quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - UNIDADE II, CAPÍTULO 2.


Tanaka Osumi não se interessava por passarinhos...

Até gostava, nas horas vagas, lá na sua casa de campo no interior do Japão, com sua bela e tradicional família japonesa, que jamais havia visitado o Brasil, embora até ouvisse falar naquele país exótico, porque muitos descendentes viviam por lá...

No entanto, no Japão tradicional, a coisa era bem diferente...

O que mais se falava do Brasil por aquelas plagas, mas não na região onde viviam os Osumis, era Zico, Carnaval, Tropicalismo e Gisele Bündchen...

Alguns japoneses de olhinhos puxados ainda comentavam, com certo pudor, é verdade, porque eles eram muito educados, que, aqui no Brasil, o que dava mesmo era corrupção e impunidade...  

E o que as íris de Tanaka mais gostavam de ver eram os cifrões das moedas correntes pelo mundo, traduzidas em polpudos yens japoneses...

Sim, os interesses de Tanaka eram bem como Mister Taylor havia citado...

A exportação do arroz que era produzido às margens da reserva Raposa Serra do Sol, uma das maiores fontes de conflito da região por causa dos índios, dava a Tanaka um lucro exorbitante! Mas ele não se metia em interesses políticos de países amigos...

O seu trabalho gerava divisas pelo mundo afora, mantinha empregos, fazia a roda girar, e era isto o que importava, embora ele gostasse deste Brasil encantador que só dava lucro e ninguém queria largar, apesar de toda crise internacional, uma crise que transcendia a economia mundial, o que nenhum dos confrades de Tanaka jamais iria admitir...

Ou seja, Tanaka Osumi era um homem de negócios por excelência, convicto daquilo que fazia, e sempre pronto a fazer o próximo lance, e que isso lhe custasse o menos possível, pois, afinal, sempre existe a possibilidade de se barganhar, e nada melhor do que o Brasil, terra fértil para negócios baratos e lucrativos!

Talvez o Brasil fosse a terra mais promissora do futuro, isto é, desde que nenhum engraçadinho ousasse mudar as regras do jogo, isso Tanaka jamais admitiria, e todo o conglomerado financeiro mundial assinava embaixo.

 Tanaka era um dos maiores amigos do casal Taylor no Brasil, e em Little Town, na Guiana, onde o casal tinha sua residência fixa, o japonês se “escondia” às vezes.

Volta e meia estavam os três reunidos em festas em Manaus, Belém, Boa Vista, onde quer que elas estivessem acontecendo...

Apesar dos Taylors não morarem no Brasil oficialmente, eles falavam o português muito bem, e tinham livre acesso para ir e vir à vontade, pois o seu trabalho era reconhecido por toda a comunidade amazônica. Ambos eram autoridades em suas áreas técnicas no mundo todo, e tinham também muitas amizades nesta região, que englobava mais de um país da América do Sul.

Mas o que os Taylors tinham de tão aprazível para os olhos ávidos do japonês?

Apesar de viverem enfurnados lá nos cafundós do Judas da selva amazônica, os Taylors eram muito bem relacionados dentro e fora do Brasil, e com isto Tanaka dispunha de enormes possibilidades de penetração política em terras tupiniquins e alhures.

Mais contatos significavam também novas possibilidades de expansão em negócios, e o que há de mal nisto?...

Absolutamente nada.

Considerando ainda que Tanaka fosse um defensor férreo das linhas mestras do pensamento samurai, ele havia assimilado, todavia, um dos pilares fundamentais do modus operandi da sociedade brasileira, e por isso sabia que quem tem padrinhos não morre pagão.

Tanaka ficava, às vezes, uns dois meses sem pôr os pés no Japão, envolvido até o pescoço com os negócios, e nisto também ele assimilara uma das maiores manias nacionais, principalmente para os homens ricos de norte a sul, que era a de possuir uma amante...

Ela atendia pelo nome de Marina Seixas, e pertencia a uma das mais tradicionais famílias da região, que conhecia o japonês e sua história, e ainda assim não criava caso, ao contrário, uma vez que a bela morena, com ascendência inegavelmente indígena, de uma beleza estonteante, vivendo a tira colo com ele para cima e para baixo, só iria granjear, segundo a família Seixas, bons dividendos para todos, o que não desagradava nem mesmo a Tanaka, uma vez que sua família, lá no recanto mais inóspito de uma ilha no Pacífico, jamais ouviria falar das aventuras deste samurai às avessas, e, em relação à família de Marina, e mesmo dela própria, ele estava pouco se lixando!

Porém, estas ligações perigosas, mais dia menos dia, poderiam desembocar num grande escândalo, mas ninguém parecia se importar com isso, exceto os Taylors...

Aparentemente, claro.

– E essa menina, Tanaka... – perguntou-lhe Susan, num dia em que ele os visitava em sua bela casa em Little Town. – Não se incomoda mesmo de você ser casado?

– Acho que não – respondeu o japa taxativo, com algum orgulho por enxergar sua sapiência oriental, e certa superioridade imperialista. – Digamos que ela – e os pais também, claro – esperam aumentar seu rol de influência política na região...

– Mais ainda?! – perguntou, por sua vez, Charles Taylor, com a fala meio torta devido ao tradicional cachimbo inglês enfiado no canto da boca, embora com certa ênfase, sentado numa elegante Berger italiana com couro americano marrom escuro legítimo, no calor de sua suntuosa biblioteca e suas encadernações francesas do século XIX, e uma xícara de café, este genuinamente brasileiro, bem ao lado da mesinha de centro, onde outras duas xícaras repousavam, uma pela metade, exatamente a de Tanaka, porque ele preferia o saquê, a outra da própria Miss Taylor.

Tanaka limitou-se a rir da entonação um tanto sarcástica de Charles Taylor, a quem ele supunha conhecer muito bem, não entrando em detalhes acerca da verossimilhança ou não da assertiva.

– Mas e os pais dessa garota? – insistia Susan, num interesse que transcendia a esfera da fofoca – Eles devem saber que você nunca poderá assumir nenhum compromisso com a filha deles, o que torna este interesse meio inútil...

Tanaka voltou a sorrir. Era um homem no auge do seu autodomínio capitalista, da pujança senhorial, de alguém que pode até mudar o rumo das revoluções solares.

– Inútil? – replicou ele. – Esse povo tem uma esperança insana por um Deus que julga brasileiro acima de todas as outras raças! Vocês já viram maior absurdo?

Charles Taylor assentiu com o cachimbo na boca.

– Eu sim... Foi há quase dois séculos, quando o povo inglês se julgava privilegiado, até mesmo mais que aos judeus...

– Ou que os brasileiros – e Tanaka voltava a sorrir, zombeteiramente.

– Mas será que essa família tem mesmo alguma esperança de vê-la casada com você? – volveu Susan, no entanto estava claro que ela queria dizer muito mais. – Eu digo isso, porque, sendo esta família, como você mesmo acabou de dizer, uma das mais tradicionais de Boa Vista, não deve ter muita simpatia ao assistir a filha única desfilar com um homem casado...

– Susan – e aqui Tanaka fez uma pausa grave, delicada, porém ameaçadora para as pretensões dos Seixas. – Eu não tenho o menor interesse em me desfazer do meu casamento. Nunca passou pela minha cabeça abandonar a minha família para residir aqui no Brasil... E ela sabe disso...

– Mas será que a família dela sabe? – lembrou Susan bem a propósito.

 – Bom... Isto não é problema meu...

– Em muitas ocasiões, meu samurai, nós vemos a realidade de um jeito próprio, e que não necessariamente é encarada da mesma forma pelos outros – a fumaça expelida pelo cachimbo de Charles parecia rir-se daquela filosofia pela metade.

Não houve réplica por parte do japonês.

– Olha qu’eu já vi muito paxá descendo do seu trono engalanado, meu caro – completou Charles fumacento.

– Você está brincando comigo, Charles! – volveu um Tanaka indignado. – Esta situação não foi criada por mim... E eu deixei isto bem claro desde o começo!...

– Eu o entendo perfeitamente, meu caro Tanaka – continuou Charles, fumacento. – Além disso, você seria um tolo se largasse a sua... Como é mesmo o nome de sua esposa, Tanaka?

– Omiko – respondeu ele curto e grosso.

– É um belo nome, sem dúvida... Como você poderia largar a sua Omiko por esta... Não gosto desta alcunha, mas vá lá, é como todo mundo costuma denominar no sentido pejorativo do termo...

– Cucaracha – disse Susan sem rodeios.

– Obrigado, minha amada – retrucou Charles muito corado. – Na realidade é o tipo de coisa que nós, os líderes do mundo, costumamos pesar na balança...

– Não é isso que eu levo em consideração – respondeu Tanaka sem pestanejar. – É claro que nossas diferenças culturais têm o seu peso, mas... Até quando eu estarei no Brasil?

– Enquanto os negócios prosperarem – disse Susan com uma pontada de malícia.

– Estou como vocês... – devolveu o japonês. – De passagem.       

– Neste ponto permita-me discordar de você, meu jovem! – replicou Charles com jovialidade, mas sem esconder certo incômodo frívolo. – Eu não sei se eu e minha querida Susan partiremos desta região algum dia... Nós adoramos isto daqui!

Susan “Chapman” Taylor olhou para o marido com certa dúvida naqueles olhinhos azuis piscina. De certa forma ela até concordava com ele, mas deixou transparecer ao japonês que neste assunto não havia unanimidade entre o império britânico.

– Por falar nisto, Tanaka – volveu Charles com suas baforadas perfumosas. – Como vão os negócios nesta temporada de caça?

– Na mesma – retrucou o japonês com indiferença infinita. Nem parecia que ele amava o dinheiro.

– Qual o grande empreendimento do momento? – insistiu o inglês.

– O mesmo de sempre – disse o japonês com uma malícia oculta, mas que Susan percebeu no ato. – Mas o melhor negócio de todos, aquele que pode transformar a Amazônia num pote de ouro, seria, talvez, criar uma área de reserva internacional na Amazônia...  

– Como assim, Tanaka?! – perguntou ela, curiosa por natureza, disfarçando, porém, seu real interesse pelo assunto. – Como poderíamos transformar uma região que pertence a um punhado de países, numa reserva internacional?

– Então!... O primeiro passo já foi dado pela história... Não sei como poderíamos viabilizar isto do ponto de vista burocrático, mas sei que deveríamos.

– Todos nós sabemos que a Amazônia vale muito mais do que a floresta em si, mas se nós vamos transformá-la numa área de reserva internacional, ela não poderá ser explorada pelas indústrias...

– Neste caso – imiscuiu-se Charles, cortando a esposa, sorrindo e soltando espirais de fumaça para o ar privilegiado do lugar, porém dirigindo-se a Tanaka – Sou obrigado a concordar com minha esposa. Todos nós sabemos que a legislação no Brasil é frouxa em vários sentidos, o que faz com que as madeireiras, por exemplo, possam explorar este filão praticamente impunes, porém, desde o momento que nós criarmos uma área de reserva internacional por aqui, a comercialização da madeira cairá praticamente à zero, haja vista que quase a maioria dos ambientalistas diz ser este um dos principais problemas da floresta desde Chico Mendes.

Susan olhou para Charles, depois para Tanaka, a fim de presenciar se o japonês acusava o golpe, porém qual não foi sua surpresa ao vê-lo esboçar um sorriso tosco e enigmático, como o do jogador que acaba de se certificar que na próxima jogada sairá vencedor.

– Vocês não estão me entendendo...

– Explique-nos Tanaka – incentivou Charles, maliciosamente.

– Estou falando de uma falsa reserva, obviamente, onde nós possamos arrancar todas as riquezas que a Amazônia possa nos proporcionar...

– Nós?! – Susan fingiu não entender.

– Nós, as nações ricas e empreendedoras, claro! Há muito para fazermos na Amazônia, gente...

– Não creio, meu caro Tanaka. Não creio, sinceramente, que este seja um empreendimento viável, e nem que a opinião pública mundial veja isto com bons olhos...

– É óbvio que não, Charles! Mas manobrando as pessoas certas, eu acho que nós conseguimos dar um jeitinho, afinal o Brasil é a terra do jeitinho...

Tanaka não percebera que a conversa alcançara um terreno incômodo para os dois cientistas, e, facilitado pela boa comida e bebida, continuou falando até tarde, até que chegou o momento de ir-se embora.

Depois de encerrada a visita, tarde da noite, Susan Taylor ainda teve tempo de observar para seu marido:

– É bastante ambicioso nosso amigo japonês, né?

– Muito – concordou o inglês que nunca perdia o bom humor. – Esses homens de negócios não conseguem enxergar outra coisa que não seja uma boa fonte de renda onde quer que ela esteja. São capazes de qualquer coisa para atingir este objetivo...

– Será que nós devemos considerá-lo mesmo um amigo, Charles, meu bem?

– Querida, vou lhe dizer uma coisa que talvez lhe alegre o coração... Eu não consigo desgostar dele.

Susan abriu um largo sorriso antes de deitar para dormir.

– Eu também gosto muito dele... – disse ela, deitando-se. Charles anuiu deitado, todo coberto, com seu gorrinho inglês e tudo. Ela continuou sorrindo e deu-lhe um beijo caloroso no rosto, dizendo: – Mas espero, sinceramente, que a idéia de transformar a Amazônia numa reserva internacional fracasse.

A luz apagou-se. 

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