Tudo se desenrola
conforme o curso natural das coisas. Nem um milímetro a mais, nem uma noite a
menos; nem um cicio de um grilo tardio, nem o mugido de um macaco noturno, nada
que possa alterar o divisor de águas estabelecido pelo ciclo cósmico,
insanamente incompreensível para nós, meros mortais bebedores de leite.
O
certo é que a denúncia chegara na quinta-feira ao quartel do 7º PEF, um dia depois do retorno de Felipe
Corrientes à Uiramutã.
E
aí residia o mistério...
Felipe
decerto não encarou o problema por este prisma...
No
início.
Assim
como Celha Regina...
Nenhum dos dois, no
momento exato que as ordens foram emitidas, podia imaginar o atalho que o
destino impunha a eles, embora também neste caso, nada estivesse
predeterminado...
Nunca
está.
Todo o batalhão
estava de prontidão, embora nem todos fossem convocados para aquela missão
especial.
Felipe, Celha,
Mascarenhas, Gusmão e o capitão Siboldi seriam os líderes de um comando
escalado para investigar um suposto acampamento de grileiros em plena reserva
Raposa Serra do Sol.
À testa do grupo, o
não menos conspícuo Ernesto Siboldi teria o encargo de comandar os bravos
cavaleiros do século XXI, que não tinham uma triste figura, mas fariam feio o
seu trabalho de desbravar as terras invadidas pelos aventureiros da reserva
proibida...
Ponto...
Não o final...
Mas o início.
Ora! Quis o destino
que os cinco personagens envolvidos numa confusãozinha de esquina estivessem
juntinhos nesta missão, ainda sobre o assunto se o destino tem ou não papel
preponderante sobre nossas vidas, ou é apenas uma questão cultural...
Judaico-cristã.
Mas, afinal, isto
era puro acaso...
Ou não?
Que julguem vocês,
meus leitores atentos e perspicazes. Eu faço apenas o papel de relator dos
acontecimentos.
Na madrugada da
sexta-feira seguiu o batalhão com equipamento completo de combate na selva,
dispostos a prender os criminosos e acabar com seu acampamento, caso a denúncia
fosse confirmada.
Marcharam pela mata
fechada no Município de Uiramutã, local do quartel do 7º PEF, e ponto inicial
da missão, porém o planejamento da operação jamais se iludiu quanto a uma
coisa: sabia-se que os soldados iriam penetrar muito mais do que se imaginava
na reserva, sempre tendo como pano de fundo uma escuridão completa, cinzenta,
sujeita às chuvas e/ou trovoadas, isto sem contar os inúmeros perigos da fauna
hostil, sacis pererês, curupiras, etc. e tal...
Ah! Esta é uma
probabilidade contida em muitas das equações dos matemáticos de plantão,
principalmente porquanto numa floresta úmida, água é o que não falta...
Absolutamente!
Enfim, seguiram os
atalhos que os levava ao tal do acampamento sem um minuto de trégua, até que o
capitão Siboldi deteve-se num determinado ponto do percurso junto com a tropa.
– Bebam um pouco d’água,
pessoal – disse Siboldi, impessoal, como manda um comandante bem treinado, encostando-se
a uma das árvores reinantes ali, absoluta, impávida, abrindo seu cantil e
levando-o a boca, pingando, pingando, e sem ressentimentos, como sói num
escorpião venenoso...
Ainda permanecia o
estado de expectativa dentre todos os membros do comando, como da beligerância
entre Siboldi e Felipe, aquilo não se apagaria assim, de inopino, graças ao
espírito de aventura que aquela missão implicava, mas nada transparecia do que
estava para acontecer...
E as coisas são
assim mesmo...
Imprevisíveis.
Embora três dos
integrantes daquele comando soubessem muito bem o que viria a seguir...
Celha, a única
mulher residente em todo o 7º PEF, e uma das mais competentes em termos de
combate na selva, aprovada e comprovada nos treinamentos exaustivos levados a
efeito no próprio PEF, curiosa como toda mulher, apesar do silêncio imposto aos
integrantes da missão até aqui, não resistiu por mais tempo, e atacou:
– Bem, Capitão, eu
poderia perguntar-lhe o que podemos esperar dos invasores?
Ela já havia bebido
o seu quinhão.
– Não, tenente –
respondeu Siboldi peremptório, antipático, sáfaro. – A senhora não tem o
direito de perguntar nada...
No entanto
Mascarenhas não respeitou o silêncio, e, deitado na erva alta do tapete
florestal, olhos fitos em algum provável espião oculto na mata, debochou:
– O que podemos
esperar de grileiros metidos na selva ilegalmente, Nascimento?
– Chumbo grosso, na
certa – imiscuiu-se Felipe, igualmente atento, mas que não tivera nenhuma
intenção de corroborar o espírito inamistoso em relação a ela, ou a ele próprio.
Neste particular a atenção de Felipe Corrientes não despertara.
– Com certeza! –
acrescentou Gusmão, agachado numa das inúmeras árvores que circundavam o ponto
onde eles se encontravam. Fuzil em riste. Ele também espreitava.
– Silêncio todo
mundo! – volveu Siboldi num tom que não deixava dúvidas em relação à gravidade
do momento.
Acabara de se reequipar,
e ajeitara seu uniforme, um tanto amarfanhado, com suavidade algo diplomática.
– Vamos... – disse
mais uma vez o capitão. – Estamos a poucos metros do acampamento, segundo o
mapa que o comandante nos deu. Preparem-se para trocar tiros com aqueles
marginais. Eles estão dispostos a tudo para manter sua posição. Vamos nos
dividir em dois grupos... – disse, e apontou para uma gigantesca quaresmeira
que servia de marco para os soldados. – Ali na frente há dois caminhos
distintos... O da direita é o mais longo, mas nos levará às costas dos
grileiros, como garantia de que eles não nos escaparão. Corrientes e
Nascimento, vocês liderarão este grupo. O outro nos leva direto ao acampamento
deles. Eu, Mascarenhas e Gusmão vamos por ele. Alguma dúvida?
Felipe levantou a
mão.
– Fala, Corrientes!
– disse Siboldi ríspido, porém baixo.
– E se houver
correria, fuga precipitada?
– Atirem para
matar! Se for possível, só pra imobilizar. Ninguém pode escapar pelos nossos
dedos... Entenderam? Nós temos de capturar um infeliz desses a qualquer preço.
Temos de interrogá-los...
– Mas isto pode ser
uma carnificina, Senhor! Será que as ordens que nos...
– As ordens que nos
foram destinadas, Corrientes, dizem que não devemos deixar ninguém escapar! E
ordens são para ser cumpridas, não questionadas. Entendeu?
Felipe, claro,
tinha compreendido muito bem, entretanto ele perguntava com seus botões até que
ponto Siboldi não estaria agindo com autonomia exagerada.
Não cabia a ele
responder pelas conseqüências daquela ação talvez calamitosa.
Celha, ao contrário
do companheiro, manteve-se calada o tempo todo, após advertência do comandante,
observando o interior de cada um dos companheiros. E por dentro ela também fervia
de uma excitação algo preocupada. Começava a enxergar naquela missão algo de podre,
embora não pudesse prever com exatidão o que estava sendo arquitetado pelo comandante.
Não tinha dúvidas em relação a isto, e agora precisaria redobrar sua atenção a
cada passo.
Pegou no braço de
Felipe, o que indicava que estava pronta para segui-lo até o inferno se fosse
preciso, porém aquele toque disse muito mais do que Felipe precisava entender.
Siboldi, Mascarenhas
e Gusmão não perderam mais tempo e tomaram o caminho na mata à esquerda. Os
demais soldados do seu grupo limitaram-se a segui-los.
Celha e Felipe
seguiram pela direita, seguidos pelos outros soldados...
Descerebrados...
Coitados...
Todos aqueles que
seguem ordens sem prever as conseqüências...
E sem raciocinar no
que estão fazendo.
Isto perpassou a
mente de Felipe num átimo...
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