quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - O ROMANCE. PRIMEIRA PARTE: RAPOSA SERRA DO SOL - UNIDADE I - CAPÍTULO 1


Mas naquela noite específica uma inquietude algo descontraída o assaltava persistentemente...

       Ele tentou não dar tratos à bola, despistar, até dormir, quem sabe sair para ouvir os gritos e sussurros da floresta, os grilos e os pássaros noturnos; o intuito, na verdade, era distrair a inquietação inexplicável e atrair o sono para seu dormitório, que dividia com mais três ou quatro oficiais, porém não conseguiu...

       Saiu do dormitório e dirigiu-se direto ao refeitório do quartel, sem escalas, mas a hora do jantar havia passado a um par de horas, o que não diminuía em nada sua disposição de deixar o tempo morrer, como numa sinfonia quase inacabada...

       O silêncio era quase unânime para aquele jovem alto, corpo atlético, moreno de praia, e branco no registro civil. Os cabelos castanhos escuros não penteavam convenientemente, mais por uma questão de modismo do que devido à maleabilidade dos fios capilares, ainda que ele detestasse qualquer menção ao conceito “moda”. Aliás, em muitas outras coisas seu gosto andava na contramão da história.

       A grande maioria dos oficiais, como também dos soldados, àquela hora, já se preparava para dormir. A Alvorada seria as quatro da matina! Haveria caminhada de reconhecimento pela mata fechada no meio da reserva Raposa Serra do Sol, aonde uma série de conflitos fundiários históricos vinham ocorrendo entre índios e colonos pelo domínio das terras a nordeste de Roraima, conflitos esses, que, segundo os militares, envolviam muito mais do que uma simples queda-de-braço por terras, e sim a soberania nacional, fato típico de um mundo cujas nacionalidades, decididamente, haviam deixado de existir desde que a bandeira do mundo passou a ser uma só...

       Entretanto, no fundo de sua consciência incendiada, o que ele ansiava mesmo era cair nos braços de Celha, a quem tinha quase a certeza, muito mais ansiosa do que ele próprio, provavelmente padecia do mesmo mal...

       Um fogo que devora as entranhas do corpo em ebulição...

       Mas, decepção, Celha não estava! O refeitório se encontrava completamente vazio.

       Uma garrafa térmica de chá, a esta altura do campeonato gelado, acompanhada de alguns copinhos descartáveis de plástico – açúcar ou adoçante? – passava algumas horas em cima de uma das mesas do amplo salão. Mas nem tudo aqui em Roraima era grande como poderia se supor...

       Ele resolveu esquentar o chá, isto é, se realmente encontrasse um fósforo...

       – Eu sabia que você estava aqui...

       Celha.

       Ele ouviu-a meio com cara de bobo, embora não soubesse exatamente o porquê, e não havia motivo mesmo para tal.

Sorriu em seguida, um sorriso indeciso, sem sal...

       – Você está procurando isso? – perguntou ela sorridente, zombeteiramente marota, porém quase infantil; morena aveludada bonita, curvas bem estruturadas, cabelos crespos ligeiramente desbotados, cheirando a louros, olhos verdes piscina completando um quadro pitoresco sensacional, obra esta capaz de paralisar todo o trânsito na Amazônia...

       Agora sim Felipe sorria pra valer!

       – Vou querer também! – volveu ela, notando o que colega tencionava fazer...

       A solicitação de Celha, entretanto, soou mais como uma imposição descontraída, imperiosa, mas no que tinha de mais sensual possível naquela voz um tanto chorosa, embora entre ambos não existisse nada, exceto um respeito mútuo, uma amizade profunda e uma camaradagem acima de qualquer suspeita, num mundo coalhado de desconfiança humana...

       (Não pode haver nada entre oficiais no exército brasileiro; nenhuma relação pessoal, íntima, seja qual for a natureza da opção sexual envolvida. Isto reza a lei, mas havia outra lei, que não fora escrita, e que não costuma ouvir a razão humana.)

       Felipe Mateus de Castro Corrientes, e Celha Regina do Nascimento eram ambos Primeiros Tenentes do 7º PEF – Pelotão Especial de Fronteira. Lotados no município de Uiramutã, dentro da reserva Raposa Serra do Sol.

       Felipe pegou a caixa de fósforos no ar, atirada pelas mãos de Celha, que já havia se sentado numa das mesas do refeitório vazio, esperando pelo chá requentado, mantendo aquele sorriso condescendente, cúmplice.

       A ação de requentar o chá não trazia em si nenhuma motivação ao pensamento profundo de Felipe, mas por incrível que pareça, eles mergulhavam neste instante num mutismo inteiramente atemporal, suscitando mesmo controvérsias de um para com o outro...

       – Eu sei porque você perdeu o sono... – encetou Celha, misteriosamente incógnita, abandonando o tom descontraído.

       Felipe não respondeu, mantendo uma restrição absoluta ao assunto.

       – Eu também fiquei preocupada...

Celha continuou séria.

       Felipe parecia intrigado com um fenômeno simples da natureza, a chama azul emitida pelo bocal semiautomático do fogão militar.

Fitando a amiga logo depois, sua expressão dizia: “É”...

       O chá quase ferveu...

       Felipe correu para desligar a boca, tudo isso visivelmente encafifado...

       Ele pegou dois copinhos de plástico descartáveis. Ia colocar açúcar, mas Celha declinou. Despejou duas colherinhas no seu próprio copinho. Celha chiou:

       – Quanto açúcar, Felipe!

Houve um hiato de emoções claras a partir de então, logo quebrado com um divertido... “Isso faz mal!”

       Ele teve de desfazer a operação, profundamente distraído, contrito mesmo, sentindo-se culpado devido ao açúcar...

       Tudo de novo!

       Encheu outro copinho...

       Desta vez com menos açúcar...

       Celha bebericava o seu chá requentado...

       Mas o motivo de tanta insônia permanecia...

       Quem sabe os dois talvez...

       Não havia ninguém ali para testemunhar...

       Mas será que ele queria isto mesmo...?

       E Celha...?

       Quais seriam as motivações dela, calcadas no simples fato de ser uma mulher no meio de um batalhão de homens ávidos por aventura? Porque aquilo poderia ser sintetizado desta maneira, ou não?

O que fazia com que um bando de seres humanos se refugiasse nos confins de uma selva interminável?

Tá certo que a maioria era original daquelas terras mesmo, o que significava dizer que aquele dia-a-dia nada mais era do que uma extensão de sua cultura natural, mas...

Patriotismo?

Nos dias de hoje?!

Quais as motivações legais ou ilegais, quais os fundamentos sociais em jogo para este tipo de empreendimento quando se sabe que civilização não é isto?... Quer dizer, dependendo do tipo de civilização que pretendemos desenvolver...

Isto na opinião de Felipe Corrientes...

Nenhum leitor, necessariamente, há de concordar ou discordar desta teoria...

       Em suma, Felipe não imaginava os motivos daquelas sensações ambíguas, quando o normal era justamente...

Aliás, ele nem tinha uma noção enraizada do que significava aquele ambiente todo, aquela imensidão toda, aquela angústia inexplicável, própria de sua natureza poética, não tanto hedonista, talvez um tanto quanto insana, mas certamente trágica no sentido da vida em si, retirada a explicação religiosa da coisa, e todo o miasma acumulado por eras de equívocos humanos...

       Não era este o motivo da insônia, ainda que se admitisse que uma simpatia mútua pudesse catapultar o nascimento de uma relação não tanto inverossímil quanto parecesse, mas era fato que o “acidente” que os tornava homem e mulher naquele exato instante não significava nada...

       Nada?

       Nada, não...

       Alguma coisa aquilo tudo significava, sim senhor!...

       Felipe não soube exemplificar para si mesmo o que queria a não ser aquele profundo sentimento de que tudo não valia a pena; tudo significava um montão de escória humana envolta em erros históricos que jamais poderiam ser modificados segundo aquele paradigma incontrolável...

       E com toda a certeza Celha compartilhava daquela opinião, pelo menos em termos espirituais, embora eles nunca tivessem discutido isto assim, desta maneira...

       Enfim...

Eram todos humanos, sim, e as artérias pulsavam desejos muitas vezes incontroláveis por conta de uma infraestrutura voltada para cegar a razão maior que há no universo...

Mas o que vem a ser isso, meu Deus?!

Muito provavelmente Celha e Felipe não sabiam...

Aliás, muita gente desconhecia igualmente...

– Eu sei porque você perdeu o sono, Felipe... – repetiu Celha, que na verdade não tinha muito a acrescentar naquele momento.

Ele encarou-a muito seriamente, embora evitando fitá-la nos olhos, foi aí que ele percebeu pela primeira vez um sinal muito pronunciado que a exuberante jovem dama possuía perto do lábio inferior, do tamanho de uma uva-passa murcha em demasiada exposição ao frio...

– O que você quer na verdade?

A curiosidade da tenente Nascimento contagiava.

– O que eu quero? – indagou Felipe confuso, incrédulo, talvez nem quisesse compreender o âmago da coisa ao qual se referia a colega...

Mas será que ela vinha com segundas intenções...?

– Não adianta querer tapar o sol com a peneira, Felipe... – tudo era perturbação agora. – Eu sei que você e o Capitão Siboldi se odeiam...

– Pera lá! – quicou ele, amuado, mas ao mesmo tempo com certo alívio refrescante. – Eu não odeio aquele bacaca! – Felipe percebeu que havia falado muito alto, mas agora era tarde, já havia se pronunciado, no entanto, depois disso, passou a falar mais baixo, porém, de certa forma, aliviado... – Ele que cisma em me provocar de graça, só isso! E o pior é que eu nunca dei motivo pra isso...

– Isso é assim mesmo, Felipe – Celha tentou consolá-lo, escatologicamente, com aquela conversa de cerca Lourenço, ela que tentava consolar a si própria. – Nós encontramos pessoas que foram colocadas no nosso caminho para nos testar, sabia?

– Este é o argumento mais kardecista que eu já ouvi da sua parte, e eu não pretendo discutir espiritismo neste momento...

– Mas você conhece a natureza desses argumentos?

– Claro! Eu tinha uma tia que era kardecista praticante. Lá em casa havia vários livros espalhados pelos cantos, até no banheiro, porque ela tentava convencer a minha mãe, de qualquer maneira, a aceitar a doutrina...

– E agora você tá aí, querendo desentalar o Siboldi da sua goela, e tentando negar os argumentos suprahumanos – completou Celha de forma irreconhecível para Felipe.

– Eu acho que é justamente o contrário – replicou o rapaz, mais uma vez confuso.

– Eu também não gosto dele, sabia?

– Tem qualquer coisa de errado com ele...

– Tem qualquer coisa de errado com o mundo, talvez.

– Há qualquer coisa nele que me causa um desconforto... – disse Felipe sem atentar ao que a companheira declarara. – Não sei... Uma sensação incômoda... Sei lá! É como se eu soubesse que alguma coisa está pra acontecer e que vai nos envolver a todos de uma forma definitiva, mudando o curso da história, e justamente o Siboldi será a mola pra todo o negócio...

– Pera lá, meu filósofo! De onde você tirou tudo isso?

– Mensagens da alma, quem sabe?

– Nós não podemos nos dar ao luxo de pensar desta maneira, sabia?

– Porquê?

– Porque nós somos militares...

– E o que tem a ver o cu com as calças?!

– Nós estamos aqui pra cumprir uma missão, e isto você sabe muito bem...

– Eu não sei mais se acredito nisso, sabe...

– Meu Deus, Felipe! Isto é alta traição!

– De’xa de ser debochada, vai... Olha, você quer alguma justificativa para a existência de exércitos?

– Não. Não precisa entrar em detalhes. Eu conheço sua tendência pra questionar as coisas mais absurdas do mundo. Só me pergunto o que um garoto da Zona Sul do Rio de Janeiro veio fazer na Amazônia...

– Você quer mesmo saber? – desta feita Celha limitou-se a acenar discretamente com a cabeça.

Felipe explicou:

– Eu simplesmente achava que esta poderia ser uma profissão decente...

– Decente?

– Quer dizer, eu não tinha mesmo nenhuma aptidão especial, aí o meu pai, por ser um ex-militar, filho de ex-militar...

– Convenceu você a seguir a mesma profissão que duas gerações já exerceram com honra?

– É mais ou menos isso...

O silêncio invadiu a arena das emoções mal disfarçadas.

Por um instante tudo parecia fadado ao fim do espetáculo, mas a curiosidade levou vantagem sobre o segredo...

– E você? – perguntou Felipe, repentinamente ousado, embora não fosse encorajado a isto. – Não foi por pressão familiar que você está aqui hoje, né?

– Não...

Celha se segurava, ainda que seu companheiro percebesse que uma hora ela iria explodir, o que não demorou um segundo...

– Você alguma vez já visitou a periferia de Recife, Felipe?

Ele se mostrou surpreso com aquela interpelação, embora conhecesse mais ou menos a história da sua amiga, mas não em detalhes.

– Nunca – respondeu ele reticente.

– Eu sou filha de pais muito pobres, de um bairro paupérrimo da periferia miserável de Recife; um lugar onde as oportunidades são bem próximas à zero. Dificilmente uma pessoa nascida naquele lugar pode ser outra coisa senão bandido ou prostituta, e eu perdi dois irmãos e uma irmã na marginalidade. Dos dois irmãos, um era assaltante e o outro traficante; minha irmã contraiu AIDS fazendo programas com turistas na Praia de Boa Viagem. Acabou num hospital de caridade sustentada por religiosas estrangeiras. Eu sou a caçulinha, a última esperança de uma família sair das páginas das estatísticas da ONU. Eu, particularmente, acho que só escapei desta vida porque talvez o Nosso Senhor lá em cima tenha colocado o seu dedo sobre mim e decretado: “Levanta-te e caminha”...

– Grande Celhinha! – respondeu Felipe solidário. – Você é uma vencedora, sabia?

– Mas porque nós viemos parar nisto?

– Aonde? Na Amazônia?

– O destino... Às vezes eu acho que nós somos peças de um jogo disputado entre anjos e demônios...

– Talvez não sejam anjos e demônios, e nós não sejamos tão inocentes e sem recursos como parecemos...

– Pode ser, mas como nós vamos ter certeza disto?

– Talvez não tenhamos nunca!

– Nunca é tempo demais...

– Pode ser, mas quem vai saber? Somos incompetentes demais pra descobrir...

– E o capitão Siboldi?

– Que que tem?

– Qual o papel dele neste jogo?

– Qual o papel da violência nesta encenação? Segundo Krishnamurti nós engendramos uma sociedade que respira violência em todos os sentidos. Tudo nos divide e separa, inclusive no seio das próprias famílias. Até as preferências no futebol agem neste sentido...

– E as forças armadas? Qual o papel delas neste jogo?

– Também é uma justificativa hipócrita pra indústria da violência...

– E os índios? Qual o papel deles neste jogo?

– São manipulados com mais facilidade por estarem inseridos num contexto em que nada disto lhes diz respeito. É como o ódio ancestral entre árabes e judeus, por exemplo... Você há de convir que existe aqui um mercado promissor em termos de violência, basta acirrar os ânimos dos mais ignorantes, no caso a esmagadora maioria, pra que os senhores da guerra tenham sempre clientes ao seu dispor, e o Brasil está nesta dança, porque vende armas também...

– Então nós somos marionetes dos senhores da guerra? Mas quem são os senhores da guerra?

– Os mesmos que manipulam os índios, os árabes, os judeus e os brasileiros...

– E nós somos os profissionais da violência?

– Infelizmente, Celha...

E ficaram por aqui, pois nunca chegariam ao fim disso tudo.

Todos os fósforos estavam apagados, inúteis, e as bocas do fogão militar idem, e o chá, outra vez frio, servira a sua função social, apesar de todos os desejos carnais terem sido assimilados na conta de transcendências kardecistas absolutamente descartáveis, mas talvez esta não fosse a melhor explicação para o início de tudo...

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