quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE III - CAPÍTULO 1


Quando abriu a porta da geladeira... Madrugada adentro, tudo escuro... Que susto danado! Um sanduíche americano, pelo menos parte do que sobrara dele, foi ao chão cuspindo caquinhos de louça colorida pra todo lado...

       Alface, tomate, pasta de atum e queijo amarelo, fatiados e despedaçados, jaziam no chão enladrilhado e frio, como no Alaska...

       Ele ficou ligeiramente preocupado com o sono da esposa nua ainda na cama, adormecida, após uma longa noite de amor como nunca se viu...

       Nooooossa! Que exagero das colunas sociais que levantam páginas e mais páginas de assuntos decididamente inúteis!

       Não foi assim... tão maravilhosamente maravilhoso como pensou um Tigre...

Isso até passava pela cabeça de um homem jovem adulto no auge do seu potencial sexual, mas...

       Definitivamente...

       Realmente?

       Foi muito bom. E ponto final.

       Mas houve dias melhores...

       Outros virão...

       Ele andou até uma poltrona na sala. Tudo escuro. Um frio de rachar na noite carioca, e a mulher lá... no quarto... nua.

       Deu uma espiadela pela porta do quarto entreaberta...

       Ela já havia se coberto.

       Voltou até a sala e espreguiçou-se sobre a poltrona confortável. Não era possível entreverem-se detalhes daquela decoração sui generis, pois estávamos na mais absoluta penumbra noctívaga, mas, se pudéssemos, diríamos que tudo que havia de mais confortável na indústria da decoração de ambientes deveria existir ali...

       Mas ele não se preocupava com nada disso...

       Sua mente vagava a muitos quilômetros de distância do Rio de Janeiro, apesar de estar precisando de uma folguinha como esta, não negava, principalmente depois dos acontecimentos que culminaram na declaração de guerra...

       Não comentara uma linha sequer com Flávia, sua mulher. Ela não precisava saber dos problemas do seu trabalho, até porque ignorava qual o serviço que o marido exercia no exército, e também não se interessava muito por ele por livre e espontânea vontade. Sua vida social era muito mais importante do que a carreira dele, metido no meio da selva amazônica, conforme ela desabafara uma vez com uma amiga...

       Amiga mesmo?

Todos nós temos nossas dúvidas.

Flávia era uma bela representante da classe média alta carioca. Um corpo escultural, jovem, moreno de praia todo dia e ávido por aventuras. Desfilava esta beleza por academias e onde mais fosse requisitada. A vida era uma delícia! Boa para ser vivida e não dramatizada. Odiava más notícias. E odiava tudo o que lhe subtraía deste mundinho da aparência e das pseudovirtudes da sociedade carioca, pois, em sua tosca opinião, a civilização caminhava cada vez mais para o ápice, embora não soubesse especificar do quê...

As preocupações com as desigualdades sociais, as distorções e iniqüidades por trás dos poderes públicos, tudo isto era conversa inútil, que não a levaria a nada!

Já fora assaltada duas vezes, uma delas na porta de casa, quando lhe deixaram apenas com a roupa do corpo, expressão máxima da impotência carioca. Ainda bem! Mas pensa que Flávia se incomodava com isso? Não ‘tava nem aí!

 Não, ela queria muito mais, muito mais do que poderia cogitar sua vã filosofia, as luzes e as passarelas adequavam-se ao seu perfil como a mão para a luva...

As festas desta cidade bandida que um dia ousou maravilhosa, hoje relegada ao descaso público; uma elite insensível e burra que não enxerga um palmo adiante do nariz, e políticos e vassalos inescrupulosos, decadentes, agindo como vampiros sobre o dinheiro público, com a aquiescência de um povo sofrido e bitolado pela prestidigitação da mídia...

Esta a realidade invisível...

No entanto Flávia e suas queridinhas ainda queriam mais!...

       Felipe também...

       Só que numa oitava diferente.

       A gritante realidade que ele respirava tinha outro sabor...

Mais amargo, é verdade, porém, embora Felipe desconfiasse que todo o panorama visto da ponte cheirasse a cadáveres em grande profusão, também se sentia incapaz de perceber todos os sintomas para chegar ao diagnóstico final...  

Sentado na sua poltrona na escuridão da madrugada suada, apesar do frio noturno, chuvoso, tenebroso, Felipe conseguiu esboçar um sorriso...

Subitamente pensou em Celha Regina...

Mas logo em seguida imaginou-a no meio dos chacais comandados por Siboldi, a selva nervosa, coerente e hostil, a persegui-la com seus galhos ameaçadores, exatamente como num conto infantil de terror, e aquele sorriso desapareceu...

Uma vozinha esmaecendo por baixo dos lençóis despertou-o de outro pesadelo...

O vento noturno trouxera estas palavras:

“Meu amor”...

E outras mais se acrescentaram à sinfonia do Monte Calvo...

– Que que ce tá fazendo?

Ele guiou-se através dos becos escuros até seu himeneu penumbroso...

Um corpo bem esculpido agitou-se por baixo do edredom soletrando com dificuldade palavras ainda mais obscuras...

Ainda assim ele pôde compreender...

– Porque você não vem dormir?

– Porque eu perdi o sono...

Flávia levantou-se, como que embriagada, embora não bebesse uma gota de álcool. Sua beleza era estonteante, mesmo descabelada, aqueles cabelos sedosos compridos brilhantes emaranhados...

– Você está tão estranho, Felipe...

– Estou?

– Sério! Desde que você chegou...

– Engraçado...

– Aconteceu alguma coisa lá na Amazônia?

– Não.

Porém esta resposta dizia muito mais do que uma infinidade de livros.

Flávia levantou-se definitivamente para ir ao banheiro...

Toda a poesia ficou suspensa por alguns segundos...

Uma Noite no Monte Calvo...

De novo.

Flávia empurrou-o para cama...

Por um breve momento, Felipe pensou que eles começariam tudo outra vez, mas ela citou um acontecimento banal, uma fofoquinha de academia, e seu espírito rebelou-se...

Felipe deixou-a falando sozinha e dirigiu-se à sala, na cova do Monte Calvo...

– O que aconteceu, Felipe? – perguntou ela penetrando na cova. – Você está muito estranho, Bem...

– É impressão sua, Amor.

– Sabe aquela vaca da Marília?

– Não – volveu ele distante, imune aos ruídos. – Eu não conheço nenhuma das suas amigas – completou com ironia, o que jamais atingiria a insensibilidade social de Flávia.

– Largou o marido pra ficar com um amante vinte anos mais velho do que ela...

– Alguma coisa este “amante vinte anos mais velho do que ela” deve ter que o marido não tinha...

– Duas coisas na verdade. Uma BMW e um Masseratti na garagem.

– E o marido da Marília?

– Tinha um Picasso. Mas ficou só com ele. A Marília foi morar com o Masseratti.

– Isso foi bom pra ela?

– Meu Deus, Felipe, se eu não te conhecesse, diria que você está igual ao marido da Marília!

– Porquê? Eu não tenho um Picasso...

– Não! Mas eu adoro o seu Stylo! – volveu ela com uns olhões arregalados, e acrescentou satisfeita, sorrindo: – É tão bonitinho ele, sabia?

Felipe olhou-a com ternura. Ela não passava de uma criança, como toda a humanidade, pensou num momento de lucidez algo profética.

E o que não era este mundo senão uma imensa creche escola?

Felipe estava inspirado.

Ele caminhou em direção ao lavabo. Flávia seguiu-o, agarrando-o pelas costas, soprando pequenas palavras mutiladas de carinho. Ela gostava do marido, sem dúvida, não o trocaria por um Masseratti, nem por uma BMW, até porque Felipe lhe dava uma vida de rainha, só que adorava a vida carioca muito mais do que imaginava.

Futilidades a parte, os dois se atracaram no corredor, ou melhor, ela é quem o derrubou no tapete da porta do lavabo...

A madrugada alongou-se prazerosamente.

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