No dia seguinte lá estavam eles...
Cara
a cara pela primeira vez em suas vidas...
Certo
constrangimento marcaria o primeiro momento daquele encontro desigual...
Desigual
pelas normas burocráticas envolvidas, pelas idiossincrasias de cada um enquanto
cidadãos, pelos temperamentos marcadamente divergentes, não tanto pelas idéias
em si, o que mais tarde ficaria flagrante, e sim pelo próprio histórico
psíquico de cada um dos homens...
Uma
coisa natural.
Como
cabia a Mouzon a prioridade profissional do momento, ele saiu na frente.
– O senhor era companheiro de regimento das
vítimas, não era? – começou Mouzon pisando em ovos, porque sabia que aquele
terreno era movediço...
Mais
do que isso, lamacento.
Felipe
começou abanando a cabeça, concordando, ainda com o receio dos seus fantasmas
particulares.
–
Éramos – retrucou Felipe lacônico ao extremo.
Mouzon
riu-se da lógica da situação.
–
Posso lhe perguntar qual é o seu posto no exército, Senhor Corrientes?
–
O senhor ainda não entrevistou ninguém?
Mouzon
deu um sorrisinho de escárnio. Este oficial até que era bem espertinho, o tal
do Corrientes. Talvez fosse mais fácil tirar leite de pedra do que fazê-lo
abrir a boca espontaneamente.
–
Eu tentei – comentou Mouzon lacônico.
Felipe
começou a estudar o homem que tinha a sua frente, analisar suas cartas, sua
carantonha, seus tiques, uma vez que ele mesmo, a seu modo, possuía a mesma
têmpera do policial.
–
O senhor deve ter tido um bocado de dificuldades lá no 7º PEF...
–
De fato... Há algo lá que não está bem esclarecido... – disse Mouzon
indecifrável.
Felipe esquivou-se
como pôde, então, como qualquer palavra mal colocada poderia ser uma porta
aberta para informações não autorizadas, limitou-se a sorrir.
Mouzon,
entretanto, insistiu:
–
Acertei ou não?
Mouzon
mostrava-se muito tranqüilo, e seguro de si, enquanto Felipe continuava
lacônico.
–
Infelizmente não me deixaram chegar muito fundo, Oficial Corrientes...
–
Bem, delegado, se eles bloquearam o seu acesso às informações, talvez eu não
possa fazer muito pelo senhor...
–
Perfeitamente, Corrientes; eu entendo; não quero ferir nenhum regulamento
militar, mas existem informações que eu pude pegar com as respectivas famílias,
de modo que...
–
Como o senhor chegou a mim?
Mouzon voltou a
sorrir com um ar de bufão. A partir deste instante ele aceitaria o papel
hierarquicamente inferior que lhe cabia nesta investigação, até porque os
peixes que nadavam neste lago obscuro, ele sabia disto muito bem, possuíam
barbatanas bem maiores que as suas.
– Os familiares de
uma das vítimas me disseram que os oficiais assassinados não pertenciam aos
quadros normais do exército. Agora, que tipo de trabalho exerciam, isto não me
contaram.
Felipe não engoliu
a isca. Geralmente, as famílias dos militares não sabiam a diferença entre um
oficial regular do exército e outro do setor de inteligência. Por isso,
limitou-se a declarar:
–
Segundo eu vi na reportagem, a morte do sargento Gusmão foi uma tragédia,
delegado.
Desta
feita Mouzon não sorriu aquele seu risinho de pseudobobo, mas sim o de um
jogador bem compenetrado.
–
O Senhor está certo. Por um acaso o senhor sabe que tipo de vida esses homens levavam
quando fora de suas fardas, Senhor Corrientes?
–
Pode me chamar de Felipe, delegado. Não estou no quartel. Agora sou um cidadão
como outro qualquer.
–
Bem... Felipe. Você não os conhecia pessoalmente? Ou conhecia?
–
Absolutamente. Minha relação com esses homens era puramente profissional; não
tinha qualquer relação de amizade com nenhum deles fora do quartel...
–
O Senhor... Você tinha alguma amizade com algum outro membro deste batalhão?
Felipe
hesitou um pouco. Na verdade, ele tencionava aproveitar-se desta ocasião para
descobrir coisas sobre Siboldi e os outros que até agora não fora capaz de
conseguir. Não tinha certeza se era a hora certa de implicar Celha numa coisa
nebulosa, até mesmo porque sobre a própria vida da amiga ainda pairava muita
névoa neste oceano de implicações variadas, onde cada passo poderia significar
encrenca.
Ainda
hesitando, o que Mouzon percebeu logo de imediato, Felipe falou:
–
Nada muito profundo, eu acho...
–
Mas tinha?
–
É...
–
Você pode me revelar o nome desta pessoa?
Felipe
fez cara de assustado.
–
Só o nome... Quer dizer... Isso se não for infringir algum dos regulamentos...
Felipe
continuava hesitando para ganhar mais tempo.
–
Qual era mesmo a missão principal do batalhão ao qual você estava lotado?
Felipe
fitou o delegado nos olhos, penetrantemente. Era óbvio que o policial estava
tentando confundi-lo, talvez para confrontá-lo, pegá-lo em contradição.
–
Desculpa, Felipe. Qual o nome do seu amigo?...
E
Felipe divagava.
–
Pode dizer? Não pode?
–
Celha...
As
sobrancelhas de Mouzon ergueram-se, quase surpreso. “Era uma mulher!”
–
Celha Regina... – voltava a balbuciar Felipe.
Mouzon
inchava de satisfação.
–
Do Nascimento – completou Felipe.
Mouzon
passou a anotar tudo, até suspiros e interjeições, com a nova ortografia e
tudo.
–
Mas, por favor, delegado, veja lá o que senhor vai fazer com esta informação...
Eu colaboro com o senhor... – Mouzon concordava com os dentes brilhando. – E o
senhor colabora comigo.
–
Não se preocupe, tenente. Sou um túmulo! Você sabe onde mora essa...
–
Mas eu não lhe disse qual era o meu posto no exército, delegado – volveu Felipe
entre surpreso e irritado.
Mouzon
sorriu, corou, se emendou, tudo numa seqüência mais ou menos lógica do ponto de
vista da psicanálise.
–
O senhor não me disse como chegou até a minha pessoa nesta investigação,
delegado...
Mouzon
parou de escrever.
–
Estamos colaborando ou não estamos? – insistiu Felipe.
–
Sabe o que é, Felipe? Acho que vocês... das forças especiais... não gostariam muito
de saber que estão sendo investigados pela Polícia Federal...
–
O senhor foi mais longe do que eu imaginava, delegado...
–
Todo policial que se presa, Felipe, tem suas fontes... É como um jornalista...
–
Aí você descobriu...
–
Que os três mortos pertenciam aos quadros daquilo que vocês chamam S-2.
–
E o que mais o senhor descobriu?
–
Felipe... Vamos e venhamos, meu jovem... Claro está que alguma coisa fugiu ao
controle de vocês lá na Amazônia...
–
Eu continuo sem uma resposta à minha solicitação.
–
Não tenho nenhum indício ainda pra seguir, rapaz... Mas a maneira como o
capitão Ernesto Siboldi e o tenente Jorge Mascarenhas foram brutalmente
assassinados, indica, no mínimo, que eles tinham ligações com o crime
organizado. É tudo o que eu posso supor de momento. Você sabe mais alguma
coisa...?
Felipe
remoia mil coisas por dentro.
–
Isto talvez faça parte das suas atribuições constitucionais, tenente – volveu Mouzon.
–
A minha posição não é nada confortável...
–
Tudo bem, Felipe. Você já me ajudou bastante...
–
Mas agora eu é que estou curioso, delegado...
–
Porquê?
–
Porque eles não permitiram o seu acesso ao quartel de Roraima?
–
Segurança nacional. Pelo menos foi o que o seu comandante alegou. Ainda que os
assassinatos do capitão Siboldi e do tenente Mascarenhas estejam plenamente
configurados, o seu comandante...
–
Coronel Paglia – disse Felipe espontaneamente.
–
Ele mesmo – retrucou Mouzon com tranquilidade.
–
Não anote isto, delegado...
–
Porque não, Felipe? Não há nada de comprometedor num nome. Qualquer
jornalecuzinho pode obter um nome...
–
Mouzon, o senhor sabe com o que estamos lidando aqui?
–
É Palha, com LH? – perguntou Mouzon, tergiversando.
–
Não. É nome de origem italiana. P-A-G-L-I-A.
–
PAGLIA?! Esquisito!
–
É assim mesmo.
–
Bom... Esse tal de “Paglia” alegou que os assassinatos dos oficiais seriam
investigados pela sua própria gente...
–
O quê?!
–
Foi o que ele me disse.
–
Isto é muito estranho...
– O quê?
–
Não me consta que o exército investigue crimes comuns...
–
E quem lhe disse que se trata de crimes comuns, tenente?
–
Você. Você acabou de dizer que o caso tem a marca do crime organizado.
–
Há uma grande diferença entre parecer e ser, “Tenente Corrientes”. Eu também
disse não possuir muitas pistas...
–
A não ser ter descoberto o meu nome não sei aonde... Por acaso não foi no bolso
do Siboldi ou do Mascarenhas, foi delegado?
– Porquê? Haveria
algum motivo para o seu nome estar lá?
– Isto não seria
uma coisa totalmente impossível, delegado...
– Eu estou achando
que o senhor tem uma ligação, digamos, mais estreita com esses homens que
morreram do que está querendo me dizer...
– Talvez...
– Você é um bom jogador,
Felipe...
– Sou nada! Eu
perco sempre!
– Um dia a gente
acaba ganhando...
– Diga-me como
chegou até meu nome e eu lhe direi coisas que talvez lhe ajudem bastante nesse
caso...
– Tá vendo? Acabas
de ganhar um tento...
– Num enrola!
– O seu nome me foi
sugerido pelo próprio Paglia...
– O coronel
Paglia?!
– Exato.
– Mas porquê? Não
estou entendendo.
– Indiretamente,
claro.
– Continuo sem
entender, Mouzon.
– Inicialmente, os
assassinatos dos oficiais do seu batalhão estavam a cargo da polícia de São
Paulo, quando veio a lume o caso de Mato Grosso, os falecimentos de Gusmão e
sua esposa num incêndio aparentemente acidental, no mesmo dia dos outros. Quando
as identidades dos homens foram confirmadas, tanto a polícia de São Paulo
quanto a de Mato Grosso acharam melhor deixar o caso por nossa conta...
– Mas onde o Paglia
e eu entramos nesta história?
– Naquele momento,
como agora, eu continuava sem pistas. Entrei em contato com o Comando do Leste
em São Paulo, e eles me garantiram que eu poderia entrar em contato com o
Comandante Paglia em Roraima a fim de cumprir meu dever...
– E aí?
– Liguei para o 7º
PEF, para não viajar à toa para a Amazônia. Quem sabe eu não conseguia alguma
coisa por telefone mesmo, alguma luz que iluminasse o caminho das minhas
investigações? O Paglia me atendeu muito bem, mas quando eu comecei o cerco
sobre as ligações dos seus homens com o crime organizado, ele disse,
simplesmente, desconhecer qualquer coisa a respeito desse assunto e que não
poderia me ajudar em nada, então, talvez para confirmar sua total ignorância
acerca das atividades dos seus homens fora do batalhão, ele mencionou o seu
nome, dizendo que o único desvio de conduta que ele tinha conhecimento acerca
dos seus oficias fora uma briguinha bairrista tola entre os falecidos e você...
Felipe parou para
pensar.
O que poderia levar
Paglia a mencionar esta “briguinha bairrista tola” a um delegado da PF, se o
caso não representava nada de fato? Talvez ele não quisesse admitir que os homens
em quem ele mais confiasse não fossem tão confiáveis quanto imaginava, então
usou do poder que lhe era conferido para abafar o caso, para não atrapalhar a
própria investigação que seus homens realizavam lá na Raposa Serra do Sol...
Se isto fosse verdade,
o caso parecia-lhe razoável e plenamente justificável...
Se.
Mas a tal da
intuição não parava de tagarelar-lhe ao ouvido...
Felipe foi em frente:
– Qual a sua
opinião, de fato, delegado Mouzon, em relação a este caso?
– Nenhuma, Felipe.
Ainda.
Os dois voltaram a
se encarar expectantes, mas desta feita não como adversários num duelo, e sim
como companheiros de um mesmo time, que desejam o mesmo resultado: a verdade.
– O que foi
delegado?
– Você não está
esquecendo nada?
– Esquecendo...?
– Eu cumpri a minha
parte e lhe disse como cheguei ao seu nome, Felipe...
– Certo. Agora me compete
cumprir a minha parte no acordo...
– Não veja a coisa
por este lado, Felipe. Veja em mim uma pessoa como você mesmo, que está apenas
cumprindo a sua missão constitucional...
– Acontece que eu e
o Siboldi éramos desafetos, Mouzon – disse Felipe sem mais rodeios. – Isto
chegou quase às vias de fato, e o comandante Paglia teve de intervir para botar
ordem na casa...
– E?...
– Era isso que eu
tinha pra te contar.
– E o Mascarenhas e
o Gusmão?
– Eles eram
peixinhos do Siboldi...
– E vocês quatro
quase saíram na porrada em pleno quartel... – Mouzon voltava a fazer as suas
anotações. – Correto... E que mais?
– Mas isso tudo
tinha um motivo muito mais grave; não era uma simples briguinha bairrista como
quer o Paglia...
– Eu imaginava
isto... Você pode me dizer o motivo, Felipe?
– Não posso... Quer
dizer... Não havia nenhum... No começo... Mas antes que você comece a fazer
conjecturas, eu sei que este é o seu serviço e tudo, mas eu não tenho quaisquer
provas contra aqueles homens...
– Relaxa, Felipe!
Eu não sou nenhum louco pra incriminar alguém sem todas as provas checadas. Vá
em frente...
– Certa noite,
enquanto eu voltava para meu dormitório, ouvi uma conversa solta entre o
Siboldi e o Gusmão...
– O que eles
conversavam?
– Não me lembro
exatamente das palavras que o Gusmão dizia para o capitão Siboldi, mas tinha
qualquer coisa a ver com informações sigilosas de dentro do batalhão que eles
estariam repassando pra fora do quartel. Isso, claro, pode ter mil e uma
implicações, além do que o pouco que eu ouvi não dá pra completar nenhum quadro
verossímil...
Mouzon parou de
anotar e levou a mão ao queixo pensativo.
– A quem exatamente
eles repassariam essas informações secretas?
– Eu só posso dizer
que era um código, mas aqui eu não posso ir além, senão estarei cometendo um
delito grave contra o regulamento...
– Não! Por favor!
Eu entendo. Você já me ajudou bastante, mas ainda poderia me ajudar um
pouquinho mais...
– Por favor,
Mouzon. Assim você me compromete...
– Que isso, Felipe!
Só mais uma perguntinha...
– Sobre quem?
– Essa tal de Celha
Regina, sua amiga, estava contigo nessa hora?
– Não. Mas ela sabe
de tudo. Foi uma das que ajudou a separar eu e o Siboldi.
Mouzon anotava
tudo, como um romancista, que vai tecendo sua teia infernal de relações
perigosas.
– É claro que agora
eu sou um dos suspeitos da morte do Siboldi e do Mascarenhas...
– Você se esqueceu
do Gusmão, Felipe... – Mouzon olhou-o enigmaticamente. Felipe parecia surpreso.
– Não está claro que a morte dele foi um acidente, se recorda?
– Ah, é!
– E a sua amiga
Celha também.
– Ela também,
claro... Como você escreveu o nome dela?
– Como eu
escrevi... – Mouzon foi olhar no seu caderninho de anotações. – Mas o que isso
tem a ver...
Felipe esticou o
pescoção e olhou no caderninho do delegado da Polícia Federal.
– O nome dela é com
LH. É estranho mesmo.
– Que esquisito!
– Realmente... É
tudo muito esquisito.
– Muito. Por falar
nisso... O seu comandante também...
– O Paglia?
– Tecnicamente ele
também é um suspeito.
– É?
– Claro!
– Mas a figura
chave é a desse desconhecido pra quem Siboldi e os seus capangas estavam
contrabandeando informações sigilosas?
– Ainda é cedo pra
fazer qualquer avaliação. Tudo pode ser apenas a pontinha do iceberg.
–
Qualquer coisa a mais que eu possa fazer por você, Mouzon...
–
Obrigado, Felipe. Eu percebi que você está muito interessado em colaborar.
Felipe
percebeu a malícia por trás das palavras do delegado. Contudo não se importou
caso estivesse atraindo uma suspeita mais forte para o seu lado. O que ele queria
muito mais do que esclarecer este caso, era descobrir o que rolava nos
bastidores deste acontecimento, ou seja, quem era o responsável maior pela
instabilidade na região Amazônica. Este era o fator que ele ocultara
propositadamente a Mouzon.
Ainda
assim ele jogou mais uma vez:
–
Será que nós estamos prestes a descobrir uma das rotas do tráfico de drogas no
Brasil, delegado?
Entretanto,
ainda que desconhecesse a chave para o maior dos mistérios, Mouzon era esperto
demais para se deixar fisgar.
–
Digo o que já disse antes – retrucou. – Há muitas estrelas envolvidas neste
jogo que ainda não apareceram. Isso acontece o tempo todo neste país. Existem
dois Brasis, Felipe. O permitido e o inacessível. Este último não é para
profissionais como eu; talvez pras gerações posteriores...
–
É este Brasil, o inacessível, que dá nojo em muita gente...
–
Muita gente, né?
–
Pode me incluir nesta lista.
–
Eu também me incluo nela...
Mouzon
levantou-se. Estavam sentados num restaurante chique quase deserto. Mouzon fez
menção de retirar a sua carteira para pagar a conta...
–
Deixe isto por minha conta, delegado – disse Felipe sorrindo. – O exército me
paga muito bem.
–
A Polícia Federal também.
–
Sabe de uma coisa, delegado? Gostei dos seus métodos.
–
Isto me envaidece, Felipe. Talvez eu precise do senhor no futuro...
–
Colaborarei no que puder... E, delegado... Senhor é o cacete!
Mouzon
saiu sorrindo.
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