quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE IV - CAPÍTULO 1


Tudo se desenrola conforme o curso natural das coisas. Nem um milímetro a mais, nem uma noite a menos; nem um cicio de um grilo tardio, nem o mugido de um macaco noturno, nada que possa alterar o divisor de águas estabelecido pelo ciclo cósmico, insanamente incompreensível para nós, meros mortais bebedores de leite.

       O certo é que a denúncia chegara na quinta-feira ao quartel  do 7º PEF, um dia depois do retorno de Felipe Corrientes à Uiramutã.

       E aí residia o mistério...

       Felipe decerto não encarou o problema por este prisma...

       No início.

       Assim como Celha Regina...

Nenhum dos dois, no momento exato que as ordens foram emitidas, podia imaginar o atalho que o destino impunha a eles, embora também neste caso, nada estivesse predeterminado...

       Nunca está.

Todo o batalhão estava de prontidão, embora nem todos fossem convocados para aquela missão especial.

Felipe, Celha, Mascarenhas, Gusmão e o capitão Siboldi seriam os líderes de um comando escalado para investigar um suposto acampamento de grileiros em plena reserva Raposa Serra do Sol.

À testa do grupo, o não menos conspícuo Ernesto Siboldi teria o encargo de comandar os bravos cavaleiros do século XXI, que não tinham uma triste figura, mas fariam feio o seu trabalho de desbravar as terras invadidas pelos aventureiros da reserva proibida...

Ponto...

Não o final...

Mas o início.

Ora! Quis o destino que os cinco personagens envolvidos numa confusãozinha de esquina estivessem juntinhos nesta missão, ainda sobre o assunto se o destino tem ou não papel preponderante sobre nossas vidas, ou é apenas uma questão cultural...

Judaico-cristã.

Mas, afinal, isto era puro acaso...

Ou não?

Que julguem vocês, meus leitores atentos e perspicazes. Eu faço apenas o papel de relator dos acontecimentos.

Na madrugada da sexta-feira seguiu o batalhão com equipamento completo de combate na selva, dispostos a prender os criminosos e acabar com seu acampamento, caso a denúncia fosse confirmada.

Marcharam pela mata fechada no Município de Uiramutã, local do quartel do 7º PEF, e ponto inicial da missão, porém o planejamento da operação jamais se iludiu quanto a uma coisa: sabia-se que os soldados iriam penetrar muito mais do que se imaginava na reserva, sempre tendo como pano de fundo uma escuridão completa, cinzenta, sujeita às chuvas e/ou trovoadas, isto sem contar os inúmeros perigos da fauna hostil, sacis pererês, curupiras, etc. e tal...

Ah! Esta é uma probabilidade contida em muitas das equações dos matemáticos de plantão, principalmente porquanto numa floresta úmida, água é o que não falta...

Absolutamente!

Enfim, seguiram os atalhos que os levava ao tal do acampamento sem um minuto de trégua, até que o capitão Siboldi deteve-se num determinado ponto do percurso junto com a tropa.

– Bebam um pouco d’água, pessoal – disse Siboldi, impessoal, como manda um comandante bem treinado, encostando-se a uma das árvores reinantes ali, absoluta, impávida, abrindo seu cantil e levando-o a boca, pingando, pingando, e sem ressentimentos, como sói num escorpião venenoso...

Ainda permanecia o estado de expectativa dentre todos os membros do comando, como da beligerância entre Siboldi e Felipe, aquilo não se apagaria assim, de inopino, graças ao espírito de aventura que aquela missão implicava, mas nada transparecia do que estava para acontecer...

E as coisas são assim mesmo...

Imprevisíveis.

Embora três dos integrantes daquele comando soubessem muito bem o que viria a seguir...

Celha, a única mulher residente em todo o 7º PEF, e uma das mais competentes em termos de combate na selva, aprovada e comprovada nos treinamentos exaustivos levados a efeito no próprio PEF, curiosa como toda mulher, apesar do silêncio imposto aos integrantes da missão até aqui, não resistiu por mais tempo, e atacou:

– Bem, Capitão, eu poderia perguntar-lhe o que podemos esperar dos invasores?

Ela já havia bebido o seu quinhão.

– Não, tenente – respondeu Siboldi peremptório, antipático, sáfaro. – A senhora não tem o direito de perguntar nada...

No entanto Mascarenhas não respeitou o silêncio, e, deitado na erva alta do tapete florestal, olhos fitos em algum provável espião oculto na mata, debochou:

– O que podemos esperar de grileiros metidos na selva ilegalmente, Nascimento?

– Chumbo grosso, na certa – imiscuiu-se Felipe, igualmente atento, mas que não tivera nenhuma intenção de corroborar o espírito inamistoso em relação a ela, ou a ele próprio. Neste particular a atenção de Felipe Corrientes não despertara.

– Com certeza! – acrescentou Gusmão, agachado numa das inúmeras árvores que circundavam o ponto onde eles se encontravam. Fuzil em riste. Ele também espreitava.

– Silêncio todo mundo! – volveu Siboldi num tom que não deixava dúvidas em relação à gravidade do momento.

Acabara de se reequipar, e ajeitara seu uniforme, um tanto amarfanhado, com suavidade algo diplomática.

– Vamos... – disse mais uma vez o capitão. – Estamos a poucos metros do acampamento, segundo o mapa que o comandante nos deu. Preparem-se para trocar tiros com aqueles marginais. Eles estão dispostos a tudo para manter sua posição. Vamos nos dividir em dois grupos... – disse, e apontou para uma gigantesca quaresmeira que servia de marco para os soldados. – Ali na frente há dois caminhos distintos... O da direita é o mais longo, mas nos levará às costas dos grileiros, como garantia de que eles não nos escaparão. Corrientes e Nascimento, vocês liderarão este grupo. O outro nos leva direto ao acampamento deles. Eu, Mascarenhas e Gusmão vamos por ele. Alguma dúvida?

Felipe levantou a mão.

– Fala, Corrientes! – disse Siboldi ríspido, porém baixo.

– E se houver correria, fuga precipitada?

– Atirem para matar! Se for possível, só pra imobilizar. Ninguém pode escapar pelos nossos dedos... Entenderam? Nós temos de capturar um infeliz desses a qualquer preço. Temos de interrogá-los...

– Mas isto pode ser uma carnificina, Senhor! Será que as ordens que nos...

– As ordens que nos foram destinadas, Corrientes, dizem que não devemos deixar ninguém escapar! E ordens são para ser cumpridas, não questionadas. Entendeu?

Felipe, claro, tinha compreendido muito bem, entretanto ele perguntava com seus botões até que ponto Siboldi não estaria agindo com autonomia exagerada.

Não cabia a ele responder pelas conseqüências daquela ação talvez calamitosa.

Celha, ao contrário do companheiro, manteve-se calada o tempo todo, após advertência do comandante, observando o interior de cada um dos companheiros. E por dentro ela também fervia de uma excitação algo preocupada. Começava a enxergar naquela missão algo de podre, embora não pudesse prever com exatidão o que estava sendo arquitetado pelo comandante. Não tinha dúvidas em relação a isto, e agora precisaria redobrar sua atenção a cada passo.

Pegou no braço de Felipe, o que indicava que estava pronta para segui-lo até o inferno se fosse preciso, porém aquele toque disse muito mais do que Felipe precisava entender.

Siboldi, Mascarenhas e Gusmão não perderam mais tempo e tomaram o caminho na mata à esquerda. Os demais soldados do seu grupo limitaram-se a segui-los.

Celha e Felipe seguiram pela direita, seguidos pelos outros soldados...

Descerebrados...

Coitados...

Todos aqueles que seguem ordens sem prever as conseqüências...

E sem raciocinar no que estão fazendo.

Isto perpassou a mente de Felipe num átimo...

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