quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VI - CAPÍTULO 1


       Ele não podia afirmar que sua vida conjugal fosse ruim...

       Analisando friamente o fato, agora que estava absolutamente só...

       Não era.

       Absolutamente.

       Sentado com seus botões abertos, à maneira de bicheiro, a conclusão era uma só: não podia reclamar de nada!

       E de fato não estava reclamando...

       Apenas refletindo acerca dos fantasmas que insistiam em assaltá-lo todas as vezes que estava absolutamente só...

       Era sempre assim...

       A solidão fazia-o pensar, e em cada coisa absurda que ele muitas vezes corava!

       Se tomássemos como exemplos miríades de casais espalhados pelo mundo que verdadeiramente possuíam problemas...

       Um caminhão deles...

       Muitos deles praticamente insolúveis, o que os levava invariavelmente ao único caminho possível...

       A separação.

       Ou ao suicídio.

       Nenhum dos dois era o caso dele.

       Assim as coisas seriam muito mais fáceis. Casar – separar – morrer – alienar-se. Não havia nada mais matemático, mais lógico, mais natural do que isto.

       Possuía um emprego sólido, estável, e sexualmente era muito feliz, entretanto tudo parava por aí...

       Algo não ia bem, todavia...

       Ele não sabia expressar a noção exata de sua angústia, embora o abismo existente entre ele e a esposa fosse visível a um observador mais atento...

       E era isso que deixava Felipe Corrientes num beco sem saída conceitual...

       Bolas!

       Porque se sentia assim?

       A Flávia era uma daquelas mulheres que qualquer homem gostaria de ter na sua cama...

       Será que de fato isto já não aconteceu?...

       Quer dizer... Entre ela e os outros?...

       Este era o menor dos males segundo a opinião de Felipe.

       O pior de tudo é que não havia a menor comunicação nas outras coisas...

       Nas mínimas!

       Quer dizer...

       Talvez isto não fosse tão verdadeiro assim...

       Não sabia...

       Felipe era um homem extremamente inteligente, e como tal entendia que um casamento não se resume somente a sexo...

       Não...

       Havia muitas outras coisas a assombrarem a vida aparentemente prosaica de Felipe Corrientes...

Como havia uma plêiade de outras coisas boas em sua vida conjugal, não podia negar...

       Mas a existência de Celha Regina era uma das assombrações que lhe tirava o sono...

       Aquela morena o perturbava de tal jeito que muitas vezes, durante as suas folgas, Felipe perdia a noção do tempo e do espaço.

       Mas o que havia entre eles além de uma profunda amizade calcada numa camaradagem natural tendo como pano de fundo um serviço patriótico de conservação de fronteiras?

       Este era outro dos aspectos que o tiravam do sério...

       Felipe, no fundo, apesar de ser um bom oficial e gostar do seu trabalho, não via lógica na condição de um militar, simplesmente porque isto cheirava à profissionalização da violência, pura e simples...

       De repente, como num redemoinho de emoções, tudo lhe veio à mente...

       Siboldi...

Mascarenhas...

Gusmão.

Aquela animosidade gratuita era de estarrecer...

Porquê?

Porquê?!

Se ele descobrira algo que não deveria a culpa não era sua...

Não lhe interessavam as irregularidadezinhas de um punhado de soldados corruptos...

E as ironias de Armando Paglia, então?...

Será que ele tinha alguma coisa a ver com as rapinagens de seus subordinados?

E se tivesse? O que ele, Felipe, tinha com isso? Que o deixassem em paz. Ele trataria de fazer a mesma coisa...

Arre!

 E, de repente, certo aspecto misterioso da vida de Celha Regina chamou-lhe mais uma vez a atenção...

       A forma como eles haviam escapado ao fogo cruzado na Raposa Serra do Sol possuía qualquer coisa de sobrenatural.

       Até agora, passados alguns dias desde o episódio, Felipe ainda não atinara como eles haviam sobrevivido a um massacre quase certo.

       Quem era Celha Regina então?

       Uma mulher oriunda das camadas mais pobres da sociedade pernambucana, uma sobrevivente, que ascendera na escala social graças a uma determinação famélica. Havia mais alguém por trás da fachada da humilde vencedora de obstáculos sociais?

       Felipe percebeu que este questionamento não o levaria a lugar algum...

       Por que isso tudo?

       Só havia uma certeza nos pensamentos de Felipe Corrientes: o Brasil cheirava mal; e o mundo com ele; uma cloaca só, de material fétido repelente, mas ainda assim ele reconhecia que havia lugar para coisas belas...

       Flávia, sua esposa...

       Apesar da frivolidade imbecil que a acompanhava...

       E havia Celha Regina...

       E um túnel escuro logo a seguir...

       E ele não enxergava luz no fim...

       Ainda assim tinha de atravessá-lo.

       Quem olhasse Felipe de perto, um sujeito pacato, ético acima de tudo, equilibrado de uma maneira geral, bem colocado na vida, não imaginava o furacão a corroer-lhe o bestunto...

       É muito mais fácil enxergar os outros do que a si mesmo...

       Neste momento os olhos de Felipe se fixaram no noticiário que ele olhava apenas como um monte de imagens desconexas, um borrão de colorido inútil, sequenciando-se interminavelmente...

       Acabava de falar sobre os assassinatos de dois sujeitos pertencentes aos quadros do exército lotados no Norte, na periferia de São Paulo...

       Meus Deus! Mas é...

Siboldi!...

E Mascarenhas!

Logo depois fazia a ponte com a misteriosa morte de outro militar e sua esposa no interior do Mato Grosso...

       E o nome dele estava lá...

Gusmão!

Será que ele estava perdendo a razão?...

Toda aquela angústia inexplicável, incongruente, talvez o estivesse afetando de uma maneira silenciosa, só agora acusando os primeiros sinais...  

       O jornalista continuava a notícia dizendo que os assassinatos dos dois primeiros oficiais, acontecidos na capital, tinham a característica de acerto de contas, com aspectos ligados ao crime organizado, tráfico de drogas, etc., enquanto que o segundo não passava de um acidente banal...

       Aparentemente.

A única ligação entre as três mortes consistia no fato dos oficiais pertencerem ao mesmo grupamento, o 7º PEF de Roraima, mais nada...

Haveria uma ligação entre os três falecimentos, ou podemos afixá-los ordinariamente a outros capítulos no livro da violência que impera por toda parte?

O que estava acontecendo que Felipe não enxergava?

       Qual a diferença entre a razão e a intuição, se é que esta era confiável mesmo?

       Quando Felipe, mais uma vez, elevava seus pensamentos a amiga Celha Regina – será que ela estaria acompanhando o noticiário àquela hora? – Flávia acabava de adentrar no apartamento...

Linda como sempre, descabelada um pouco, suada e muito, em trajes de academia...

A saudação foi genérica, pois o calor do reencontro já tinha se dado um dia antes, quando Felipe retornara mais uma vez ao Rio para outra folga costumeira, mas a surpresa dela não foi pequena ao ver o marido hipnotizado defronte a TV...

Quando Flávia percebeu do que se tratava, ela acrescentou mais lenha à fogueira:

       – Teve um homem que te ligou esta manhã, meu amor...

E toca de subtrair as roupas sem nenhum pudor...

– Você tinha saído pra comprar pão... – continuou ela, despudorada, linda – Eu acordei meio que sonâmbula pra atender ao telefone, depois voltei pra cama, aí depois, quando acordei de vez, esqueci-me de te falar, mas, pelo jeito, ele queria falar sobre este caso que tá dando na televisão...

       – Quem era o “cara”? – perguntou Felipe ainda meio robótico, de olho na televisão faladeira, mas com as orelhas em pé.

       – Não sei não, Felipe... – e Flávia dirigiu-se diretamente ao banheiro, nua em pelos, afinal estava em casa, e sempre era bela, acontecesse o que acontecesse, a vida é que era linda, puxa vida! – Acho que tá anotado no papel ali na mesinha do telefone, mas eu acho que ele era delegado...

       Felipe saltou do sofá com uma agilidade felina...

       “Que porra é essa?!”

       Exclamou pra dentro do seu ser estupefato.

Lá estava, de fato, o telefone do sujeito, e um único nome, aliás um sobrenome...  

Mouzon.

       Aquela vida sensata mais ou menos, o que restava dela, deixou de existir de uma hora para outra...

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