quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 2


À medida que os pesados coturnos trituravam as folhas mortas, num faf-faf irregular, átono, um caminho extremamente tortuoso descortinava-se-lhes diante dos olhos súplices...

Eles sabiam que podiam morrer...

E pior... Pra muitos deles... Ficar para sempre numa cadeira de rodas... Babando pela boca passiva sem palavras... Aceitando tudo sem discutir... Tudo imposto sem vontade própria... Sem escolha... Sem poder se mover... Reagir... Tornar-se um inválido inútil inconsequente...  

Os ruídos ameaçadores da floresta, como sussurros fantasmagóricos incontroláveis, causavam uma sensação desagradável, aquecendo-lhes demasiado o estômago frágil...

Sinal de tensão emocional crescente segundo a medicina tradicional chinesa...

A respiração pesada misturava-se ao suor melado da umidade sempiterna...

Os corações acelerados bateram mais rápido ao soar daquele uivo sibilino; mais um dentre tantos chamados desconhecidos...

Sem querer, Celha Regina, que estava atrás de Felipe, mas bem colada a ele, segurou em sua mochila de equipamentos...

Ela parou, assustadíssima, observando aquele ambiente hostil, mesmo para uma pessoa acostumada a ele, enquanto o companheiro prosseguia a sua caminhada, liderando o grupo. Entretanto, ele pararia logo depois, inconscientemente, procurando por Celha, que, presa ao chão ervado, como a prisioneira de uma ratoeira inerme e gigantesca, de onde não há saída, buscava uma resposta a uma pergunta impronunciável...

Seus companheiros, soldados rasos, todos eles descendentes de índios, em menor ou maior grau, acompanhavam este sentimento prépânico, pois eles também tinham medo de morrer...

– O que foi? – perguntou Felipe, estranhando a atitude da amiga, mas é que ele sentira sua ausência espiritual.

– Este lugar me dá arrepios, sabia? – disse ela, olhar atônito, buscando os responsáveis por aquela aquarela sonora, olhando através dos companheiros de armas como se estivesse apenas ela e seu medo.

– Como é possível, Celhinha? – Sussurrou Felipe, apenas para ela ouvir, pois não quis dar crédito aos medos efêmeros que contaminavam a todos. – Nós estamos carecas de circular por aqui.

– Eu sei, mas agora é diferente...

Ela procurava por uma ou várias sombras; não sabia ainda, embora o resultado desta busca viesse logo a seguir, e não era nada concreto, contanto imediato...

– O que pode ser diferente nesta floresta tropical?

– Tantas coisas. Me admiro você esquecer isso.

– Eu não esqueci nada!

– Eu sei.

– O que está acontecendo, Celha?

– Você não desconfia de nada?

– Desconfiar do quê?

– Há algo de errado nesta história.

– Você quer fazer o favor de ir direto ao ponto!

– Não fique agastado comigo. Mas eu estou me sentindo tão... tão... sozinha.

– Sozinha?! Olhe a sua volta...

– Eu sei... Alguém já disse certa vez: “uma solidão infestada de presenças”.

– Você está tão esquisita, Celha! Sabia?

– Porque estou tendo uma sensação desagradável...

– Compreendo... Aquelas coisas de mulher, não é?     

– Não; engano seu. São coisas de ser humano. Ser humano sensível. Ser humano que quer...

– Que quer?

– Você não está percebendo nada mesmo?!

Felipe sentou-se no chão, atapetado de defuntos vegetais, um tanto enfarado...

Tudo isso de certa forma sussurrado...

Os soldados, alguns deles, o imitaram...

Depois do fato consumado ele fez um gesto de assentimento...

Celha, naturalmente, deixou o comando do grupo ao seu dispor...

– Você poderia me esclarecer, que tal? – volveu Felipe, enxugando o suor da testa pintada para a guerra, como manda o figurino indígena, copiado na guerra pelo homem branco vilão.

– Nós não vamos a lugar nenhum... – disse Celha. Felipe fitou-a com uma expressão de quem acabara de ver um saci Pererê. – Vamos voltar e sair desta missão...

– Como assim? Não tô entendendo nada!

– Ah, meu Deus, Felipe, não acredito que você seja tão mongo assim! Você não percebeu que tem alguma coisa errada?!

– Totalmente errada! Eu nunca vi você tão esquisita assim!

– Mas não é comigo, Corrientes! – esta ela disse para que todos pudessem ouvir, impessoal, o que deixou a tropa realmente alerta. – Trata-se desta situação!

– Ah, sim... Eu sei... Claro que percebi – voltaram a sussurrar. – Porque você não me explicou logo de uma vez?

– É o que estou tentando fazer desde o início! É muita coincidência estarmos todos juntos nesta missão, você e o seu desafeto...

– Porém há outras pessoas que não estão ligadas diretamente na picuinha entre eu e o Siboldi... – o gesto abrangente de Felipe incluía toda a tropa.

– Neste momento, em outro ponto da reserva, estão o Siboldi, o Mascarenhas e o Gusmão. Nós fomos separados e mandados por um caminho diferente... As duas facções em conflito.

– Nós não somos exatamente duas facções em conflito, Celha... – ela olhou furibunda para ele. – Está bem! Admito que coincidências assim nunca venham por acaso, mas as ordens foram dadas por Paglia.

– Nenhuma dúvida quanto a isso, mas eu duvido que não fosse coisa do Siboldi nos mandar separar...

– Realmente... Mas o que você quer fazer?

– Vamos sair desta trilha...

– Você quer voltar?! Mas qual a explicação que vamos dar ao Siboldi para descumprir as ordens dele?

– Você tem uma alternativa pra não cairmos na armadilha dele?

– No momento nada me ocorre...

– Vem comigo...

– Mas e estes soldados?!

– Eles farão o que nós dissermos!

– E os comunicadores portáteis?

– Desligue-os. Deixe o resto comigo...

Todo o trajeto já iniciado foi feito ao contrário...

De fato, nenhum dos homens questionou a improvisação...

Eram todos soldados rasos...

Índios!

Para eles tudo não passava disto...

Improvisação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário