quinta-feira, 22 de março de 2012

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE VIII - CAPÍTULO 3


– O que você espera conseguir com isto, Celha? – perguntou, algo irado, Felipe Corrientes, como se estivesse discutindo uma diferença conjugal.

Celha pensou em dar-lhe uma resposta à altura, mas respirou dez vezes antes de atirar a primeira pedra, porque o seu projeto estava inteiramente ameaçado, e ela não podia desperdiçar esta oportunidade.

Inúmeros problemas surgiram nesta conflagração da Raposa Serra do Sol.

Estavam no dormitório dos oficiais – ainda não soara quatro badaladas no relógio da madrugada – cercados por tudo o que havia de melhor em termos de equipamento militar para o tipo de trabalho que iriam desempenhar...

Isolados de todo o restante do pelotão, como se os companheiros, Paglia incluso, já os computassem como baixas de serviço...

O melhor dos melhores...

Quem poderia se considerar como tal?

Estranha ocasião esta...

Num mundo onde as pessoas vivem buscando respostas para seus principais problemas, e mesmo quando as encontram, continuam a esmurrar a ponta de uma faca pontuda que sangra em catadupas...

A fragilidade de uma nação...

Estas frases cabiam perfeitamente na boca de Felipe...

No entanto ele continuava a fitar Celha, com olhos severos, como que aguardando uma resposta...

E ela veio de forma enigmática.

– A resposta que você quer não pode ser dada agora, Fê... Vamos esquecer todos os questionamentos dos últimos meses, mesmo que eles pudessem ser levados às últimas consequências, mudar nossas vidas para sempre. Eu acho um pouco tarde demais...

– Tarde demais pra quê?

– Olha a sua volta, Fê! Está vendo todo este equipamento de última geração? Nós vamos estourar um acampamento de traficantes de drogas! Vamos nos tornar heróis!

– Ou defuntos.

– Você acha mesmo?

– Esses caras não têm nada a perder... Quer dizer, talvez tenham um prejuízo filho da puta se nós os pegarmos, e por isso vão defender o seu ganha-pão até o último “soldado”...

– Eu continuo achando que eles não vão ter muita chance...

– Seu otimismo é contagiante, sabia? – retrucou Felipe mordaz.

– Eu falo sério... Muito sério mesmo!

– Vamos aprontar essa merda de uma vez, vai – volveu Felipe meio acabrunhado. – Eu desisto! Até mesmo porque, como você bem disse, já estamos na chuva...

– Vai por mim, Felipe. Não vamos nos molhar.

Felipe nem deu mais atenção ao excesso de confiança da parceira. Ele sabia que este era o tipo de coisa que levava muitas vezes as pessoas à catástrofe, mas preferiu apostar na euforia de Celha Regina... Era mais... salutar.

Desempilharam equipamento atrás de equipamento. Armaram-se e vestiram-se com todos os apetrechos disponíveis: roupas camufladas, fuzis, pistolas, pentes de balas para ambas as armas em grande quantidade, granadas, binóculos infravermelhos, GPS, walkie-talkies, e até um aparelho revolucionário...

Um helicóptero os levou a um determinado ponto, próximo do acampamento dos marginais...

Foram penetrando pela mata como onças sorrateiras, dispostas a abater uma grande presa...

A selva em torno do acampamento era uma escuridão infinita, só se ouvia os ruídos da vida fervilhante, mas no acampamento, ao contrário do que se poderia pensar, as coisas aconteciam...

Não se tratava de um grupo organizado militarmente, mas com toda a certeza a disciplina era férrea...

Passava das cinco da manhã quando Felipe e Celha Regina chegaram ao acampamento dos traficantes...

Localizaram seus alvos...

Aproximaram-se bem devagar...

O café da manhã era servido...

Um grupinho conversava e comia perto de uma fogueira a frente de um conjunto de barracas de camping de porte médio...

Havia luz em outras duas barracas grandes, e movimento de saída e entrada de homens...

Pareciam já estar trabalhando...

Havia também mulheres no meio do grupo...

Armadas, inclusive.

Duas jovens morenas serviam este grupo, que conversava bastante animado em frente à fogueira, com alguns quitutes indistinguíveis...

O café derramava-se nas canecas reluzentes...

Todo este movimento era acompanhado pelas lentes dos binóculos infravermelhos de Celha e Felipe.

– O que você acha? – perguntou Felipe, com um grau de tensão que poderíamos identificar como alerta vermelho.

– Tem muita gente lá, Fê... Parece mais um acampamento de jovens universitários do que traficantes de drogas...

– Como vamos pegar os cabeças desse negócio? – volveu ele quase em desespero, largando o binóculo e dirigindo-se a Celha.

– Na minha opinião o nosso alvo deve se concentrar naquelas barracas grandes ali, ó... Dá só uma olhada...

– Tô vendo... Que que tem?

– Ali deve estar o ouro, Fê...

– Mas pra nós chegarmos até lá vamos ter que passar por um exército primeiro...

– Ora! Exércitos é nossa especialidade!

– Fala sério!

– Eles estão distraídos tomando o seu desjejum...

– Eu não tenho dúvida que a qualquer sinal de nossa presença eles vão se transformar em máquinas assassinas.

– OK. Vamos traçar um plano estratégico...

– Fique à vontade para sonhar, meu bem...

– Eu não sabia que você era meio gaiato...

– Só quando a minha vida está por um fio... Afinal sou um filósofo à moda antiga...

– Então vamos começar, meu Sócrates tupiniquim. Bala na agulha. Checar equipamento...

– Tudo em cima... Parece.

– Pra mim também...

– Quando você quiser...

– OK. Um de nós contorna o acampamento, se posiciona e começa a explodir os pilantras pra dispersar, o outro entra atirando, visando as barracas grandes, onde provavelmente acontece a produção de drogas e/ou contabilidade e comunicação. O que seguir por este caminho não pode errar...

– É o caminho dos campeões, Celha...

– Eu sei, Fê... Eu vou neste...

– Não!... Você não pode...

– Porque não?

– É a parte mais difícil...

– E você quer me proteger? Sai fora, Fê! Você ainda acredita neste tipo de coisa?!

– Agora não importa mais no que eu acredito ou deixo de acreditar...

– Eu vou esperar você plantar os ovinhos. Não vai acontecer nada comigo. Nossa missão será um sucesso, cara!

– O que você tem? Bola de cristal?

– Não, apenas uma fé inabalável em nós dois...

– Huuuuum!

– O que o futuro nos reserva, Fê... Ah, deixa pra lá!

– Eu acho bom, viu? Agora nós temos que ser apenas soldados... Não é assim que devemos pensar, “camarada”?

– Vai, lindão! Eu vou dar uma de Clint Eastwood hoje...

– Esta parte do filme, geralmente, é o mais fodão que faz...

– Então... Eu vou te mostrar quem é foda aqui...

– Mas...

– Vai, Fé, ou eu começo a atirar daqui mesmo...

Felipe não discutiu mais com sua...

O quê?...

Amiga?

Como ele mesmo disse, isto não importava agora.

Eles ligaram o revolucionário aparelho de deflexão de imagem, uma “caixinha” do tamanho de um rádio de pilha, afixada ao cinto de utilidades no uniforme militar.

Subitamente, os dois deixaram de existir...

Entretanto, os dois corpos não deixaram de ocupar o seu espaço no terreno, mas suas silhuetas, sim, desapareceram das vistas de todas as possíveis testemunhas. Entretanto, caso esbarrassem em alguém, o contato seria normal, embora continuassem “invisíveis”.

Esta tecnologia vinha sendo experimentada secretamente nos laboratórios da indústria brasileira de armamentos, e ninguém, em qualquer parte do mundo, tinha conhecimento disto.

Felipe contornou o acampamento calmamente...

Celha esperou...

Cada um dispunha de sete granadas em seu equipamento pessoal. Felipe lançou mão logo de duas...

Que explodiram aleatoriamente...

Alarme no acampamento...

Todo mundo gritava, corria, e alguns atiravam a esmo...

Esta era a parte perigosa da missão, porque, mesmo invisíveis, uma bala perdida poderia atingi-los...

Mais duas explosões...

Que atingiram em cheio algumas barracas dos traficantes...

Dois corpos foram arremessados à distância. Duas primeiras baixas no seio dos traficantes.

O acampamento estava em polvorosa. Alguns “soldados” do tráfico, em pânico, continuavam a atirar num inimigo invisível...

Outra explosão...

Mais baixas...

Inúmeras...

Muita confusão...

Celha Regina agiu...

Entrou correndo numa das grandes barracas que escolheu na sorte...

Ninguém a podia ver, porém, infelicidade, quando ia entrar na barraca grande e iluminada, uma pessoa ia saindo da mesma...

Encontrão, terror, mais confusão, porém ainda assim Celha percebeu que ali os traficantes preparavam a pasta primordial de coca, exatamente como eles supunham.

O tiroteio desesperado dos traficantes continuava...

Eles não viam ninguém...

Celha esperou no fundo do seu coração que as balas também não pudessem ver Felipe na escuridão, agora iluminada por fogueiras extras, algumas barracas pegando fogo por causa das explosões.

Mais uma explosão monumental...

O paiol de produtos químicos dos traficantes...

“Boa, Fê!”

Ela olhou na segunda grande barraca. Acontecia o mesmo que na primeira...

E agora?

Mais uma explosão...

A última da munição de Felipe...

O caos no acampamento era total...

Dois traficantes morreram fuzilados pelos próprios companheiros, em pânico devido aos “espíritos” que atacavam o acampamento.

Enquanto isso, uma vez terminado o arsenal de granadas, Felipe se pôs a procurar a mesma coisa que sua parceira. Não se comunicavam, pois eles poderiam ser interceptados pelos traficantes, e a surpresa, e o pânico do desconhecido, acabariam.

Celha ligou seu walkie-talkie, mas sua intenção não era falar com Felipe, e sim rastrear possíveis tentativas de comunicação dos traficantes, para isto dispunha de vários canais com este intuito.

Ela conseguiu...

Eles, de fato, tentavam se comunicar com alguma espécie de posto de vigilância ou apoio que deveria existir ali por perto. O espanhol era uma das línguas que Celha falava com desenvoltura, mas aquele sotaque ela não conseguia entender a contento.

Procurou localizar o posto de rádio dos traficantes no acampamento clandestino...

Não demorou a encontrar...

Uma granada pôs fim às comunicações dos traficantes...

Agora a coisa iria se complicar, visto que os traficantes não sossegariam enquanto não encontrassem os “fantasmas” que os atacavam no seu valhacoutinho...

A busca continuava...

A corrida contra o relógio também...

Acontece que Celha sabia como achar o chefe daquele campo...

Embora ele não estivesse na sua excelente barraca naquele preciso momento...

Foi Felipe quem topou com ele primeiro...

Celha ligou seu walkie-talkie...

O chefão dos traficantes atendia pelo nome de Comandante Salas, e este também possuía um walkie-talkie militar como o de Celha...

Felipe fazia o mesmo, tentando rastrear mensagens entre os próprios traficantes...

Todo mundo, naquele campo, procurava por Celha e Felipe, embora não soubessem exatamente o que buscar, mas ninguém poderia achá-los...

A não ser que alguma coisa saísse errada com seu equipamento de última geração...

E foi o que infelizmente aconteceu...

Alguma interferência de ordem física entrou na freqüência onde funcionava o aparelho de deflexão de imagem, fazendo com que o mesmo deixasse de funcionar...

O pior é que Felipe e Celha não perceberam a falha, o que quase foi fatal para ambos...

Porém Felipe teve mais azar que a companheira...

Ele estava a poucos metros do Comandante Salas quando foi localizado...

Os homens que acompanhavam o Comandante atiraram sem pestanejar...

E erraram o alvo por muito pouco...

Talvez o medo os tivesse prejudicado...

Ainda bem que eram ruins...

Felipe não demorou a perceber a falha no aparelho, e correu...

Ele dispunha de toda a munição que trazia, pois ainda não fizera um disparo sequer...

Celha, em outro ponto do acampamento, com o walkie-talkie funcionando, ouviu a fala dos traficantes que perseguiam a Felipe...

Desta feita ela os compreendeu bem demais...

Felipe e Celha agora estavam indefesos diante da fúria e do maior número dos bandidos. Teriam de implementar um plano de retirada, pois a missão havia fracassado...

Antes de iniciar o caminho que a levaria na direção do amigo em perigo, entretanto, Celha acionou um canal particular em seu aparelho de comunicação, e falou com a Polícia Federal em Boa Vista...

Os dois oficiais em missão clandestina só teriam de sobreviver o tempo necessário para que os federais chegassem até aqui...

Teoricamente parecia muito fácil...

Começara a brincadeira de gato e rato...

O Comandante Salas era um homem duro. Não tinha a aparência típica dos indígenas de origem andina, mas apresentava uma tez morena de origem espanhola, queimado de sol, altura média, cerca de 1,80m, cabelos quase negros, bigodes fartos, expressão sombria, gelada, um homem talhado para este serviço, que não poupava nada para atingir seus objetivos ou para se proteger, tampouco hesitava em sacrificar os seres humanos que tivessem o azar de estar sob seu comando, na selva ou em qualquer lugar.

E era num momento como este, no ápice de uma situação limite, cujas vidas de dezenas de bandidos, bem como um trabalho lucrativo de semanas ou meses sem conta pendiam numa balança, que o Comandante Salas se sentia no seu elemento, mostrando todo o seu treinamento pragmático.

Na verdade Salas ansiava por ocasiões como esta. Seus olhos brilhavam de felicidade.

A possibilidade de enfrentar um batalhão do exército, ou centenas de policiais federais e vencê-los, revivendo as históricas batalhas da segunda guerra mundial, quando os generais nazistas, seus heróis de cabeceira, combatiam os inimigos aliados, deixando a Europa de joelhos...

Ah! Salas tinha orgasmos de prazer ao comparar-se com aqueles generais idos...

E imaginar a Europa em chamas, transpondo tudo isso para a selva Amazônica!

Rommel...

Von Bock...

Von Rundstedt...

Guderian...

E tantos outros!

Vencedores dos orgulhosos franceses e ingleses…

– Vocês agora já viram que nós não estamos enfrentando fantasmas, seus imbecis degenerados! – berrava Salas a plenos pulmões para seus comandados. Se Salas falasse alemão, na certa teria usado esta língua para expressar-se. – Eu quero esses papagaios brasileiros aqui na minha mão... Entenderam?

Ninguém se atrevia a contraditá-lo nessas horas.

– Mexam estas bundas sulamericanas, seus imprestáveis! – continuava a gritar Salas. – Vamos mostrar a esses soldadinhos de merda que eles estão lidando com a elite do tráfico!... Vamos! Vamos!

Os “soldados” se dispersaram.

Salas pegou seu walkie-talkie e falou:

– Não se esqueçam! Não quero mortes desnecessárias... Entenderam, seus bostas?

– Bonito discurso... Salas...

O chefe dos traficantes olhou atônito aquela aparição, que não era sobrenatural, mas causou-lhe um mal-estar semelhante.

Celha Regina, que saíra sorrateiramente do meio da vegetação, apontava-lhe o fuzil diretamente para seu peito...

Se ela disparasse daquela distância, muito provavelmente lhe partiria em dois.

– Quem é usted? – perguntou o Comandante Salas ainda descolorado, num portunhol sem-vergonha.

– Eu faço as perguntas agora, seu crápula! – volveu Celha ferina. – As suas comunicações já eram... Eu mesma dei cabo delas... Vocês estão isolados.

– Cuantos vocês som? – perguntou o traficante, com uma frieza que demonstrava alguma demência.

– Dentro em breve estas matas estarão cheias de federais...

– O que significa que ustedes estom em menor número, muchacha.  

 – Não haverá tempo pra nós medirmos força, “Comandante”...

O walkie-talkie de Salas deu sinal de vida...

– Atenda – ordenou Celha com o fuzil apontado para ele.

Celha Regina pôde compreender muito bem o que foi dito por um dos comandados de Salas:

“Comandante. Nós cercamos o hijo de puta. Ele está ferido”...

Celha deixou seu fuzil cair, pálida...

Salas sacou sua pistola imediatamente, sem piscar um olho.

– Quantos ustedes son? – perguntou Salas entredentes. Agora ele apontava sua arma para uma mulher combalida, desarmada moralmente.

– Apenas dois – respondeu ela, em espanhol, com incrível tranqüilidade. – Mas não creio que você consiga muita coisa da gente...

– Eu não seria tão otimista na sua posição, senhorita... – volveu salas todo sorriso.

Todavia, o que se seguiu a este pequeno entrevero estava dentro dos planos...

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