segurança interna do nosso projeto.

– Ah, bem! Porque, Segurança, com letra maiúscula, aquela que todo cidadão paga pra ter, essa pode esquecer! Além do mais, a suposta insegurança que todos nós temos de conviver diariamente nas grandes cidades serve justamente de cortina de fumaça...

– É isto mesmo. A fumaça não pode baixar. Temos que ajustar algumas peças antes do golpe final.

– Então um de nós apenas irá?

– Você Celso. Eu sou mais importante aqui no Rio agora. Podemos cobrir os desdobramentos de toda a confusão que ocorre lá na Amazônia entre a intelectualidade dos grandes centros urbanos, ao mesmo tempo alimentando a mídia com novas informações a cada dia.

– Mas isso qualquer um pode fazer, Wirna.

– Não senhor, Celso. Eu preciso de alguém da minha inteira confiança no local. É uma questão de segurança interna, como já disse antes. Segurança no acesso à informação limpa, entende?

– Completamente.

– Estão acontecendo coisas na Amazônia que até Deus duvida! Os interesses capitalistas estão a um passo de transformar a floresta em pó! A despeito de toda a propaganda negativa que nós e a imprensa fornecemos há décadas!

– E a despeito de todos os pseudoprogramas de governo também.

– Sim. Também.

– Wirna, cá entre nós. Sinceramente. Você acredita que a humanidade organizada poderá deter o processo de degradação da Amazônia?

Demorei alguns instantes para dar uma resposta fatídica. Mas nem precisava! O Celso, claro, já sabia o que eu ia dizer. Nós nos conhecíamos há mais de dez anos, trabalhando juntos aqui na Sweetwaters diuturnamente, viajando pra todo lado em dupla, e nos relacionando intimamente há pelo menos a metade disto. Não havia segredos entre nós...

Nenhum.

Compartilhávamos tudo...

Absolutamente tudo...

De bom e de ruim.

Acrescentei, desanimada:

– Infelizmente os interesses do capitalismo extrapolam o fator humano. A vida toda foi assim. Esse negócio de dizerem que nós ultrapassamos a fase do capitalismo selvagem é pura balela. A sede do capitalismo, das grandes corporações, trustes, conglomerados financeiros, é insaciável. O capitalismo é e sempre será selvagem.

– Então porque estamos lutando?

– Porque o ser humano sempre se apoiará numa mísera palha pra não se afogar. Veja isto como instinto de sobrevivência se quiser; os mais materialistas, pelo menos, pensam assim; os espiritualistas encaram isto como uma questão de fé, otimismo, mas a essência do capitalismo nunca mudou: a exploração do lucro onde houver. É inevitável.

– Estamos fadados à autodestruição.

– Talvez. Quem pode prever? Algumas décadas atrás a maioria dos intelectuais de todo o mundo achavam que nós nos destruiríamos numa guerra nuclear, e isto não aconteceu, embora ainda não estejamos livres deste pesadelo. Sempre encontraremos um meio de sobreviver...

– Mas se não houver água, por exemplo...

Agora quem olhou ao redor, em pânico, fui eu. Este era um tema tabu entre toda a comunidade ecologicamente correta. Havia muitas controvérsias no que tange ao certo e errado na forma de lidar com a questão da água. Poucos convergiam neste particular. A única coisa que se tinha certeza era o óbvio...

– Que ninguém nos ouça – acrescentei – mas se a água faltar, aí não haverá nem mesmo uma palha para nos segurar.

– É o fim desta civilização de tantos altos e baixos.

– Mais baixos do que altos.

– E o que acontecerá depois?

– Só Deus sabe; literalmente.

– Será que o Dono do Mundo também sabe disso?

– Quem é o Dono do Mundo? Você sabe?

– Nós trabalhamos pra ele...

Soltei uma sonora gargalhada. O Celso, como todo brasileiro em geral, esbanjava bom humor. E era muito inteligente também. Aliás, como todo brasileiro, o Celso era um sobrevivente. Quer dizer, ele já podia ser considerado uma pessoa nos padrões europeus, tanto no seu pensamento, quanto nos hábitos civilizados, mas ainda carregava aquele DNA tipicamente tupiniquim.

Continuei o meu discurso:

– Será que o Dono do Mundo é humano?

– Sabe, Wirna, isso é o que eu vivo me perguntando...

– E qual foi a conclusão a que você chegou?

– É impossível a uma mente humana responder a esta pergunta.

– Então, Senhor Sabichão, trate de arrumar as suas coisas, pois o senhor embarca para a Região Norte ainda esta semana...

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