Quando abriu a
porta da geladeira... Madrugada adentro, tudo escuro... Que susto danado! Um
sanduíche americano, pelo menos parte do que sobrara dele, foi ao chão cuspindo
caquinhos de louça colorida pra todo lado...
Alface,
tomate, pasta de atum e queijo amarelo, fatiados e despedaçados, jaziam no chão
enladrilhado e frio, como no Alaska...
Ele
ficou ligeiramente preocupado com o sono da esposa nua ainda na cama,
adormecida, após uma longa noite de amor como nunca se viu...
Nooooossa!
Que exagero das colunas sociais que levantam páginas e mais páginas de assuntos
decididamente inúteis!
Não
foi assim... tão maravilhosamente maravilhoso como pensou um Tigre...
Isso até passava pela
cabeça de um homem jovem adulto no auge do seu potencial sexual, mas...
Definitivamente...
Realmente?
Foi
muito bom. E ponto final.
Mas
houve dias melhores...
Outros
virão...
Ele
andou até uma poltrona na sala. Tudo escuro. Um frio de rachar na noite
carioca, e a mulher lá... no quarto... nua.
Deu
uma espiadela pela porta do quarto entreaberta...
Ela
já havia se coberto.
Voltou
até a sala e espreguiçou-se sobre a poltrona confortável. Não era possível entreverem-se
detalhes daquela decoração sui generis, pois estávamos na mais absoluta
penumbra noctívaga, mas, se pudéssemos, diríamos que tudo que havia de mais
confortável na indústria da decoração de ambientes deveria existir ali...
Mas
ele não se preocupava com nada disso...
Sua
mente vagava a muitos quilômetros de distância do Rio de Janeiro, apesar de
estar precisando de uma folguinha como esta, não negava, principalmente depois
dos acontecimentos que culminaram na declaração de guerra...
Não
comentara uma linha sequer com Flávia, sua mulher. Ela não precisava saber dos
problemas do seu trabalho, até porque ignorava qual o serviço que o marido
exercia no exército, e também não se interessava muito por ele por livre e
espontânea vontade. Sua vida social era muito mais importante do que a carreira
dele, metido no meio da selva amazônica, conforme ela desabafara uma vez com
uma amiga...
Amiga
mesmo?
Todos nós temos
nossas dúvidas.
Flávia era uma bela
representante da classe média alta carioca. Um corpo escultural, jovem, moreno
de praia todo dia e ávido por aventuras. Desfilava esta beleza por academias e
onde mais fosse requisitada. A vida era uma delícia! Boa para ser vivida e não
dramatizada. Odiava más notícias. E odiava tudo o que lhe subtraía deste mundinho
da aparência e das pseudovirtudes da sociedade carioca, pois, em sua tosca
opinião, a civilização caminhava cada vez mais para o ápice, embora não
soubesse especificar do quê...
As preocupações com
as desigualdades sociais, as distorções e iniqüidades por trás dos poderes
públicos, tudo isto era conversa inútil, que não a levaria a nada!
Já fora assaltada
duas vezes, uma delas na porta de casa, quando lhe deixaram apenas com a roupa
do corpo, expressão máxima da impotência carioca. Ainda bem! Mas pensa que
Flávia se incomodava com isso? Não ‘tava nem aí!
Não, ela queria muito mais, muito mais do que
poderia cogitar sua vã filosofia, as luzes e as passarelas adequavam-se ao seu
perfil como a mão para a luva...
As festas desta
cidade bandida que um dia ousou maravilhosa, hoje relegada ao descaso público;
uma elite insensível e burra que não enxerga um palmo adiante do nariz, e
políticos e vassalos inescrupulosos, decadentes, agindo como vampiros sobre o
dinheiro público, com a aquiescência de um povo sofrido e bitolado pela
prestidigitação da mídia...
Esta a realidade
invisível...
No entanto Flávia e
suas queridinhas ainda queriam mais!...
Felipe
também...
Só
que numa oitava diferente.
A
gritante realidade que ele respirava tinha outro sabor...
Mais amargo, é
verdade, porém, embora Felipe desconfiasse que todo o panorama visto da ponte
cheirasse a cadáveres em grande profusão, também se sentia incapaz de perceber
todos os sintomas para chegar ao diagnóstico final...
Sentado na sua
poltrona na escuridão da madrugada suada, apesar do frio noturno, chuvoso,
tenebroso, Felipe conseguiu esboçar um sorriso...
Subitamente pensou
em Celha Regina...
Mas logo em seguida
imaginou-a no meio dos chacais comandados por Siboldi, a selva nervosa,
coerente e hostil, a persegui-la com seus galhos ameaçadores, exatamente como
num conto infantil de terror, e aquele sorriso desapareceu...
Uma vozinha
esmaecendo por baixo dos lençóis despertou-o de outro pesadelo...
O vento noturno
trouxera estas palavras:
“Meu amor”...
E outras mais se
acrescentaram à sinfonia do Monte Calvo...
– Que que ce tá
fazendo?
Ele guiou-se
através dos becos escuros até seu himeneu penumbroso...
Um corpo bem esculpido
agitou-se por baixo do edredom soletrando com dificuldade palavras ainda mais
obscuras...
Ainda assim ele
pôde compreender...
– Porque você não
vem dormir?
– Porque eu perdi o
sono...
Flávia levantou-se,
como que embriagada, embora não bebesse uma gota de álcool. Sua beleza era
estonteante, mesmo descabelada, aqueles cabelos sedosos compridos brilhantes
emaranhados...
– Você está tão
estranho, Felipe...
– Estou?
– Sério! Desde que
você chegou...
– Engraçado...
– Aconteceu alguma
coisa lá na Amazônia?
– Não.
Porém esta resposta
dizia muito mais do que uma infinidade de livros.
Flávia levantou-se
definitivamente para ir ao banheiro...
Toda a poesia ficou
suspensa por alguns segundos...
Uma Noite no Monte
Calvo...
De novo.
Flávia empurrou-o
para cama...
Por um breve
momento, Felipe pensou que eles começariam tudo outra vez, mas ela citou um
acontecimento banal, uma fofoquinha de academia, e seu espírito rebelou-se...
Felipe deixou-a
falando sozinha e dirigiu-se à sala, na cova do Monte Calvo...
– O que aconteceu,
Felipe? – perguntou ela penetrando na cova. – Você está muito estranho, Bem...
– É impressão sua, Amor.
– Sabe aquela vaca
da Marília?
– Não – volveu ele
distante, imune aos ruídos. – Eu não conheço nenhuma das suas amigas –
completou com ironia, o que jamais atingiria a insensibilidade social de Flávia.
– Largou o marido
pra ficar com um amante vinte anos mais velho do que ela...
– Alguma coisa este
“amante vinte anos mais velho do que ela” deve ter que o marido não tinha...
– Duas coisas na
verdade. Uma BMW e um Masseratti na garagem.
– E o marido da Marília?
– Tinha um Picasso.
Mas ficou só com ele. A Marília foi morar com o Masseratti.
– Isso foi bom pra
ela?
– Meu Deus, Felipe,
se eu não te conhecesse, diria que você está igual ao marido da Marília!
– Porquê? Eu não
tenho um Picasso...
– Não! Mas eu adoro
o seu Stylo! – volveu ela com uns olhões arregalados, e acrescentou satisfeita,
sorrindo: – É tão bonitinho ele, sabia?
Felipe olhou-a com
ternura. Ela não passava de uma criança, como toda a humanidade, pensou num
momento de lucidez algo profética.
E o que não era
este mundo senão uma imensa creche escola?
Felipe estava
inspirado.
Ele caminhou em
direção ao lavabo. Flávia seguiu-o, agarrando-o pelas costas, soprando pequenas
palavras mutiladas de carinho. Ela gostava do marido, sem dúvida, não o
trocaria por um Masseratti, nem por uma BMW, até porque Felipe lhe dava uma
vida de rainha, só que adorava a vida carioca muito mais do que imaginava.
Futilidades a
parte, os dois se atracaram no corredor, ou melhor, ela é quem o derrubou no
tapete da porta do lavabo...
A madrugada
alongou-se prazerosamente.
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