sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O SENHOR DAS ÁGUAS - unidade I - capítulo 5


Um dia depois Celha saiu de folga...

Voltava a sua Recife natal, e Felipe voltou a pensar na sua angústia inexplicável, num Siboldi rancoroso e um ódio incompreensível, e nos Macuxis incomunicáveis...

Muitas eram as incógnitas desta equação maluca, e talvez ele não tivesse a solução para ela...

Felipe se atrapalhava com os logaritmos absurdos de uma existência malfadadamente ingrata, tudo isso num sentido filosoficamente abstrato, abrangente, e Felipe não possuía as ferramentas apropriadas para enxergar através das nuvens falhas da individualidade. O resultado final estava-lhe ao alcance das mãos; tosco, é verdade, mas ainda assim assimilável...

Celha Nascimento, no entanto, procurava se exprimir, pelo menos para consigo mesma, com o máximo de clareza possível, neste obscuro mundo masculino...

Ela sabia perfeitamente que Felipe era um ser “casadíssimo!”... Ele mostrara a ela uma foto da esposa, e ninguém anda com a foto de alguém na carteira se não gosta desta pessoa... Por mais que Celha achasse isso démodé não podia desconsiderar, ao mesmo tempo, a importância deste simples fato...       Lindíssima!...

A tal esposa...

Entretanto, Celha chegou a cogitar numa trama infantil de Felipe, para impressionar, porém logo depois descartou tal possibilidade. Felipe não era o tipo de homem que interpretava papeis falsos futilmente na frente de uma mulher... Na verdade ela duvidava disso, ou seja, ele só podia ser mesmo casado...

Mas será que era um homem feliz?...

Às vezes ela pensava que não...

Outras vezes...

Não tinha certeza...

Era complicado...

Felipe era um homem fechado a maior parte do tempo, salvo naqueles rompantes de indignação gratuita... Na verdade, ela sabia que esta indignação possuía alta dose de fundamento racional... Algo que estava acima da razão social a qual Felipe pertencia, extrapolando toda e qualquer condição estereotipada, porém, mesmo assim, ela custava a entender o porquê daquela condição de revolta...

Não... Realmente não podia ser.

Felipe possuía tudo na vida. Não tinha razão para se revoltar contra o mundo, e tendo a experiência que adquirira com o sofrimento de uma casta esquecida do Estado há séculos, como era a sua, e no que se transformara hoje em dia, ela podia compreender em termos...

Apesar de que, como também se acostumara a observar, muitas vezes uma revolta como a que Felipe sentia, justamente era o resultado natural de aquele ter absoluto; o possuir sem medidas, sem luta, sem dificuldades, sem obstáculos, que muitas vezes trazem um resultado oposto na educação de um adolescente, na formação de um adulto...

As manchetes dos jornais estavam cheias de notícias como estas...

As famílias idem.

Quando já se passou por certas situações na vida, situações extremas, como a de Celha Regina, e ainda por cima sendo mulher, uma mulher excluída naturalmente por condições sociais, atingindo patamares que uma pessoa nesta condição jamais imaginou que poderia atingir, começa-se a ver certas coisas que poucos mortais na face da Terra poderão assistir então se compreende que o homem revoltado, na realidade, é a única condição sensata que existe no mundo...

Engraçado...

Ao mesmo tempo, e apesar dos pesares, Felipe dava todos os indícios de ser um sujeito “companheirão”, amigo dos seus amigos, solidário, compreensivo, carinhoso, embora excessivamente mimado, teimoso quando contrariado, mas sutil em certas colocações, e todas aquelas coisas que as mulheres estão cansadas de falar, mas que nunca encontram...

Porque também não procuram.

Escravizam-se e acorrentam-se a um arquétipo, que nunca sairá das páginas de revistas, ou seja, uma coisa só para ser contemplada com a distância dos olhos do desejo, e não sentida na pele com sua intensidade libertadora...

Não é uma questão de incompetência, mas é porque a nossa sociedade trabalha em segredo para que todos nós estejamos isolados, solitários e infelizes...

Este é o verdadeiro papel da sociedade.

Celha acreditava que o dela era não deixar que ninguém se revoltasse contra esta condição...

Voltando a vaca fria, com toda a certeza do mundo, Celha sabia que Felipe abrigava um desejo secreto em relação a ela...

Tão secreto como a natureza das coisas, dos átomos; um segredo que ele pensava secreto, mas não o era...  

Como todo homem tímido, Felipe pecava por clareza na hora de deixar o sentimento transbordar em ação...

Mas ele possuía algo de muito importante, na opinião de Celha Regina: Felipe não era um homem inclinado a aventuras fora do casamento, mesmo que não fosse feliz com a esposa, fato que Celha tinha quase a certeza...

A timidez, esta doença da alma timorata, deixava-o inseguro para exprimir palavras simples de amor, a coisa mais inconveniente na visão dela...

Quanta infelicidade não percorria o universo graças a esta merda chamada hesitação do desejo profundo!...

 Essas e outras impressões perpassavam a mente de Celha enquanto ela ia vislumbrando o panorama acima do Cerrado brasileiro, da Caatinga interminável; olhar ao mesmo tempo de prazer e melancolia, um sentimento que todo nordestino traz em si no coração cigano...

Ela não sabia que rumo exatamente tomaria a sua investigação a partir daqui, pois lá no 7º PEF todos pensavam nela como mais um oficial do exército brasileiro e só...

Quando na verdade sua identidade real estava disfarçada a serviço de um poder transnacional...

Ela ficara indignada contra as nuvens, na falta de um objetivo concreto para despejar sua ira...

Ela também era humana, pensava mais uma vez, ainda sobre o vislumbre da paisagem verde fechada abaixo de si... E gostava um bocado de Felipe, mas o que ela iria dizer a ele?...

“Acontece, ‘Fê’”...

Ela adorava chamá-lo assim...

Dava um tom de intimidade, uma intimidade que seria muito bem vinda...

Porém perigosa.

 “Acontece, Fê, que eu não sou quem você pensa qu’eu sou”...

Qual seria sua reação?...

Ele não entenderia, claro...

“Quer dizer, sou, mas não de verdade”...

Não... Definitivamente ele não entenderia.

 “Isto não tem nada a ver com os meus sentimentos em relação a você, mas”...

É...

Definitivamente...

“Não me peça pra explicar aquilo que não posso fazer sob juramento”... 

Mas porque deveria imaginar aquilo tudo?...

E ela pensou em Deus...

Um Deus em que não acreditava.

Gostava muito dele...

De Felipe. Demasiadamente talvez... Porque não aproveitar então? Mas uma coisa era o seu trabalho, e outra bem diferente o seu tesão...

Ela não podia se prender a ninguém, esta era a questão. Amanhã poderia ser designada pro...

Sei lá...

Turquestão...

Aí alguém teria que matá-la aqui no Brasil...

Institucionalmente falando, claro...

Mas ela sentia por ele aquele algo a mais que se tatua na pele para nunca mais apagar-se...

E o pensamento intensivo sobre Felipe, a sua indecisão atávica, a irritou de repente...  

A intuição dele, da mesma forma...  

Aquela manifestação feminina que todo homem deplora em si...

“O que estaria fazendo o Coronel Paglia, aquele safado?”...

“O sacana havia lhe dado uma senhora cantada no outro dia... Aquele sem vergonha!... Fica longe da família”...

“Os Macuxis estão muito bem orientados, realmente, mas”...

Então, de repente, muitas nuvens turvaram a visão estupidificante de Celha Regina. Ela procurou dormir um pouco, esquecer, recostar a cabeça na confortável poltrona nacional e talvez sonhar...

Então apagou...

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