quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VI - CAPÍTULO 2


        No dia seguinte lá estavam eles...

       Cara a cara pela primeira vez em suas vidas...

       Certo constrangimento marcaria o primeiro momento daquele encontro desigual...

       Desigual pelas normas burocráticas envolvidas, pelas idiossincrasias de cada um enquanto cidadãos, pelos temperamentos marcadamente divergentes, não tanto pelas idéias em si, o que mais tarde ficaria flagrante, e sim pelo próprio histórico psíquico de cada um dos homens...

       Uma coisa natural.

       Como cabia a Mouzon a prioridade profissional do momento, ele saiu na frente.

        – O senhor era companheiro de regimento das vítimas, não era? – começou Mouzon pisando em ovos, porque sabia que aquele terreno era movediço...

       Mais do que isso, lamacento.

       Felipe começou abanando a cabeça, concordando, ainda com o receio dos seus fantasmas particulares.

       – Éramos – retrucou Felipe lacônico ao extremo.

       Mouzon riu-se da lógica da situação.

       – Posso lhe perguntar qual é o seu posto no exército, Senhor Corrientes?

       – O senhor ainda não entrevistou ninguém?

       Mouzon deu um sorrisinho de escárnio. Este oficial até que era bem espertinho, o tal do Corrientes. Talvez fosse mais fácil tirar leite de pedra do que fazê-lo abrir a boca espontaneamente.

       – Eu tentei – comentou Mouzon lacônico.

       Felipe começou a estudar o homem que tinha a sua frente, analisar suas cartas, sua carantonha, seus tiques, uma vez que ele mesmo, a seu modo, possuía a mesma têmpera do policial.

       – O senhor deve ter tido um bocado de dificuldades lá no 7º PEF...

       – De fato... Há algo lá que não está bem esclarecido... – disse Mouzon indecifrável.

Felipe esquivou-se como pôde, então, como qualquer palavra mal colocada poderia ser uma porta aberta para informações não autorizadas, limitou-se a sorrir.

       Mouzon, entretanto, insistiu:

       – Acertei ou não?

       Mouzon mostrava-se muito tranqüilo, e seguro de si, enquanto Felipe continuava lacônico.

       – Infelizmente não me deixaram chegar muito fundo, Oficial Corrientes...

       – Bem, delegado, se eles bloquearam o seu acesso às informações, talvez eu não possa fazer muito pelo senhor...

       – Perfeitamente, Corrientes; eu entendo; não quero ferir nenhum regulamento militar, mas existem informações que eu pude pegar com as respectivas famílias, de modo que...

       – Como o senhor chegou a mim?

Mouzon voltou a sorrir com um ar de bufão. A partir deste instante ele aceitaria o papel hierarquicamente inferior que lhe cabia nesta investigação, até porque os peixes que nadavam neste lago obscuro, ele sabia disto muito bem, possuíam barbatanas bem maiores que as suas.

– Os familiares de uma das vítimas me disseram que os oficiais assassinados não pertenciam aos quadros normais do exército. Agora, que tipo de trabalho exerciam, isto não me contaram.

Felipe não engoliu a isca. Geralmente, as famílias dos militares não sabiam a diferença entre um oficial regular do exército e outro do setor de inteligência. Por isso, limitou-se a declarar:

       – Segundo eu vi na reportagem, a morte do sargento Gusmão foi uma tragédia, delegado.

       Desta feita Mouzon não sorriu aquele seu risinho de pseudobobo, mas sim o de um jogador bem compenetrado.

       – O Senhor está certo. Por um acaso o senhor sabe que tipo de vida esses homens levavam quando fora de suas fardas, Senhor Corrientes?    

       – Pode me chamar de Felipe, delegado. Não estou no quartel. Agora sou um cidadão como outro qualquer.

       – Bem... Felipe. Você não os conhecia pessoalmente? Ou conhecia?

       – Absolutamente. Minha relação com esses homens era puramente profissional; não tinha qualquer relação de amizade com nenhum deles fora do quartel...

       – O Senhor... Você tinha alguma amizade com algum outro membro deste batalhão?

       Felipe hesitou um pouco. Na verdade, ele tencionava aproveitar-se desta ocasião para descobrir coisas sobre Siboldi e os outros que até agora não fora capaz de conseguir. Não tinha certeza se era a hora certa de implicar Celha numa coisa nebulosa, até mesmo porque sobre a própria vida da amiga ainda pairava muita névoa neste oceano de implicações variadas, onde cada passo poderia significar encrenca.

       Ainda hesitando, o que Mouzon percebeu logo de imediato, Felipe falou:

       – Nada muito profundo, eu acho...

       – Mas tinha?

       – É...

       – Você pode me revelar o nome desta pessoa?

       Felipe fez cara de assustado.

       – Só o nome... Quer dizer... Isso se não for infringir algum dos regulamentos...

       Felipe continuava hesitando para ganhar mais tempo.

       – Qual era mesmo a missão principal do batalhão ao qual você estava lotado?

       Felipe fitou o delegado nos olhos, penetrantemente. Era óbvio que o policial estava tentando confundi-lo, talvez para confrontá-lo, pegá-lo em contradição.

       – Desculpa, Felipe. Qual o nome do seu amigo?...

       E Felipe divagava.

       – Pode dizer? Não pode?

       – Celha...

       As sobrancelhas de Mouzon ergueram-se, quase surpreso. “Era uma mulher!”

       – Celha Regina... – voltava a balbuciar Felipe.

       Mouzon inchava de satisfação.

       – Do Nascimento – completou Felipe.

       Mouzon passou a anotar tudo, até suspiros e interjeições, com a nova ortografia e tudo.

       – Mas, por favor, delegado, veja lá o que senhor vai fazer com esta informação... Eu colaboro com o senhor... – Mouzon concordava com os dentes brilhando. – E o senhor colabora comigo.

       – Não se preocupe, tenente. Sou um túmulo! Você sabe onde mora essa...

       – Mas eu não lhe disse qual era o meu posto no exército, delegado – volveu Felipe entre surpreso e irritado.

       Mouzon sorriu, corou, se emendou, tudo numa seqüência mais ou menos lógica do ponto de vista da psicanálise.

       – O senhor não me disse como chegou até a minha pessoa nesta investigação, delegado...

       Mouzon parou de escrever.

       – Estamos colaborando ou não estamos? – insistiu Felipe.

       – Sabe o que é, Felipe? Acho que vocês... das forças especiais... não gostariam muito de saber que estão sendo investigados pela Polícia Federal...

       – O senhor foi mais longe do que eu imaginava, delegado...

       – Todo policial que se presa, Felipe, tem suas fontes... É como um jornalista...

       – Aí você descobriu...

       – Que os três mortos pertenciam aos quadros daquilo que vocês chamam S-2.

       – E o que mais o senhor descobriu?

       – Felipe... Vamos e venhamos, meu jovem... Claro está que alguma coisa fugiu ao controle de vocês lá na Amazônia...

       – Eu continuo sem uma resposta à minha solicitação.

       – Não tenho nenhum indício ainda pra seguir, rapaz... Mas a maneira como o capitão Ernesto Siboldi e o tenente Jorge Mascarenhas foram brutalmente assassinados, indica, no mínimo, que eles tinham ligações com o crime organizado. É tudo o que eu posso supor de momento. Você sabe mais alguma coisa...?

       Felipe remoia mil coisas por dentro.

       – Isto talvez faça parte das suas atribuições constitucionais, tenente – volveu Mouzon.

       – A minha posição não é nada confortável...

       – Tudo bem, Felipe. Você já me ajudou bastante...

       – Mas agora eu é que estou curioso, delegado...

       – Porquê?

       – Porque eles não permitiram o seu acesso ao quartel de Roraima?

       – Segurança nacional. Pelo menos foi o que o seu comandante alegou. Ainda que os assassinatos do capitão Siboldi e do tenente Mascarenhas estejam plenamente configurados, o seu comandante...

       – Coronel Paglia – disse Felipe espontaneamente.

       – Ele mesmo – retrucou Mouzon com tranquilidade.

       – Não anote isto, delegado...

       – Porque não, Felipe? Não há nada de comprometedor num nome. Qualquer jornalecuzinho pode obter um nome...

       – Mouzon, o senhor sabe com o que estamos lidando aqui?

       – É Palha, com LH? – perguntou Mouzon, tergiversando.

       – Não. É nome de origem italiana. P-A-G-L-I-A.

       – PAGLIA?! Esquisito!

       – É assim mesmo.

       – Bom... Esse tal de “Paglia” alegou que os assassinatos dos oficiais seriam investigados pela sua própria gente...

       – O quê?!

       – Foi o que ele me disse.

       – Isto é muito estranho...

– O quê?

       – Não me consta que o exército investigue crimes comuns...

       – E quem lhe disse que se trata de crimes comuns, tenente?

       – Você. Você acabou de dizer que o caso tem a marca do crime organizado.

       – Há uma grande diferença entre parecer e ser, “Tenente Corrientes”. Eu também disse não possuir muitas pistas...

       – A não ser ter descoberto o meu nome não sei aonde... Por acaso não foi no bolso do Siboldi ou do Mascarenhas, foi delegado?

– Porquê? Haveria algum motivo para o seu nome estar lá?

– Isto não seria uma coisa totalmente impossível, delegado...

– Eu estou achando que o senhor tem uma ligação, digamos, mais estreita com esses homens que morreram do que está querendo me dizer...

– Talvez...

– Você é um bom jogador, Felipe...

– Sou nada! Eu perco sempre!

– Um dia a gente acaba ganhando...

– Diga-me como chegou até meu nome e eu lhe direi coisas que talvez lhe ajudem bastante nesse caso...

– Tá vendo? Acabas de ganhar um tento...

– Num enrola!

– O seu nome me foi sugerido pelo próprio Paglia...

– O coronel Paglia?!

– Exato.

– Mas porquê? Não estou entendendo.

– Indiretamente, claro.

– Continuo sem entender, Mouzon.

– Inicialmente, os assassinatos dos oficiais do seu batalhão estavam a cargo da polícia de São Paulo, quando veio a lume o caso de Mato Grosso, os falecimentos de Gusmão e sua esposa num incêndio aparentemente acidental, no mesmo dia dos outros. Quando as identidades dos homens foram confirmadas, tanto a polícia de São Paulo quanto a de Mato Grosso acharam melhor deixar o caso por nossa conta...

– Mas onde o Paglia e eu entramos nesta história?

– Naquele momento, como agora, eu continuava sem pistas. Entrei em contato com o Comando do Leste em São Paulo, e eles me garantiram que eu poderia entrar em contato com o Comandante Paglia em Roraima a fim de cumprir meu dever...

– E aí?

– Liguei para o 7º PEF, para não viajar à toa para a Amazônia. Quem sabe eu não conseguia alguma coisa por telefone mesmo, alguma luz que iluminasse o caminho das minhas investigações? O Paglia me atendeu muito bem, mas quando eu comecei o cerco sobre as ligações dos seus homens com o crime organizado, ele disse, simplesmente, desconhecer qualquer coisa a respeito desse assunto e que não poderia me ajudar em nada, então, talvez para confirmar sua total ignorância acerca das atividades dos seus homens fora do batalhão, ele mencionou o seu nome, dizendo que o único desvio de conduta que ele tinha conhecimento acerca dos seus oficias fora uma briguinha bairrista tola entre os falecidos e você...

Felipe parou para pensar.

O que poderia levar Paglia a mencionar esta “briguinha bairrista tola” a um delegado da PF, se o caso não representava nada de fato? Talvez ele não quisesse admitir que os homens em quem ele mais confiasse não fossem tão confiáveis quanto imaginava, então usou do poder que lhe era conferido para abafar o caso, para não atrapalhar a própria investigação que seus homens realizavam lá na Raposa Serra do Sol...

Se isto fosse verdade, o caso parecia-lhe razoável e plenamente justificável...

Se.

Mas a tal da intuição não parava de tagarelar-lhe ao ouvido...

Felipe foi em frente:

– Qual a sua opinião, de fato, delegado Mouzon, em relação a este caso?

– Nenhuma, Felipe. Ainda.

Os dois voltaram a se encarar expectantes, mas desta feita não como adversários num duelo, e sim como companheiros de um mesmo time, que desejam o mesmo resultado: a verdade.

– O que foi delegado?

– Você não está esquecendo nada?

– Esquecendo...?

– Eu cumpri a minha parte e lhe disse como cheguei ao seu nome, Felipe...

– Certo. Agora me compete cumprir a minha parte no acordo...

– Não veja a coisa por este lado, Felipe. Veja em mim uma pessoa como você mesmo, que está apenas cumprindo a sua missão constitucional...

– Acontece que eu e o Siboldi éramos desafetos, Mouzon – disse Felipe sem mais rodeios. – Isto chegou quase às vias de fato, e o comandante Paglia teve de intervir para botar ordem na casa...

– E?...

– Era isso que eu tinha pra te contar.

– E o Mascarenhas e o Gusmão?

– Eles eram peixinhos do Siboldi...

– E vocês quatro quase saíram na porrada em pleno quartel... – Mouzon voltava a fazer as suas anotações. – Correto... E que mais?

– Mas isso tudo tinha um motivo muito mais grave; não era uma simples briguinha bairrista como quer o Paglia...

– Eu imaginava isto... Você pode me dizer o motivo, Felipe?

– Não posso... Quer dizer... Não havia nenhum... No começo... Mas antes que você comece a fazer conjecturas, eu sei que este é o seu serviço e tudo, mas eu não tenho quaisquer provas contra aqueles homens...

– Relaxa, Felipe! Eu não sou nenhum louco pra incriminar alguém sem todas as provas checadas. Vá em frente...

– Certa noite, enquanto eu voltava para meu dormitório, ouvi uma conversa solta entre o Siboldi e o Gusmão...

– O que eles conversavam?

– Não me lembro exatamente das palavras que o Gusmão dizia para o capitão Siboldi, mas tinha qualquer coisa a ver com informações sigilosas de dentro do batalhão que eles estariam repassando pra fora do quartel. Isso, claro, pode ter mil e uma implicações, além do que o pouco que eu ouvi não dá pra completar nenhum quadro verossímil...

Mouzon parou de anotar e levou a mão ao queixo pensativo.

– A quem exatamente eles repassariam essas informações secretas?

– Eu só posso dizer que era um código, mas aqui eu não posso ir além, senão estarei cometendo um delito grave contra o regulamento...

– Não! Por favor! Eu entendo. Você já me ajudou bastante, mas ainda poderia me ajudar um pouquinho mais...

– Por favor, Mouzon. Assim você me compromete...

– Que isso, Felipe! Só mais uma perguntinha...

– Sobre quem?

– Essa tal de Celha Regina, sua amiga, estava contigo nessa hora?

– Não. Mas ela sabe de tudo. Foi uma das que ajudou a separar eu e o Siboldi.

Mouzon anotava tudo, como um romancista, que vai tecendo sua teia infernal de relações perigosas.

– É claro que agora eu sou um dos suspeitos da morte do Siboldi e do Mascarenhas...

– Você se esqueceu do Gusmão, Felipe... – Mouzon olhou-o enigmaticamente. Felipe parecia surpreso. – Não está claro que a morte dele foi um acidente, se recorda?

– Ah, é!

– E a sua amiga Celha também.

– Ela também, claro... Como você escreveu o nome dela?

– Como eu escrevi... – Mouzon foi olhar no seu caderninho de anotações. – Mas o que isso tem a ver...

Felipe esticou o pescoção e olhou no caderninho do delegado da Polícia Federal.

– O nome dela é com LH. É estranho mesmo.

– Que esquisito!

– Realmente... É tudo muito esquisito.

– Muito. Por falar nisso... O seu comandante também...

– O Paglia?

– Tecnicamente ele também é um suspeito.

– É?

– Claro!

– Mas a figura chave é a desse desconhecido pra quem Siboldi e os seus capangas estavam contrabandeando informações sigilosas?

– Ainda é cedo pra fazer qualquer avaliação. Tudo pode ser apenas a pontinha do iceberg.

       – Qualquer coisa a mais que eu possa fazer por você, Mouzon...

       – Obrigado, Felipe. Eu percebi que você está muito interessado em colaborar.

       Felipe percebeu a malícia por trás das palavras do delegado. Contudo não se importou caso estivesse atraindo uma suspeita mais forte para o seu lado. O que ele queria muito mais do que esclarecer este caso, era descobrir o que rolava nos bastidores deste acontecimento, ou seja, quem era o responsável maior pela instabilidade na região Amazônica. Este era o fator que ele ocultara propositadamente a Mouzon.

       Ainda assim ele jogou mais uma vez:

       – Será que nós estamos prestes a descobrir uma das rotas do tráfico de drogas no Brasil, delegado?

       Entretanto, ainda que desconhecesse a chave para o maior dos mistérios, Mouzon era esperto demais para se deixar fisgar.

       – Digo o que já disse antes – retrucou. – Há muitas estrelas envolvidas neste jogo que ainda não apareceram. Isso acontece o tempo todo neste país. Existem dois Brasis, Felipe. O permitido e o inacessível. Este último não é para profissionais como eu; talvez pras gerações posteriores...

       – É este Brasil, o inacessível, que dá nojo em muita gente...

       – Muita gente, né?

       – Pode me incluir nesta lista.

       – Eu também me incluo nela...

       Mouzon levantou-se. Estavam sentados num restaurante chique quase deserto. Mouzon fez menção de retirar a sua carteira para pagar a conta...

       – Deixe isto por minha conta, delegado – disse Felipe sorrindo. – O exército me paga muito bem.

       – A Polícia Federal também. 

       – Sabe de uma coisa, delegado? Gostei dos seus métodos.

       – Isto me envaidece, Felipe. Talvez eu precise do senhor no futuro...

       – Colaborarei no que puder... E, delegado... Senhor é o cacete!

       Mouzon saiu sorrindo.

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