Ele
não podia afirmar que sua vida conjugal fosse ruim...
Analisando
friamente o fato, agora que estava absolutamente só...
Não
era.
Absolutamente.
Sentado
com seus botões abertos, à maneira de bicheiro, a conclusão era uma só: não
podia reclamar de nada!
E
de fato não estava reclamando...
Apenas
refletindo acerca dos fantasmas que insistiam em assaltá-lo todas as vezes que
estava absolutamente só...
Era
sempre assim...
A
solidão fazia-o pensar, e em cada coisa absurda que ele muitas vezes corava!
Se
tomássemos como exemplos miríades de casais espalhados pelo mundo que
verdadeiramente possuíam problemas...
Um
caminhão deles...
Muitos
deles praticamente insolúveis, o que os levava invariavelmente ao único caminho
possível...
A
separação.
Ou
ao suicídio.
Nenhum
dos dois era o caso dele.
Assim
as coisas seriam muito mais fáceis. Casar – separar – morrer – alienar-se. Não
havia nada mais matemático, mais lógico, mais natural do que isto.
Possuía
um emprego sólido, estável, e sexualmente era muito feliz, entretanto tudo parava
por aí...
Algo
não ia bem, todavia...
Ele
não sabia expressar a noção exata de sua angústia, embora o abismo existente
entre ele e a esposa fosse visível a um observador mais atento...
E
era isso que deixava Felipe Corrientes num beco sem saída conceitual...
Bolas!
Porque
se sentia assim?
A
Flávia era uma daquelas mulheres que qualquer homem gostaria de ter na sua
cama...
Será
que de fato isto já não aconteceu?...
Quer
dizer... Entre ela e os outros?...
Este
era o menor dos males segundo a opinião de Felipe.
O
pior de tudo é que não havia a menor comunicação nas outras coisas...
Nas
mínimas!
Quer
dizer...
Talvez
isto não fosse tão verdadeiro assim...
Não
sabia...
Felipe
era um homem extremamente inteligente, e como tal entendia que um casamento não
se resume somente a sexo...
Não...
Havia
muitas outras coisas a assombrarem a vida aparentemente prosaica de Felipe
Corrientes...
Como havia uma
plêiade de outras coisas boas em sua vida conjugal, não podia negar...
Mas
a existência de Celha Regina era uma das assombrações que lhe tirava o sono...
Aquela
morena o perturbava de tal jeito que muitas vezes, durante as suas folgas,
Felipe perdia a noção do tempo e do espaço.
Mas
o que havia entre eles além de uma profunda amizade calcada numa camaradagem
natural tendo como pano de fundo um serviço patriótico de conservação de
fronteiras?
Este
era outro dos aspectos que o tiravam do sério...
Felipe,
no fundo, apesar de ser um bom oficial e gostar do seu trabalho, não via lógica
na condição de um militar, simplesmente porque isto cheirava à profissionalização
da violência, pura e simples...
De
repente, como num redemoinho de emoções, tudo lhe veio à mente...
Siboldi...
Mascarenhas...
Gusmão.
Aquela animosidade
gratuita era de estarrecer...
Porquê?
Porquê?!
Se ele descobrira
algo que não deveria a culpa não era sua...
Não lhe
interessavam as irregularidadezinhas de um punhado de soldados corruptos...
E as ironias de Armando
Paglia, então?...
Será que ele tinha
alguma coisa a ver com as rapinagens de seus subordinados?
E se tivesse? O que
ele, Felipe, tinha com isso? Que o deixassem em paz. Ele trataria de fazer a
mesma coisa...
Arre!
E, de repente, certo aspecto misterioso da
vida de Celha Regina chamou-lhe mais uma vez a atenção...
A
forma como eles haviam escapado ao fogo cruzado na Raposa Serra do Sol possuía
qualquer coisa de sobrenatural.
Até
agora, passados alguns dias desde o episódio, Felipe ainda não atinara como
eles haviam sobrevivido a um massacre quase certo.
Quem
era Celha Regina então?
Uma
mulher oriunda das camadas mais pobres da sociedade pernambucana, uma
sobrevivente, que ascendera na escala social graças a uma determinação
famélica. Havia mais alguém por trás da fachada da humilde vencedora de
obstáculos sociais?
Felipe
percebeu que este questionamento não o levaria a lugar algum...
Por
que isso tudo?
Só
havia uma certeza nos pensamentos de Felipe Corrientes: o Brasil cheirava mal;
e o mundo com ele; uma cloaca só, de material fétido repelente, mas ainda assim
ele reconhecia que havia lugar para coisas belas...
Flávia,
sua esposa...
Apesar
da frivolidade imbecil que a acompanhava...
E
havia Celha Regina...
E
um túnel escuro logo a seguir...
E
ele não enxergava luz no fim...
Ainda
assim tinha de atravessá-lo.
Quem
olhasse Felipe de perto, um sujeito pacato, ético acima de tudo, equilibrado de
uma maneira geral, bem colocado na vida, não imaginava o furacão a corroer-lhe
o bestunto...
É
muito mais fácil enxergar os outros do que a si mesmo...
Neste
momento os olhos de Felipe se fixaram no noticiário que ele olhava apenas como
um monte de imagens desconexas, um borrão de colorido inútil, sequenciando-se
interminavelmente...
Acabava
de falar sobre os assassinatos de dois sujeitos pertencentes aos quadros do
exército lotados no Norte, na periferia de São Paulo...
Meus
Deus! Mas é...
Siboldi!...
E Mascarenhas!
Logo depois fazia a
ponte com a misteriosa morte de outro militar e sua esposa no interior do Mato
Grosso...
E
o nome dele estava lá...
Gusmão!
Será que ele estava
perdendo a razão?...
Toda aquela
angústia inexplicável, incongruente, talvez o estivesse afetando de uma maneira
silenciosa, só agora acusando os primeiros sinais...
O
jornalista continuava a notícia dizendo que os assassinatos dos dois primeiros
oficiais, acontecidos na capital, tinham a característica de acerto de contas, com
aspectos ligados ao crime organizado, tráfico de drogas, etc., enquanto que o
segundo não passava de um acidente banal...
Aparentemente.
A única ligação
entre as três mortes consistia no fato dos oficiais pertencerem ao mesmo
grupamento, o 7º PEF de Roraima, mais nada...
Haveria uma ligação
entre os três falecimentos, ou podemos afixá-los ordinariamente a outros
capítulos no livro da violência que impera por toda parte?
O que estava
acontecendo que Felipe não enxergava?
Qual
a diferença entre a razão e a intuição, se é que esta era confiável mesmo?
Quando
Felipe, mais uma vez, elevava seus pensamentos a amiga Celha Regina – será que
ela estaria acompanhando o noticiário àquela hora? – Flávia acabava de adentrar
no apartamento...
Linda como sempre,
descabelada um pouco, suada e muito, em trajes de academia...
A saudação foi
genérica, pois o calor do reencontro já tinha se dado um dia antes, quando Felipe
retornara mais uma vez ao Rio para outra folga costumeira, mas a surpresa dela
não foi pequena ao ver o marido hipnotizado defronte a TV...
Quando Flávia
percebeu do que se tratava, ela acrescentou mais lenha à fogueira:
– Teve um homem que te ligou esta manhã,
meu amor...
E toca de subtrair
as roupas sem nenhum pudor...
– Você tinha saído
pra comprar pão... – continuou ela, despudorada, linda – Eu acordei meio que
sonâmbula pra atender ao telefone, depois voltei pra cama, aí depois, quando
acordei de vez, esqueci-me de te falar, mas, pelo jeito, ele queria falar sobre
este caso que tá dando na televisão...
–
Quem era o “cara”? – perguntou Felipe ainda meio robótico, de olho na televisão
faladeira, mas com as orelhas em pé.
–
Não sei não, Felipe... – e Flávia dirigiu-se diretamente ao banheiro, nua em
pelos, afinal estava em casa, e sempre era bela, acontecesse o que acontecesse,
a vida é que era linda, puxa vida! – Acho que tá anotado no papel ali na mesinha
do telefone, mas eu acho que ele era delegado...
Felipe
saltou do sofá com uma agilidade felina...
“Que
porra é essa?!”
Exclamou
pra dentro do seu ser estupefato.
Lá estava, de fato,
o telefone do sujeito, e um único nome, aliás um sobrenome...
Mouzon.
Aquela
vida sensata mais ou menos, o que restava dela, deixou de existir de uma hora
para outra...
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