quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE V - CAPÍTULO 2


       No dia seguinte, ainda sob o manto da Lei, da natureza omnipotente, o céu caliente azul anil, aquecido por um sol inclemente, e tantas disposições em contrário, mas também a favor de uma sublimidade algo oculta, e a despeito da ignorância humana, este sol quase omnipresente iluminava boa parte da Amazônia ilegal.

       Algumas nuvens na realidade talvez quisessem quebrar esta harmonia, mas elas perpassavam acolá do fim do mundo, vasto mundo, onde um inseto sozinho não faz verão, mas uma andorinha talvez.

       E tantas ainda eram as mágoas que residiam na Raposa Serra do Sol...

       Mas com o determinismo da estação vinham também as obrigações institucionais, burrocráticas, estaticoestabelecidas.

       Os Taylors tinham as suas também...

       Embora Susan continuasse entre o Brasil e a República da Guiana, agitando a papelada governamental a fim de tocar o barco, como se diz por estas plagas...

       Mas Charles, não. Precisava voltar à Inglaterra com certa urgência.

       No aeroporto Internacional de Boa Vista, onde faria uma conexão para Manaus, pois aqui não havia vôos diretos para a Europa, ele acompanhava do salão de espera o vai-vem da maçaroca anônima, que não tinha endereço nem identidade confirmada; eram todos como aqueles bonecos do jogo de totó, caras pintadas no mesmo modelo, e quando o artista, sujeito de algum talento, decidia-se por individuar cada elemento, fazia-o pintando algumas dessas carinhas de marrom, exatamente como o quadro que Charles Taylor observava.

       Porém Charles não era um artista de muitos talentos...

       Ele não conseguia, por mais que tentasse, diferençar cada um daqueles indivíduos que desfilavam diante de si...

       Até que em dado momento um deles foi reconhecido...

       Tanaka Osumi...

       De mala e cuia, como ele...

       Com aquele bom humor inglês característico, Charles correu até o amigo e disparou:

       – O Brasil acaba de romper relações diplomáticas com o Japão – disse o inglês com o seu cachimbo amigo.

       Tanaka reconheceu logo a voz, e respondeu sorrindo, mas num inglês tosco:

       – Ainda bem. Estou indo pra Europa.

       – Está de brincadeira, meu samurai!

       – Sério. Tenho negócios em Paris. E na sua Londres brumosa.

       – Não é mais, meu caro Tanaka. Ela agora se tropicalizou. Agora nós temos araras e tucanos a esvoaçarem o Big Bang no meio do Thames mítico.

       – Já imaginou?

       – É sério mesmo?

       – O quê?

       – Está indo pra Europa?

       – Você não me acredita?

       – Claro que acredito... – Charles baforou para o alto. Pra variar, era um fumante inveterado de cachimbos ingleses, aliás, o fumo é que era inglês, o cachimbo não se importava tanto com o sotaque – Costumo acreditar em tudo o que os meus amigos me contam...

       Aqui Tanaka olhou-o com certo ar maroto.

        – Então me deixe fazer uma perguntinha simples...

       – Pois faça.

       – Você que é assim com a rainha da Inglaterra...

       – Como você descobriu?

       – Tenho meus informantes...

       – Vou telefonar pra Susan agorinha mesmo...

       – Sério?

       – Pode apostar todas as armaduras de samurai que você guarda em sua casa de campo no Japão. Tenho de contar a ela que o considero um sujeito extremamente perigoso...

       – Você ainda não viu nada.

       – Eu acredito! Eu o conheço muito bem, seu inescrupuloso! Fora de brincadeira, Tanaka. Esta cabecinha oriental está cheia de caraminholas, não está?

       – Em sua opinião abalizada, honorável Lord, quem você gostaria de ver como sócio dos índios?

       – Não me diga que você...

       Tanaka o fitava como se estivesse num duelo entre samurais rivais. Não piscava.

       – Tanaka! Eu o subestimei!

       – Um verdadeiro samurai sabe tirar proveito disso...

       – Não tenha dúvida, meu amigo!

       – Acho que você entendeu aonde pretendo chegar...

       – Vamos a um lugar mais reservado. Uma boa xícara de chá vai nos ajudar a deslanchar esta agradável conversa. Ainda temos mais de uma hora até embarcar...

       Assim fizeram.

       Minutos depois, num restaurante italiano...

       Não tinham o típico chá inglês entre eles, mas se contentaram com o autêntico scotch escocês.

       – Vamos lá, Tanaka. Repita a pergunta.

       – Você deve saber que as coisas não andam nada boas lá pros lados da Raposa Serra do Sol...

       – Se eu sei? Há dois dias Susan e eu tentamos trabalhar na reserva. As autoridades brasileiras nos aconselharam a não entrar lá...

       – Então...

       – O que mais você sabe que eu não sei?

       – Duvido que você não saiba das coisas, seu imperialista incorrigível!

       – Eu?! Imperialista?! Ora, meu Shogun moderno! Você está muito mais a par do que aparenta. Não zombe da minha inteligência anciã.

       – Todos os anciãos da Inglaterra são tão espertos como você?

       – Num raio de dois quarteirões da minha casa, digamos que uns quatro quintos...

       – Eu sei que os ingleses são mais ardilosos do que o Papa!

       – Ah! Isso nós somos mesmo! Há séculos nós o enganamos!

       – Então, para um adversário a altura das hostes papais, eu vou contar um segredo que nem os jesuítas desconfiam...

       – Estou esperando...

       – Saiba, honorável Charles Taylor, que a reserva Raposa Serra do Sol não pertence mais aos índios...

       – Quem foi que te falou isso? – perguntou um Charles mais sério que o mais sério dos bispos anglicanos.

       – Surpreso?

       – Muito. Onde você obteve esta informação?

       – Bom, digamos que foi com quatro quintos de ingleses sabidos... – ambos riram à socapa. – A título de porcentagem, eu diria que setenta por cento das terras da reserva – pelo menos! – já estão em mãos de particulares...

       – Isto não me surpreende tanto assim.

       – A Amazônia, Charles, em breve não será mais uma região brasileira...

       – Conforme você já tinha comentado conosco...

       – Você não ficou desanimado com isto, ficou?

       – Desânimo não expressa toda a dimensão do sentimento que estou experimentando neste momento...

       – Decepcionado?

       – A Amazônia, Tanaka, pertence ao mundo todo, e a todos os seus habitantes...

       – Eu sou da mesma opinião, Charles. Porém, infelizmente, dentro de pouco tempo ela pertencerá a uma meia dúzia de pessoas...

       – Talvez menos.

       – É... Talvez sim.

       – Bem, meu caro samurai, é hora de partirmos.

       – Estou sentindo que o meu amigo não gostou muito da novidade...

       – Contra o irremediável não há cura. O inevitável já está determinado...

       – Está determinado que nós estejamos na Europa ainda hoje...

       – Porém há certos aspectos do imponderável que é impossível preverem-se. Isto é Física, Tanaka-san.

       – Pois então vamos mover nossos átomos praquele avião fisicamente palpável...

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