Um dia depois Celha
saiu de folga...
Voltava a sua
Recife natal, e Felipe voltou a pensar na sua angústia inexplicável, num
Siboldi rancoroso e um ódio incompreensível, e nos Macuxis incomunicáveis...
Muitas eram as
incógnitas desta equação maluca, e talvez ele não tivesse a solução para ela...
Felipe se
atrapalhava com os logaritmos absurdos de uma existência malfadadamente ingrata,
tudo isso num sentido filosoficamente abstrato, abrangente, e Felipe não possuía
as ferramentas apropriadas para enxergar através das nuvens falhas da
individualidade. O resultado final estava-lhe ao alcance das mãos; tosco, é
verdade, mas ainda assim assimilável...
Celha Nascimento,
no entanto, procurava se exprimir, pelo menos para consigo mesma, com o máximo
de clareza possível, neste obscuro mundo masculino...
Ela sabia
perfeitamente que Felipe era um ser “casadíssimo!”... Ele mostrara a ela uma
foto da esposa, e ninguém anda com a foto de alguém na carteira se não gosta
desta pessoa... Por mais que Celha achasse isso démodé não podia desconsiderar,
ao mesmo tempo, a importância deste simples fato... Lindíssima!...
A tal esposa...
Entretanto, Celha
chegou a cogitar numa trama infantil de Felipe, para impressionar, porém logo
depois descartou tal possibilidade. Felipe não era o tipo de homem que
interpretava papeis falsos futilmente na frente de uma mulher... Na verdade ela
duvidava disso, ou seja, ele só podia ser mesmo casado...
Mas será que era um
homem feliz?...
Às vezes ela
pensava que não...
Outras vezes...
Não tinha certeza...
Era complicado...
Felipe era um homem
fechado a maior parte do tempo, salvo naqueles rompantes de indignação
gratuita... Na verdade, ela sabia que esta indignação possuía alta dose de
fundamento racional... Algo que estava acima da razão social a qual Felipe
pertencia, extrapolando toda e qualquer condição estereotipada, porém, mesmo
assim, ela custava a entender o porquê daquela condição de revolta...
Não... Realmente
não podia ser.
Felipe possuía tudo
na vida. Não tinha razão para se revoltar contra o mundo, e tendo a experiência
que adquirira com o sofrimento de uma casta esquecida do Estado há séculos,
como era a sua, e no que se transformara hoje em dia, ela podia compreender em
termos...
Apesar de que, como
também se acostumara a observar, muitas vezes uma revolta como a que Felipe
sentia, justamente era o resultado natural de aquele ter absoluto; o possuir
sem medidas, sem luta, sem dificuldades, sem obstáculos, que muitas vezes
trazem um resultado oposto na educação de um adolescente, na formação de um
adulto...
As manchetes dos
jornais estavam cheias de notícias como estas...
As famílias idem.
Quando já se passou
por certas situações na vida, situações extremas, como a de Celha Regina, e ainda
por cima sendo mulher, uma mulher excluída naturalmente por condições sociais, atingindo
patamares que uma pessoa nesta condição jamais imaginou que poderia atingir, começa-se
a ver certas coisas que poucos mortais na face da Terra poderão assistir então se
compreende que o homem revoltado, na realidade, é a única condição sensata que
existe no mundo...
Engraçado...
Ao mesmo tempo, e
apesar dos pesares, Felipe dava todos os indícios de ser um sujeito “companheirão”,
amigo dos seus amigos, solidário, compreensivo, carinhoso, embora
excessivamente mimado, teimoso quando contrariado, mas sutil em certas
colocações, e todas aquelas coisas que as mulheres estão cansadas de falar, mas
que nunca encontram...
Porque também não
procuram.
Escravizam-se e
acorrentam-se a um arquétipo, que nunca sairá das páginas de revistas, ou seja,
uma coisa só para ser contemplada com a distância dos olhos do desejo, e não sentida
na pele com sua intensidade libertadora...
Não é uma questão
de incompetência, mas é porque a nossa sociedade trabalha em segredo para que
todos nós estejamos isolados, solitários e infelizes...
Este é o verdadeiro
papel da sociedade.
Celha acreditava
que o dela era não deixar que ninguém se revoltasse contra esta condição...
Voltando a vaca
fria, com toda a certeza do mundo, Celha sabia que Felipe abrigava um desejo secreto
em relação a ela...
Tão secreto como a
natureza das coisas, dos átomos; um segredo que ele pensava secreto, mas não o
era...
Como todo homem
tímido, Felipe pecava por clareza na hora de deixar o sentimento transbordar em
ação...
Mas ele possuía
algo de muito importante, na opinião de Celha Regina: Felipe não era um homem inclinado
a aventuras fora do casamento, mesmo que não fosse feliz com a esposa, fato que
Celha tinha quase a certeza...
A timidez, esta
doença da alma timorata, deixava-o inseguro para exprimir palavras simples de
amor, a coisa mais inconveniente na visão dela...
Quanta infelicidade
não percorria o universo graças a esta merda chamada hesitação do desejo
profundo!...
Essas e outras impressões perpassavam a mente
de Celha enquanto ela ia vislumbrando o panorama acima do Cerrado brasileiro, da
Caatinga interminável; olhar ao mesmo tempo de prazer e melancolia, um
sentimento que todo nordestino traz em si no coração cigano...
Ela não sabia que
rumo exatamente tomaria a sua investigação a partir daqui, pois lá no 7º PEF
todos pensavam nela como mais um oficial do exército brasileiro e só...
Quando na verdade
sua identidade real estava disfarçada a serviço de um poder transnacional...
Ela ficara
indignada contra as nuvens, na falta de um objetivo concreto para despejar sua
ira...
Ela também era
humana, pensava mais uma vez, ainda sobre o vislumbre da paisagem verde fechada
abaixo de si... E gostava um bocado de Felipe, mas o que ela iria dizer a
ele?...
“Acontece, ‘Fê’”...
Ela adorava chamá-lo
assim...
Dava um tom de
intimidade, uma intimidade que seria muito bem vinda...
Porém perigosa.
“Acontece, Fê, que eu não sou quem você pensa
qu’eu sou”...
Qual seria sua
reação?...
Ele não entenderia,
claro...
“Quer dizer, sou,
mas não de verdade”...
Não...
Definitivamente ele não entenderia.
“Isto não tem nada a ver com os meus
sentimentos em relação a você, mas”...
É...
Definitivamente...
“Não me peça pra
explicar aquilo que não posso fazer sob juramento”...
Mas porque deveria
imaginar aquilo tudo?...
E ela pensou em
Deus...
Um Deus em que não
acreditava.
Gostava muito dele...
De Felipe. Demasiadamente
talvez... Porque não aproveitar então? Mas uma coisa era o seu trabalho, e
outra bem diferente o seu tesão...
Ela não podia se
prender a ninguém, esta era a questão. Amanhã poderia ser designada pro...
Sei lá...
Turquestão...
Aí alguém teria que
matá-la aqui no Brasil...
Institucionalmente
falando, claro...
Mas ela sentia por
ele aquele algo a mais que se tatua na pele para nunca mais apagar-se...
E o pensamento intensivo
sobre Felipe, a sua indecisão atávica, a irritou de repente...
A intuição dele, da
mesma forma...
Aquela manifestação
feminina que todo homem deplora em si...
“O que estaria
fazendo o Coronel Paglia, aquele safado?”...
“O sacana havia lhe
dado uma senhora cantada no outro dia... Aquele sem vergonha!... Fica longe da
família”...
“Os Macuxis estão
muito bem orientados, realmente, mas”...
Então, de repente,
muitas nuvens turvaram a visão estupidificante de Celha Regina. Ela procurou
dormir um pouco, esquecer, recostar a cabeça na confortável poltrona nacional e
talvez sonhar...
Então apagou...
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