quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - unidade I - capítulo 2


A tropa seguia o labirinto verde, inexoravelmente, cortando galhos e arbustos desprotegidos, sob as pancadas cutilantes dos facões militares. Milhas e milhas de um emaranhado vegetal infinito, como os caminhos do espaço sideral, quase inesgotáveis, cada gota de orvalho significava um estrela longínqua, até se depararem com as primeiras povoações indígenas da Raposa Serra do Sol...

Silêncio absoluto.

Tudo parecia deserto. A imensidão da floresta, os corações alheios, o conflito de vaidades, a oposição dos egos...

Os soldados, sob o comando do capitão Siboldi, ladearam toda a aldeia, até que tiveram um panorama total das formas e disposições dos índios naquela clareira.

Todos os índios ainda dormitavam o sono dos justos, até que os latidos dos cães denunciassem a presença de estranhos...

Os índios sabiam...

Uma parte da tropa, ao sinal de Siboldi, espalhou-se pelas redondezas. Apenas um pequeno grupo permaneceu ao redor de seu comandante.

Uma ladainha trocada entre os índios mais experientes, imitando trinados de pássaros, logo deixou claro a Siboldi que eles tinham sido identificados...

O Clima esquentou durante certo momento...

Os índios não falavam uma palavra de português, ou faziam questão de que os soldados pensassem desta maneira, mas como uma meia dúzia de militares falava o inglês perfeitamente, incluindo o capitão Siboldi e o Primeiro-Tenente Corrientes, e a situação estivesse mais ou menos mapeada por parte do 7º PEF, a questão pôde ter início...

O cacique José Ngá-Waimerê, pintado para guerra, acompanhado de cinco dos mais valentes guerreiros da tribo, saíram de posições ocultas na mata. Eles carregavam arcos e flechas prontos para disparar...

Mas o capitão Siboldi teve sangue frio para determinar a seus homens que não reagissem a nenhuma provocação.

Todos os soldados travaram suas armas, dando a entender aos índios que não havia nenhum clima de animosidade entre “brancos” e “civilizados”.

José Ngá-Waimerê falou num inglês tosco:

– Vocês não amigos de macuxis. Vocês fora de povo macuxi. Nós não querer brasileiros aqui.

– Quem disse que os brasileiros não são amigos dos macuxis? – perguntou Siboldi, um homem com pinta de galã italiano década de 60, com aquela expressão de cafajeste latino irresistível para as mulheres. Entretanto, sua fala destilava equilíbrio e sobriedade, obviamente tudo meticulosamente ensaiado, interpretado para a ocasião.

– Macuxis traídos por brasileiros. Brasileiros diz amigo, mas gado avança, arroz avança, riqueza macuxi roubada tempo todo, homem branco planta monocultura, quer tomar tudo e macuxis ficar miseráveis.

– E quem são os amigos dos macuxis?

– Homens brancos de fala outra amigos de macuxis.

– Mas estes homens brancos é que querem enganar macuxis, não os brasileiros. Eles conseguiram a sua confiança, Grande Chefe, e não vai demorar muito vão roubar vocês também.

– Aqui, esta terra, todo mundo é estrangeiro, a não ser índios. Brancos de fala não português alertar meu povo. Eles não querem terras...

– Deixe-me dizer uma coisa, Capitão – suplicou Felipe. – Por favor!

Siboldi não gostou da interrupção, e isto era visível, porém não disse mais nada, então Felipe atacou em inglês:

– A primeira coisa que os estrangeiros querem, José Ngá-Waimerê, é que vocês odeiem os brasileiros. Este é o primeiro passo para eles penetrarem nesta reserva. O Segundo passo será enganá-los e então eles vão tirar dos índios as terras que lhes pertencem. Eles já fizeram isso de onde vieram. Lá nas terras dos “brancos de outra língua” também havia índios e esses foram exterminados. Homem Branco não é de confiança, seja de que raça for...

– Se chefe brasileiro dizer assim, é porque estrangeiro ter razão...

– Que porra é essa, Corrientes?! – esbravejou Sibolbi. – Você quer me foder, caralho?! Nós estamos aqui numa missão de paz e você acaba de colocar mais lenha na fogueira!

– Estou tentando ajudar, capitão...

– Então cala essa porra dessa boca estúpida, caralho!

– Brasileiros não ter coração – volveu Ngá-Waimerê decepcionado. – Homem branco diz ajuda, mas vem aqui e quer tudo de nós, até nossas mulheres brasileiros apodrecem. Macuxis não quer ninguém aqui...

– O grande Chefe está certo... Homem branco estraga índios – tentava contornar uma situação difícil Siboldi. – Mas não são todos os homens brancos que querem prejudicar macuxis. Nós estamos aqui para prender esses brasileiros ruins que querem enganar vocês. Mas os estrangeiros não podem fazer nada contra esses homens maus. Sabe porque, Grande Chefe?... – José Ngá-Waimerê olhou para Siboldi com uma expressão espantada. – Porque estrangeiros são sócios dos brasileiros ruins, e juntos vão enganar índios. Mas nós, do exército do Brasil, podemos prender todos os homens maus e expulsar os estrangeiros mentirosos, desde que macuxis nos mostrem quem são eles...

José Ngá-Waimerê levou muito tempo pensando no que Siboldi tinha dito.

Os acompanhantes do Chefe Macuxi olhavam a situação sob o ângulo do seu chefe, com os arcos retesados; a um sinal deste, eles estariam prontos para a “guerra”.

Os homens do grupamento do 7º PEF permaneceram escondidos em outros pontos da mata, prontos também para o caso de haver um conflito, porém a mortandade entre os índios seria enorme, embora Siboldi não estivesse muito preocupado com essas possíveis baixas, sua inteligência espiritual era incapaz de enxergar além do véu difuso da materialidade.

– Ngá-Waimerê não acredita no Grande-Chefe brasileiro. Macuxis só têm esta terra que viver, porque nossos deuses deram terra pra nossos avós, e nossos avós defenderam sempre terra de outros brasileiros que falavam diferente, e Macuxis só deixarão esta terra quando as vidas não mais estiverem nesta terra, assim vocês, brasileiros de roupas de guerra, e nós, Macuxis, não somos amigos. Vocês deixar reserva.

Era o fim de uma tentativa louvável de entendimento previamente programada para fracassar.

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