quinta-feira, 15 de março de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VIII - CAPÍTULO 2


       O período compreendido entre a primeira chamada e o comparecimento sem delongas podia ser qualificado de nanico, ou seja, segundo alguns especialistas em tempo padrão, num estudo de física especulativa, um nanossegundo seria pouco para mensurar o apogeu da durabilidade para a assim chamada assiduidade dos oficiais com alto grau de profissionalismo.

       Tudo isto, Celha Regina e Felipe Corrientes ignoraram, logicamente, desde o primeiro milésimo de segundo que tomaram consciência integral das pessoas que estavam naquela unidade militar...

Ponto.

As apresentações também, não levaram mais do que alguns segundos, catalogados como fisicamente normais.

       Celha Regina olhou cada um daqueles homens nos olhos, conquanto não exprimisse exatamente seus verdadeiros sentimentos em relação à surpresa daquela convocação extraordinária, porquanto ela em hipótese alguma poderia denunciar seu disfarce, uma vez que aqueles oficiais eram mestres no controle de situações fora de escala...

Esquadro.

       No entanto, Celha Regina, para variar, reagira com a rapidez esperada numa “expert”, calculando os mínimos detalhes. Seu cérebro já trabalhava para solucionar a situação que viria logo a seguir, cuja qual poderia até mesmo imaginar, porém jamais configurá-la totalmente como se materializaria depois, embora, no final das contas, tudo viesse a calhar.

       Já a posição de Felipe igualmente poderia ser prevista, uma vez que ele também se distinguia como um oficial de elite muito bem treinado para improvisos, o que não era exatamente o “status” da missão que se desenrolaria dali em diante, mas ele sempre se apresentava tranqüilo em presença de quaisquer graduados, porquanto sua base filosófica estava bem assentada no universo metafísico.

       O Tenente-Coronel Ceddric, depois de analisar o perfil de cada um dos jovens, tirou suas conclusões acerca dos tipos de seres humanos que tinha diante de si, assim como a competência técnica de cada um, o valor militar necessário, uma vez que fora devidamente orientado por Barreiros, claro está, haja vista que ambos, Barreiros e Ceddric, analisaram os currículos dos dois tenentes antes que a viagem começasse...

       – Não é uma missão muito simples, homens... – disse o sujeito com pinta de mosqueteiro gascão com uma envergadura de comandante de West Point.

       Celha e Felipe continuaram a olhar seu superior muito compenetrados na palestra, sem observar que Armando Paglia roia as unhas, e o Major Pessanha, Brucutu entre os íntimos, mas muito perspicaz, observava o nervosismo do Coronel, o que, para felicidade dele, não fora diagnosticado como devia.

       Barreiros também...

       Não percebera nada...

       Parecia hipnotizado com a fala segura e resoluta do oficial do Estado-Maior...

       Que dizia exatamente o que se segue...

       – A alguns quilômetros daqui, entre os limites de fronteira que temos com a Venezuela... – balbuciou Ceddric monotonamente. – nosso setor de inteligência localizou, via satélite, um aeródromo clandestino... Estamos convencidos que ele pertence aos traficantes de drogas, e ainda pelas imagens de satélite, tudo leva a crer que existem instalações primárias para o refino da droga... – Fez uma pausa breve; muito breve; breve mesmo. Ninguém comentou nada, então Ceddric continuou: – A missão de vocês dois – disse Ricardo Guimarães Ceddric, olhando fixamente os dois jovens nos olhos, que, necessariamente, não o estavam encarando nesta mesma ordem. Ceddric continuou: – Portanto, sua missão consiste em entrar neste acampamento e destruir tudo... – parou novamente. Celha Regina e Felipe simplesmente o olhavam mudos, pensativos, mas sem comentários. – Não está descartada a possibilidade de ocorrer alguns óbitos, mas vocês tem de capturar pelos menos alguns dos cabeças do tráfico... – e parou mais uma vez, torturantemente fragmentário, repulsivo até, chegou a pensar Celha, então reencetou: – Devo mencionar também que, este sítio, na verdade, está localizado em território venezuelano, ou, pior ainda, numa terra de ninguém entre os dois países, o que torna a missão de vocês muito mais perigosa, porquanto clandestina, mas que deve ser feita a qualquer preço, haja vista que as autoridades venezuelanas parecem estar fazendo vistas grossas aos nossos “convidados”, e eles estão agindo dentro do nosso território impunemente, quer dizer, a droga que eles transportam e refinam vem toda para o comércio no Brasil... – Celha cogitou que tipo de missão suicida era esta para a qual os estavam empurrando, mas chegou à conclusão que ela se adequava perfeitamente aos seus planos estratégicos. – Não preciso lembrar-lhes, portanto – continuou Ceddric na sua ladainha – que vocês estão absolutamente sozinhos nessa... – este foi um toque de malícia regada à gíria cuja qual Felipe não apreciou. Segundo o jovem do Rio de Janeiro, havia ali algo não muito bem esclarecido, o que era alarmante, claro... – Não esperem ajuda de qualquer espécie de nenhum setor militar ou qualquer outro – acrescentou o homem do Estado-Maior. – Se vocês forem pegos... ou feridos... ou mortos, ninguém poderá ajudar... nem reclamar ou requerer seus corpos... – Celha e Felipe não agüentavam mais essas pausas carregadas de suspense. Estavam como que enfarados desse joguinho de terror da Suprema Inteligência. – Este trabalho será totalmente voluntário. Nós sabemos que vocês dois estão entre os melhores dos melhores para o serviço... Então? Aceitam VOLUNTARIAMENTE participar desta missão patriótica?

       O semblante de Felipe se iluminou, a princípio...

Com dois olhinhos que pareciam semáforos de raios lasers, seu peito se encheu de um orgulho algo lisonjeiro, por mais que ele fabricasse castelos de cartas acerca de uma sociedade imperfeita, insana, saturada de desejos irrealizáveis, e todos os equívocos da cristandade malsã. Felipe se sentiu útil, vital, insubstituível...

Mas foi uma ilusão passageira...

Que logo o fez cair na real.

– Permita-me uma pergunta, Senhor? – falou Felipe.

       Celha Regina entrou em pânico.

       Ceddric, Barreiros e Pessanha se entreolharam no que parecia estar totalmente fora de roteiro...

       Porém Ceddric concedeu-lhe um último desejo.

       – Qual a verdadeira natureza desta missão? – perguntou Felipe, desconcertante, abalando o eixo das esferas particulares.

       – “Qual a verdadeira natureza desta missão”, Tenente?! – de fato, ninguém havia entendido a natureza da pergunta, e Ceddric muito menos.

       – Eu pensei que você tivesse compreendido, soldado – redargüiu Barreiros um tantinho confuso – pois a explanação do Tenente-Coronel foi claríssima...

       – Foi, Senhor – volveu Felipe, com aquele ar de filósofo obscuro. – Mas eu quero dizer... Qual a verdadeira motivação que se esconde por detrás desta missão, Senhor... Quer dizer, existe uma razão realmente palpável para que nós dois sejamos enviados para o meio do nada, dispostos a morrer como heróis anônimos?... Nem isso talvez! A troco de quê?!

       – Este rapaz enlouqueceu! – esbravejou o silencioso e contido Pessanha.

       Armando Paglia, por seu lado, pensou em desfalecer, como que um doente terminal, ou uma bicha histérica, mas intuiu que aquilo, além de não pegar muito bem para um comandante de batalhão, não ia lhe adiantar muita coisa. Felipe parecia ter enlouquecido mesmo, embora Paglia já estivesse habituado, de certa forma, às esquisitices do seu subordinado.

       – O que é isso, Fê? – sussurrou Celha, emocionalmente chantagista. – Nós somos oficiais do Exército brasileiro... – E voltando-se para seus superiores, dando um ar de fanatismo a sua fala a seguir, interpretando, talvez, o melhor papel da sua vida: – Nós compreendemos perfeitamente a natureza desta missão, Senhor!

       Felipe olhou para ela com um ar de irritação, mas que foi logo contornado com outro golpe igualmente mortal de Celha, que pôs fim a qualquer reação retórica que por acaso Felipe pudesse contrapor.

       – Nós entendemos, inclusive, Senhor, que as vidas de centenas de milhares de jovens brasileiros podem depender desta simples missão de localização e destruição dos inimigos do Brasil...

Isto fez com que Felipe se calasse em definitivo, contanto aquela sensação de vazio existencial permanecesse na mente do jovem.

       Armando Paglia voltou a manifestar um pensamento pessimista, de fracasso mesmo: o que fazer quando todos os seus planos vão por água abaixo e você já se vê aposentado, pescando com a família numa casa de praia no litoral do Paraná, embora Paglia detestasse pescar, até que o sol queime a última das minhocas pesqueiras que você guarda no samburá?

       Esta sensação desagradável tomava conta de todo o ser de Armando Paglia, e que ele não podia expressar, como que engolindo um remédio amargo, sobpena de ver todos os seus sonhos naufragarem nesta praia quimérica...

       Enfim...

       Entretanto, tudo se encaminhou para o desenlace fatídico...

       Contudo, ainda havia uma dúvida, e Celha, como boa maquiavélica, não poderia deixar por menos:

       – Nosso setor de inteligência nos assegura, então, que este campo de pouso clandestino pertence mesmo aos traficantes internacionais de drogas?

       Ninguém entendeu aonde Celha queria chegar, e Ceddric replicou:

       – O que, exatamente, Tenente Nascimento, a senhorita quer dizer?

       Um desabafo automático, num sopro de indignação algo contida, Ceddric virou-se para Paglia e disse:

       – Você tem certeza que esses dois são nossos melhores homens?

       Armando Paglia afundou na cadeira, porém Celha não o deixou se afogar:

       – Perdoe-me o questionamento meio intangível, Senhor, mas minha dúvida tem uma razão de ser. Se nós cometemos uma falha na avaliação da importância do sítio em questão, e a opinião pública venezuelana, ou a imprensa, descobrir que dois estrangeiros invadiram seu território, agora, que a compulsão Chavista na Venezuela é a pior possível, mesmo que para desbaratar traficantes hostis ao mundo todo, o tiro pode sair pela culatra, Senhor. Isto aconteceu na Colômbia e no Equador.

       – Não há nada de intangível em sua avaliação, Tenente. Aliás, ela vem muito a propósito – sentenciou Ceddric. – Acontece que nós não podemos cancelar, ou mesmo postergar, esta missão... As ordens nos foram dadas pelo próprio Ministro da Defesa. Não há como questioná-las, ainda que eu concorde com a senhorita ipsis litteris. Se qualquer coisa sair errada, estamos todos, com o perdão da palavra, FODIDOS!

       – Não há mesmo como contarmos com o apoio da Polícia Federal? – perguntou Felipe, esquecendo-se momentaneamente de suas idiossincrasias revolucionárias.

       – Impossível! – disse, enfático, o General Barreiros. – Como o Tenente-Coronel disse, esta é uma missão extraoficial; sem o aval do governo, ou das Forças Armadas. Estamos atuando em território venezuelano, no meio de uma fronteira mal definida. Não há outra possibilidade, soldados.

E assim estava encerrado um capítulo da história...

Mas ainda havia tempo para subterfúgios...

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